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sábado, 9 de fevereiro de 2019

Por que a Vila União acampou em frente à Prefeitura?

Reportagem O Calçadão
A Constituição de 1988 garante um conjunto de direitos humanos que cobre o campo das liberdades individuais, dos direitos sociais e coletivos e que, se transformados em políticas públicas, apontam para um Estado capaz de mesclar a livre iniciativa com um sistema de saúde e educação universais, distribuição de renda, inclusão e amparo no campo social, fundamental para um país como o Brasil com um histórico de desigualdades e assimetrias construídas ao longo de séculos.

E o artigo 6o da Constituição de 1988 traz o direito à moradia como um dos direitos sociais a serem garantidos por lei, ao lado do direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social e à seguridade social.

A Constituição também traz em seu texto, no artigo 5o, o conceito de função social da propriedade, que dá condições jurídicas para que as políticas públicas sejam realmente efetivas contra a concentração de renda, a especulação imobiliária e latifundiária características do Brasil.

Entre 2003 e 2014, algumas políticas públicas foram efetivadas em um processo de regulamentação desses princípios constitucionais, apontando a necessidade de distribuição de renda, inclusão social e melhoria de vida em um país onde a desigualdade social é tão dramática.

Um outro conjunto de leis foi construído e colocado à disposição para a articulação entre os governos federal, estadual e municipal para a implementação de políticas públicas promotoras do bem-estar social, incluindo a moradia. 

A partir de 2001, com a aprovação do Estatuto da Cidade, os administradores públicos passaram a contar com o Plano Diretor e com um conjunto de leis que se tornaram parte integrante da Política Urbana brasileira, visando a ampliação da oferta de moradia popular, diante do imenso déficit habitacional brasileiro, e a coibição da especulação imobiliária tão grave nos médios e grandes centros urbanos.

Podemos destacar a Habitação de Interesse Social (Leis 11124/2005 e 11481/2007) que, mediante programas de financiamento da Caixa Econômica Federal, busca ampliar a oferta de moradia popular através de mecanismos de regularização fundiária urbana e urbanização de assentamentos urbanos informais para a construção de moradias além de regularizar a utilização de imóveis vazios utilizados apenas para a especulação imobiliária.

Em Ribeirão Preto, a lei complementar que trata da Habitação de Interesse Social é a Lei 2927/2018 e traz:

Art. 2º. A ampliação da oferta de HIS submete-se às seguintes disposições: 
II - induzir a produção de soluções de HIS no entorno dos eixos de circulação, reduzindo a
necessidade de deslocamento, equilibrando a relação entre os locais de emprego e de moradia;
Seção III
Do Uso da Área Institucional para Fins de Moradia 
Seção IV
Da Locação Social
Art. 37. Os parâmetros e benefícios estabelecidos por esta lei complementar serão estendidos às
soluções de moradia destinadas à locação social, desde que observadas as condições estabelecidas
a seguir:
I - a distribuição de percentuais de HIS-1, 2 e 3, seja atendida conforme estabelecido nesta lei complementar;
II - o valor do somatório de aluguel, IPTU e condomínio não poderá ultrapassar 30% (trinta por
cento) da renda bruta máxima para cada classe de HIS conforme estabelecido nesta lei
complementar;
III - compromisso de locação por prazo mínimo de 15 (quinze) anos, após o qual a unidade
habitacional pode ser vendida, desde que, obrigatoriamente para a mesma faixa de HIS;
IV - a destinação deve estar gravada na matrícula do imóvel.
Parágrafo único. A gestão dos empreendimentos destinados à locação social é de responsabilidade
do proponente do empreendimento, o qual poderá terceirizar a gestão desde que mantidos os
compromissos de público-alvo, valor de aluguel e prazo de locação.bom existem duas legislações atuais que dão a base legal para o aluguel social ou locação social (nomes diferentes para a mesma coisa): a primeira é o art 127 da lei do plano diretor 2866/2018
Art. 127. A política municipal de habitação tem por objetivos:
V - estimular a produção de habitações de interesse social, para venda ou aluguel, dando preferência para o atendimento de famílias com renda de até 3 salários mínimos;


Em 2009, o governo Federal criou o programa habitacional Minha Casa Minha Vida, destinado a utilizar de todas as legislações habitacionais para construir moradias populares e atacar o déficit habitacional. 

