Dom Orani Tempesta, cardeal arcebispo do Rio, e Bento XVI. Um, protagonista da perseguição à Teologia da Libertação; outro, beneficiário. Ambos responsáveis pela crise da Igreja no Brasil |
Perseguição à Teologia da Libertação baseou-se em duas fraudes, indicam pesquisas
Houve três razões, nenhuma delas
efetivamente teológica, que moveram o combate à Teologia da Libertação no
Brasil e na América Latina a partir de 1978, início do pontificado de João
Paulo II e durante todo o papado de Bento XVI, até 2013 – 35 anos, portanto. O
presente artigo, apesar de mencionar as três, tem foco em duas delas e
apresenta pesquisas recentes segundo as quais: i) ambas basearam-se em
argumentos fraudentos; ii) o governo conservador da Igreja Católica no Brasil
nesse período foi um rotundo fracasso.
As três razões:
1. A primeira tem fundo
político-ideológico: demonizou-se a Teologia da Libertação como se fosse uma
adesão ao marxismo e/ou comunismo, enquanto os dois papas e seus apoiadores
eram e são arraigadamente capitalistas e defensores do direito à propriedade e
à acumulação irrestrita de riquezas. A Igreja no Brasil virou as costas aos
pobres como sujeitos da ação pastoral para fazer deles, no máximo, objeto de um
olhar piedoso. O artigo não se deterá sobre este assunto.
2. A segunda razão foi
eclesiológica (de ecclesia, Igreja) e vincula-se ao tema do poder: os dois
papas, João Paulo II e Bento, a Cúria romana e a maioria da hierarquia católica
no Brasil e América Latina consideram os leigos (pessoas que não são ordenadas
sacerdotes) cidadãos de segunda categoria na Igreja. Defendem que a autoridade
e o poder devem concentrar-se integralmente nas mãos da hierarquia. Para eles,
todo o poder emana do clero e em seu nome será exercido –para implementar essa
visão, amealharam apoio entre em sem número de leigos temerosos e oportunistas.
É o que se chama clericalismo. As experiências das Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs) e dos conselhos de leigos nas paróquias horrorizaram os
conservadores, que as desarticularam. Para os defensores do clericalismo, uma
Igreja circular, não hierárquica, romperia “o mistério”, tornando-a secular,
banal, pois as pessoas comuns demandariam ritos de conotação mágica e
subserviência à autoridade. Para os conservadores, a solução seria a obediência
irrestrita dos leigos à hierarquia e investimentos que garantissem ordenação de
mais padres e a abertura novas paróquias. A estratégia mostrou-se equivocada,
como você verá nas pesquisas, mas serviu para concentrar o poder da Igreja nas
mãos dos hierarcas.
3. A terceira motivação para a
campanha de ódio e aniquilamento contra a Teologia da Libertação foi
pragmática: os conservadores alegavam à época (segunda metade dos anos 1970)
que os princípios, opções litúrgicas e prática pastoral de leigos, padres e
teólogos vinculados de alguma maneira a esta corrente estavam afugentando os
fiéis e esvaziando as igrejas.
O combate à Teologia da
Libertação traduziu-se numa campanha sistemática de perseguição a cardeais,
bispos, padres, freiras, teólogos e ativistas leigos nas paróquias e
comunidades promovidas por Roma, com iniciativas similares da hierarquia local
(veja, sobre isso, esclarecedora entrevista do padre Paulo Sérgio Bezerra ao
blog, aqui). Vários gestos de João Paulo II e Bento XVI indicaram os novos
rumos da Igreja, na contramão do Vaticano II, e autorizaram as campanhas.
