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terça-feira, 14 de junho de 2016

Não se morre de frio, mas de especulação imobiliária e ausência do Estado

Foto: Paulo Honório

Toda vez que o capeta deixa a porta do freezer aberta em São Paulo, lembro da quantidade de imóveis que têm como inquilinos ratos e baratas, visando à especulação imobiliária, enquanto há pessoas virando picolé do lado de fora. Ou gente que dorme sob temperaturas de conservar sorvete em barracos, cortiços e habitações precárias.

O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se imóveis trancados por portas de tijolos e terrenos vazios pudessem ser desapropriados e destinados a quem precisa – gratuitamente ou a juros abaixo do mercado, dependendo do nível de pobreza em questão.
Daí, quando se discute a necessidade de radicalizar os programas de moradia popular, alguém grita no fundo de sua ignorância: Tá com dó? Leva pra casa!

A frase é um clássico da internet. Proferida ad nauseam quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente parda, fedida, drogada e prostituída que habita o burgo paulistano – locomotiva da nação, vitrine do país, que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos ufanistas patéticos caindo de velhos. É só falar da necessidade de políticas específicas para evitar que o direito à propriedade oprima os outros direitos fundamentais, que pessoas vociferando abobrinhas saem babando, querendo morder.

Não é levar o povo para a casa, amigos. Mas fazer com que o poder público cumpra sua função de garantir o mínimo de dignidade a quem não pode pagar por uma. E União, Estado e município têm responsabilidade nisso.

Mas sabe o artigo sexto da Constituição Federal que garante o direito à moradia? Então, é mentira. Do mesmo tamanho daquela anedota contada no artigo sétimo que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.

Ah, mas residências estão sendo construídas e o poder de compra do salário mínimo melhorou. Mas, no ritmo que estamos indo, os bisnetos da xepa de hoje terá acesso à qualidade de vida.
Função social da propriedade? Por aqui, isso significa garantir que a divisão de classes sociais permaneça acentuada como é hoje. Cada um no seu lugar. Afinal de contas, viver em uma grande cidade é lindo – se você pagar bem por isso.

Na madrugada de sexta (10), até então a mais fria do ano, uma pessoa em situação de rua foi encontrada morta na rampa de acesso da estação Belém do metrô. João Carlos Rodrigues tinha 55 anos e não apresentava sinais de violência – para além da violência representada por dormir na rua em uma noite gelada.

Mas quem se importa com um corpo pobre sem vida? Quem se importa, aliás, com o fato dos albergues não terem quantidade suficiente de vagas?

Na verdade, é só mais um a menos. O que contribui com a faxina social que já ocorre, a conta-gotas, pelas mãos do Estado ou de agentes privados. Faxina que vem para acalmar “cidadãos de bem'' que não gostam de mendigos mal-cobertos por mantas velhas ferindo o senso estético por aí, têm horror a qualquer crítica à intocabilidade da propriedade privada e querem tomar um café quentinho em seu restaurante sem se lembrar que, por nossa inação e nossas opiniões mesquinhas, somos também responsáveis pelo que acontece do lado de fora.

Sobre o autor
SakamotoLeonardo Sakamoto

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP e pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York, é diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

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