O programa foi dividido em faixas de renda, incluindo as camadas mais pobres da sociedade, atendidas pela faixa 1 do programa, dentro do chamado Minha Casa Minha Vida Entidades, e em 7 anos construiu 2,6 milhões de moradias, mas sempre com muitas dificuldades para a faixa 1, que contempla a camada de renda familiar de até 1,8 mil reais e onde o subsídio público beira os 100%.

A superação do déficit habitacional no Brasil, hoje batendo na casa de 7 milhões (segundo dados da FGV/PNAD), garantindo a inclusão das famílias de baixa renda em projetos de moradia popular, depende da continuidade de uma política de Estado voltada para superar esse grave problema social.

Acontece que nos últimos anos, principalmente a partir de 2016, os sucessivos cortes em investimentos em programas sociais de moradia têm agravado um problema que mesmo o Minha Casa Minha Vida encontrava dificuldades em combater, uma vez que a maior parte dos investimentos era para faixas maiores, cujos empreendimentos eram realizados em parcerias com as construtoras.

A partir de 2016 foi retomada a agenda neoliberal no Brasil, semelhante àquela dos anos 1990, onde os preceitos constitucionais que apontam para um Estado de Bem-Estar Social foram contrariados pelos interesses do 'mercado'.

Podemos acompanhar dia a dia o ritmo de cortes em programas sociais, nos direitos trabalhistas e em benefícios garantidos na Constituição. Além do direcionamento dos orçamentos públicos para priorizar as chamadas 'despesas de capital', ou seja, os juros e amortizações da dívida pública com o setor rentista (os bancos e seus acionistas).

Veja os dados de 2018:


O resultado, como sempre, é o aumento das desigualdades sociais e o empobrecimento da população assalariada ou que trabalha, cada vez mais, no mercado informal, somado à piora nos serviços públicos essenciais, como educação e saúde públicas.

Segundo dados levantados pela Agência Estado em 2018 no Ministério das Cidades, houve cortes nas faixas 1 e 2 do programa Minha Casa Minha Vida. Na faixa 1, apenas 10% do número de projetos contratados foram efetivados. Em números absolutos, em 2017, apenas 23 mil casas na faixa 1 foram construídas no Brasil inteiro e o ritmo lento permaneceu em 2018.

Em Ribeirão Preto, nos últimos dois anos, nenhum projeto de habitação de interesse social foi realizado. O único empreendimento imobiliário é realizado por uma construtora em parceria com a Caixa e destinada às famílias com renda superior a 5 salários mínimos. Logo, uma simples operação comercial do campo imobiliário.

Enquanto isso, a cidade já tem mais de 100 assentamentos urbanos precários, com ocupações em áreas públicas e particulares, englobando mais de 45 mil pessoas ou uma cidade de Cravinhos. E o mais grave, dezenas de reintegrações de posse já autorizadas.

O blog esteve na Defensoria Pública semana passada e apurou uma grande preocupação com essa realidade e com uma certa ausência da Prefeitura na tentativa de discutir e encontrar uma solução para esse problema. 

O que parece é que nos últimos tempos, acompanhando as tendências estadual e nacional, o governo municipal tem apostado na repressão como solução. Este blog já recebeu denúncias de maus tratos a moradores de rua (cuja população aumentou assustadoramente nos últimos 2 ou 3 anos) e de violência e tentativa de intimidação contra comunidades carentes na cidade.

Diante do quadro que se enxerga, e cujo horizonte indica piora, repressão não vai solucionar nada. Problemas sociais se resolvem com políticas públicas e programas sociais. Não adianta imaginar que uma cidade de Cravinhos será colocada nas ruas de Ribeirão Preto da noite para o dia e que nada precisará ser feito.

Não é assim que se administra uma cidade, muito menos em meio a uma crise.

É por isso, e por muito mais, que a Vila União, uma comunidade que ocupa um terreno público da Prefeitura por não ter outro lugar para morar, acampou em frente à Prefeitura na última semana e teve o apoio de advogados populares, movimentos sociais e demais lideranças de outras comunidades.

Eles denunciavam a situação dramática da moradia na cidade através do seu caso particular. São famílias cujo direito à moradia está sendo sonegado pelo poder público. É o artigo 6o inteiro da Constituição que está sendo sonegado a milhões de brasileiros.

Houve uma vitória parcial. A Prefeitura se comprometeu requerer junto ao Poder judiciário o sobrestamento (interrupção do andamento) da reintegração pelos próximos 90 dias.

Mas o problema está longe de ser resolvido. Um outro olhar por parte do poder público será necessário, pois uma bomba relógio social está sendo armada.

Blog O Calçadão


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