Alguns deles: os processos e punições nos anos 1980 e 1990 Leonardo Boff da
Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida por Joseph Ratzinger, a divisão da
Arquidiocese de São Paulo, em 1989, com o objetivo de enfraquecer dom Paulo
Evaristo Arns, a repreensão pública ao padre Ernesto Cardenal, aliado dos
sandinistas na Nicarágua, por João Paulo II, em 1983; as seguidas repreensões
ao arcebispo de San Salvador, dom Oscar Romero, sinalizando ao clero
ultraconservador e aos militares do país que estava desautorizado pelo Papa,
num claro sinal verde à campanha contra ele, até o assassinato por
paramilitares durante a celebração da missa, em 1980.
Como se deu o governo da Igreja
no Brasil nesses 35 anos? O primeiro passo foi o rompimento dos os moderados,
pressionados por Roma e por seu desejo de fazer carreira na instituição, com os
progressistas ligados de alguma forma à Teologia da Libertação. O segundo foi a composição de uma nova
aliança dos moderados com dois segmentos: os conservadores “tradicionalistas” e
a corrente “carismática”, os neopentecostais da Igreja Católica (cujas
expressões mais barulhentas foram a Renovação Carismática Católica e a Canção
Nova). Hoje é possível constatar que os
restauracionistas, como qualifica o Papa Francisco (aqui), inimigos abertos ou
velados do Concílio Vaticano II, campo que reúne tanto conservadores como
carismáticos, vivenciam os primeiros sinais da crise de sua hegemonia de 35
anos, com a primavera em Roma.
Com a primavera, salta aos olhos
o fracasso retumbante do governo de mais de três décadas: 1) a perda de fiéis
católicos tornou-se uma torrente e 2) a Igreja deixou de ser protagonista,
tornando-se mero objeto decorativo no sistema de dominação dos ricos do
continente –mesmo em sua função de controle social/moral dos pobres, os
conservadores viram sua influência ser transferida em boa medida para as
correntes neopentecostais protestantes, das quais o pentecostalismo católico
(os “carismáticos”) é uma cópia mal acabada.
O que aconteceu durante os 35
anos de hegemonia conservadora/carismática?
1. Quanto ao número de católicos
no Brasil, uma sangria sem precedentes.
Veja a evolução do número de
católicos no país desde 1872[1]:
Há um processo de redução da
presença católica no país constatada pelas pesquisas desde fins do século 19.
Ela apresenta uma pequena aceleração ao longo dos anos 1970 que se torna uma
curva acentuada a partir da instalação do ciclo conservador/carismático: o
percentual de católicos declarados nos censos despenca a uma velocidade brutal
a partir dos anos 1980, caindo de 88,96% para 68,43% ao final da primeira
década do século 21.
No ritmo atual, estima-se que num
prazo entre 10 anos (DataFolha) e 20 anos (IBGE) o número de católicos será
superado em pelo de evangélicos no Brasil, conforme as projeções realizadas por
José Eustáquio Diniz Alves no portal EcoDebate.
A grande aposta da aliança
moderada/conservadora/carismática de que o pentecostalismo católico seria
barreira para a perda de fiéis mostrou-se uma ilusão. Conforme anota Paulo
Fernando Carneiro de Andrade, a “estratégia pastoral de incentivar grupos
carismáticos e os padres cantores com a espetacularização da fé em detrimento
das Comunidades Eclesiais de Base não parece ter tido o sucesso esperado”. O
pentecostalismo católico, cópia mal acabada daquele de origem protestante (por
motivos que não cumpre desenvolver aqui) instalou uma “porta giratória” no
catolicismo pela qual muitos saem e poucos retornam, pois, ao fim e ao cabo,
“acabou por reforçar o conteúdo de verdade religiosa que se possa atribuir aos
pentecostalismos evangélicos”.
