Em outubro do ano passado, em uma "festa chic", comemorou-se os
84 anos do Teatro Pedro II. Estava lá parte do "higth society" ribeirão-pretano: os políticos clássicos, os magnatas da construção civil e a turma "cult" da zona sul que, desde que o teatro foi reformado no início dos anos 90, tomou conta do pedaço com o beneplácito do poder público.
Foi uma festa com direito a piano de alta qualidade, tenor e lançamento de um livro comemorativo organizado pela ex-secretária da Cultura de Dárcy, Adriana Silva. Como mestre de cerimônia estava a atual presidente da Fundação Pedro II, a socialite e colunista social
Dulce Neves. Teve de tudo, de rusga entre o bom menino tenor e o cerimonial às breguices características de um evento como esse. Só não teve uma coisa: povo.
Aliás, povo, infelizmente, é o que sempre faltou ao magnífico Teatro Pedro II e ao ambiente cultural de Ribeirão Preto como um todo (com raras e boas exceções). A relação entre o ribeirão-pretano e o Teatro é de admiração à distância. Milhares de pessoas passam em frente ao "quarteirão paulista" todos os dias e admiram a sua beleza, mas é como se aquilo fosse algo precioso dentro de uma redoma onde não se pode e não se sabe como tocar. Uma geração de trabalhadores que se encontra hoje na faixa entre 25 e 45 anos, quando vai ao Pedro II para ver algum artista famoso do qual gosta, vai pisando em ovos, com a sensação de que está entrando em um ambiente que não lhe pertence, olha para os lados, olha para cima, admira tudo, se ajeita nas cadeiras, timidamente, porque, hoje em dia, o Teatro é envolvido por uma aura que mistura o passado dos barões do café com a despretensão da elite "cult" que o cerca hoje, ambos "donos legítimos" do espaço, pelo menos no sentimento do povo, que se sente um pouco estranho ali dentro.
Mas, afinal, qual é a história desse lugar? Ele sempre foi assim?
Não, nem sempre.
Sua concepção se deu em 1928 e sua inauguração em 1930. E, claro, representava a Ribeirão Preto da "belle époque" cafeeira, quando Ribeirão era chamada de "cidade do entretenimento", fruto dos cassinos e da vida noturna, comandada pelo francês Francisco Cassoulet e suas meninas (o "moulin rouge" do sertão). Era a época onde a mística afirma que os "barões do café" acendiam cigarro em notas de "mil réis" e onde a Cervejaria Paulista (sob o comando de Meira Júnior) investiu num monumento que completaria um arco cultural em torno da Praça XV, tendo do outro lado da Praça o também lindo (e já demolido) Teatro Carlos Gomes. Acontece que 1930 marca exatamente o ano do início da bancarrota dos cafeicultores e o monumental Pedro II serviu por um curto período a uma elite já decadente e que vivia mais de aparecer do que ser. As décadas seguintes, da "modernidade"(quando a perda de relevância em nível nacional fez a cidade olhar para si mesma), iriam reservar outro destino ao Teatro, se bem que um destino melhor do que o outro, mais antigo e com arquitetura mais sóbria de Ramos de Azevedo, o Teatro Carlos Gomes: derrubado em 1946, segundo desconfiava
Rubem Cione, porque a memória dos tempos dos coronéis já não interessava mais e a Prefeitura não gastaria dinheiro para manter aquela estrutura (ali mais tarde foi um terminal de ônibus e hoje, após o governo Jábali, não é nada, apenas um local de passagem). A estrutura predial do Pedro II sobreviveu à sanha demolidora que tomou conta de Ribeirão nos anos 40, 50 e 60, mas o "glamour" do café acabou.
A partir dos anos 50, Ribeirão Preto começa a passar por uma reestruturação pressionada pelo avanço da indústria do automóvel, que além do sistema ferroviário (que será tema de um artigo específico), investiu contra um passado superado em nome da "modernidade", e o Pedro II passou a ser lembrado mais pelo salão de jogos e bailes de carnaval no seu sub-solo (a "caverna do diabo" ou a "panela de pressão") e pelo cinema que ali funcionava, do que por seu "glamour" (pelo menos era assim que pensava e pensa a "elite cult").
Por ironia, os anos que englobam as décadas de 50, 60 e 70 foram os únicos onde o povo de fato frequentou o Teatro (que não era para ver teatro). Não que houvesse uma vida cultural fértil, não havia, mas a vida social da cidade era feita no centro. Com os bairros próximos à região central, todo mundo vivia o centro da cidade. Políticos, artistas, estudantes, enfim, todos viviam a esquina da Única, a Sociedade Dante Alighieri, a Casa de Portugal (na praça Tiradentes, hoje estacionamento público), o Mercadão, as ruas José Bonifácio, Saldanha Marinho e São Sebastião, o cine Centenário, a Praça XV e o Teatro Pedro II (e o Pinguim, claro, na sua sede antiga). Com o tempo, a vida social do centro foi se acabando, só restou a vida comercial. O centro se tornou um local de passagem e compras e o Pedro II foi sendo totalmente abandonado.
Eu ouvi a ex-secretária Adriana Silva se referir a esta época como "uma fase decadente do Pedro II". Bom, correto, mas decadente porque o poder público não dava nenhuma bola para ele e não porque quem o frequentava na época era o povo, os pobres. A verdade é que a elite de Ribeirão e os seus prefeitos naquele período (todos da ARENA e bem conhecidos) não davam a menor para o Teatro e nem para o povo, e o povo o utilizava como era possível e até quando foi possível: um incêndio atingiu o prédio em 1980 e quase o destruiu. Essa decadência social do centro ilustra bem a vertente excludente que foi acentuada nas últimas décadas, a vida em praça pública, o uso comum dos espaços foi trocado por Shoppings Centers e condomínios fechados.
Aqui cabe um parêntese. Ribeirão tem 3 teatros de renome: o Pedro II (no centro) e dois no Morro de São Bento, o Arena e o Municipal, ambos de 1969, no conhecido processo de "modernização" da cidade. Em todos eles se apresentaram os mais importantes artistas e são, de fato, patrimônio histórico e cultural da cidade, além de lindos. Mas quando foi que Ribeirão teve uma política cultural popular que abrangesse a utilização desses 3 próprios municipais? Quando que o teatro, como arte, foi algo que integrasse um projeto amplo de cultura popular? Quem trabalha com teatro são heróis abnegados que lutam todo dia quase sem apoio nenhum e o povo não tem o teatro e os espetáculos culturais à sua disposição. Ponto.
Voltando.
Tombado em 1982, o Teatro só conseguiu ser reformado entre 91 e 96, com nova cúpula, sala dos espelhos e tudo mais. O que se esperava era que não só o Teatro restaurado mas todo o ambiente cultural pudesse ter uma nova cara na cidade. A construção de um calçadão podia ter marcado uma nova etapa de resgate da vida social no centro. Mas infelizmente isso não aconteceu.
No ano de 96 o projeto de continuidade de uma administração progressista foi derrotado e Ribeirão tomou outro rumo. O centro não foi recuperado e o funcionamento do Pedro II não se encaixa num projeto de recuperação do centro e sem isso a comemoração dos 84 anos do Teatro fica meio capenga. Aliás, o Pedro II, nas suas noites de espetáculo, é frequentado por pessoas que nunca frequentam o centro. Os carrões ficam nos estacionamentos particulares e no máximo, ao final do espetáculo, vão ao Pinguim (alguns mais corajosos vão ao Dr. Linguiça). A Fundação Pedro II, criada em 95, infelizmente parece mais uma ONG do que um instrumento da administração pública. Quando algo é administrado como uma ONG, quem acaba dando as cartas é a chamada "sociedade civil". Essa expressão pode parecer muito democrática na teoria, mas na prática o termo "sociedade civil" é o resultado da força política de quem tem poder para pressionar e pautar o poder público nos tempos atuais. "Sociedade civil" é um eufemismo criado pelo neoliberalismo e pelo "onguismo" para se referir à velha elite, tão criticada pelos esquerdistas como este que vos escreve.
Mariana Jábali e Dulce Neves representam bem a cara administrativa da Fundação Pedro II, a cara da elite. O povo nunca frequentou o Teatro Pedro II quando ali houve teatro e espetáculos, como nos últimos anos, e isso serve para os outros espaços teatrais em Ribeirão, com raras e boas exceções. Eu sou realmente chato para essas coisas, não consigo aceitar que o espaço cultural de uma cidade seja pensado de forma restrita, de forma a não absorver expressões populares. Ou será que a arquitetura do Pedro II e do "quarteirão paulista" não combina com o povo? Antes, o Teatro era patrimônio da Cervejaria Paulista, mas hoje é um patrimônio público, e deve ser isso, público. E mais, deve estar englobado num amplo projeto de recuperação do centro, onde não apenas a ACI e os poderosos lobistas da construção civil e os "cults" devem opinar, mas o povo deve participar e opinar.
O Teatro Pedro II fez 84 anos e permanece apartado da cidade à qual pertence, assim como o povo de Ribeirão Preto permanece apartado da cidade em que vive. Não sei de onde virão, mas Ribeirão Preto precisa de novos oxigênios políticos, Ribeirão Preto precisa se discutir, se enxergar, para quem sabe no aniversário de 100 anos do Teatro todos possam estar de fato participando ativamente de um ambiente cultural realmente democrático, onde um livro comemorativo seja escrito por milhares de mãos.
Ricardo Jimenez