Por isso, há uma constatação que
se torna imperativa e tem sido escamoteada pela Igreja no Brasil: “os dados do
Censo não permitem que se continue a sustentar uma acusação comum em muitos
ambientes na década de 1980 de que teria sido a pastoral das Comunidades
Eclesiais de Base e dos grupos de reflexão bíblico a responsável pela
diminuição relativa dos católicos e aumento dos evangélicos”.[2]
2. O clericalismo como estratégia
fracassada
Ao combater a descentralização do
poder na Igreja e o protagonismo dos leigos e leigas, com destaque para o
combate à liderança feminina, a aliança entre moderados, conservadores e
carismáticos construiu um discurso segundo o qual o crescimento da Igreja
institucional teria como consequência direta o incremento no número de católicos.
Dito de outro modo: para eles, a falta de padres e paróquias seria responsável
pelas dificuldades de enraizamento dos católicos.
Portanto, tratar-se-ia de
implementar um projeto de criação de paróquias e ordenação de padres em larga
escala para ampliar o número de católicos. A tese revelou-se um fiasco, pois a
crise do catolicismo no país não é institucional, mas cultural: as pessoas
olham para cardeais e bispos encastelados nas arquidioceses e padres nas
paróquias e não enxergam verdade, autenticidade. Quem tem afirmado isto
seguidamente é ninguém menos que o Papa Francisco.
Ao cruzarem os dados do Censo
2010 do IBGE com pesquisas do Centro de Estatística Religiosa e Investigação
Social (Ceris), Carlos Alberto Steli e Rodrigo Toniol constataram que nas mais
de três décadas de hegemonia conservadora à sangria de fiéis correspondeu um
aumento ímpar da estrutura clerical (sacerdotes, diáconos e paróquias). Veja o
quadro: é significativo que apenas uma dimensão do perfil eclesial no Brasil
tenha encolhido, o de mulheres religiosas (freiras e monjas), que compuseram a
linha de frente da Teologia da Libertação na base da Igreja e foram alvo dos
ataques machistas e misóginos típicos do clericalismo[3].
O crescimento da estrutura
clerical no país não se deu apenas em números absolutos. Há um enorme salto na
proporção sacerdotes por habitante. Enquanto em 1980 –início da ofensiva
conservadora- havia 8.347 fiéis para cada sacerdote, este número passou para
5.570 em 2010!
Portanto, enquanto a Igreja no
Brasil virou as costas aos pobres, ordenou mais padres e responsabilizou a
Teologia da Libertação pela perda de fiéis, o que se assistiu foi uma sangria
sem precedentes na história. Até agora não houve qualquer movimento explícito
de reflexão sobre esta questão crucial por parte da hierarquia católica no
Brasil. O que tem acontecido, em parte por conta do fiasco, em parte pela
liderança do Papa Francisco, é um estremecimento da aliança entre os moderados,
que comandam a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os grupos
conservadores e carismáticos. Há sinais, ainda tímidos, de uma reconstrução da
aliança entre os moderados e os progressistas, herdeiros da Teologia da
Libertação.
[Mauro Lopes]
____________________
[1] Neri, Marcelo. Coordenador.
Novo Mapa das Religiões. Rio de Janeiro, FGV, CPS, 2001. Link:
http://www.cps.fgv.br/cps/bd/rel3/REN_texto_FGV_CPS_Neri.pdf
[2] Andrade, Paulo Fernando
Carneiro de. O Censo de 2010 e as religiões no Brasil: reflexões teológicas em
uma perspectiva católica, in O Censo e as Religiões no Brasil. Bingemer, Maria
Clara Luccchetti e Andrade, Paulo Fernando Carneiro de, orgs. Rio de Janeiro,
2014. Editora PUC-Rio e Editora Reflexão. P. 118.
[3] Steil, Carlos Alberto.
Toniol, Rodrigo. O catolicismo e a Igreja Católica no Brasil à luz dos dados
sobre religião no Censo de 2010, in O Censo e as Religiões no Brasil. Bingemer,
Maria Clara Luccchetti e Andrade, Paulo Fernando Carneiro de, orgs. Rio de
Janeiro, 2014. Editora PUC-Rio e Editora Reflexão. P. 19-25.
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