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sábado, 16 de dezembro de 2017

Sobre a Sociolinguística Interacional e as questões de gênero nas interações discursivas! Por Giovanna Wrubel

Diários de uma Feminista


Giovanna Wrubel
(Doutora em Letras – FFLCH/USP, membro do GEPALLE - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento da USP e da UBM – União Brasileira de Mulheres, filiada à Federação Democrática Internacional de Mulheres) 

O discurso não é simplesmente aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com
o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos.

Michel Foucault[1]

Nos estudos da linguagem podemos observar, a partir da década de 1960, o interesse pelo estudo da língua situada na interação social, ou seja, pela Sociolinguística Interacional. Gumperz e Cook-Gumperz (1982)[2] salientam que o modelo da Sociolinguística Interacional visa a analisar a conversação contextualmente situada, associando construtos sociais, sociocognitivos e linguísticos, e concentrando-se em estratégias discursivas.

O sociólogo norte-americano Erving Goffman é considerado um dos precursores mais influentes de tal corrente e, dentre suas inúmeras obras sobre o estudo da ação social na interação conversacional (e em diferentes contextos situacionais), destacamos o estudo de 1970 (original americano: 1967), no qual verificamos a conceituação de face elaborada pelo autor, bem como os modos pelos quais as pessoas, em uma interação conversacional, tendem a preservar a sua face e evitar ameaças à face do interlocutor. Para Goffman (1970)[3], a face é a autoimagem pública que todos nós nos preocupamos em preservar, ou seja, a imagem que desejamos manter socialmente:

Pode-se definir o termo face como o valor social positivo que uma pessoa reclama efetivamente para si por meio da linha que os outros supõem que ela seguiu durante determinado contato. A face é a imagem da pessoa delineada em termos de atributos sociais aprovados, ainda que se trate de uma imagem que outros possam compartilhar, como quando uma pessoa enaltece sua profissão ou sua religião graças a seus méritos (GOFFMAN, 1970, p.13).

Nas interações conversacionais, o indivíduo espera que os seus interlocutores respeitem sua autoimagem, assim como ele respeita a dos demais. Goffman compreende, assim, dois aspectos que são complementares: respeito à própria face e consideração pela do outro. Vale mencionar que tal noção de face seria posteriormente retomada e ampliada por Brown e Levinson (1987)[4] para uma teoria sobre a polidez linguística (ou cortesia verbal).

Assim, para que haja de fato uma interação bem-sucedida, há estratégias bem definidas a serem seguidas pelos interactantes, que podem ser conscientes ou não, mas são sempre adotadas; seguem um acordo institucionalizado a partir do status social de cada participante e auxiliam no acordo tácito da relação interpessoal.

Em relação ao conflict talk, ou seja, aos conflitos que podem surgir nas interações conversacionais, Leung (2002)[5] salienta que variáveis sociais como poder, gênero dos interactantes e o grau de influência que caracteriza as relações entre os interlocutores podem ser determinantes nesse processo. Nessa direção, Grimshaw (1990)[6] considera que quanto maior a discrepância de poder entre os participantes da conversação, menor é a possibilidade de que o participante de maior poder seja desafiado. Ainda que o desafio ocorra, é mais provável que, nesse caso, ele seja mais indireto e de menor intensidade.

A diferença de gênero dos interactantes constitui uma variável social considerável quando falamos em conversações que envolvem conflitos. Preti (2003, p.55-58)[7] lembra que o diálogo entre homem e mulher, bem como a provável influência do gênero no discurso de cada um, é uma questão amplamente estudada pela Sociolinguística Interacional, e pensa que, apesar das grandes transformações socioculturais das últimas décadas do século XX, que permitiram importantes alterações da posição subordinada em que, na maioria das vezes, encontrava-se a mulher, é possível que, ainda hoje, notemos uma atuação mais ativa do homem nas interações conversacionais.

O autor ressalta a necessidade de analisarmos os diversos fatores envolvidos em um diálogo, que constitui uma produção linguística articulada. Assim, no diálogo homem-mulher analisado por Preti no trabalho citado, o grande número de frases incompletas e sobreposições que ocorrem nesta interação, em virtude dos constantes assaltos ao turno conversacional promovidos pelo locutor do sexo masculino, leva-nos a pensar num diálogo assimétrico, o que poderia representar um indício da dominância/poder exercido pelo locutor mencionado nesta interação. Ao mesmo tempo, o linguista considera que a sobreposição ou interrupção do discurso pode decorrer, também, do estilo dos falantes, do maior conhecimento do assunto tratado, da intenção de contribuir com o discurso do interlocutor, visando a uma continuidade natural do diálogo, e cita Tannen (1996, p.72)[8], ao afirmar que as sobreposições de tal diálogo podem ser vistas como casos de sobreposições cooperativas, isto é, que têm como objetivo mais o apoio que a obstrução e, assim, não seriam indício de poder ou de dominação, mas sim de solidariedade na interação conversacional.

            Tal questão é particularmente significante para a pesquisa sobre linguagem e gênero, já que grande parte dessas investigações têm se dedicado a descrever os meios linguísticos pelos quais homens dominam mulheres numa interação. Assim, a autora citada examina, por exemplo, o paradigma teórico da questão poder/solidariedade em uma interação homem/mulher, mostrando que as estratégias linguísticas são potencialmente ambíguas (elas podem significar tanto o poder de um indivíduo sobre o outro, quanto a sua solidariedade) e polissêmicas (elas podem significar ambos, simultaneamente).

O que Deborah Tannen procura problematizar, em suma, é a fonte da dominação e os seus mecanismos linguísticos, além de outras intenções e seus efeitos. Em outro estudo (TANNEN, 1990, p.16)[9], a autora afirma que não há como negarmos que os homens, como classe, exerçam um papel dominador em nossa sociedade, bem como que muitos, individualmente, dominem as mulheres em sua vida; contudo, para a autora, a dominação masculina não é o único fato suficiente para explicar tudo aquilo que pode ocorrer em uma interação conversacional entre homens e mulheres, já que o efeito da dominação nem sempre é o resultado de uma intenção de dominar:

A abordagem sociolinguística que adoto neste livro mostra que muitos atritos aparecem porque meninos e meninas são criados em culturas essencialmente diferentes; assim, a conversa entre homens e mulheres torna-se uma comunicação de culturas opostas. (TANNEN, 1990, p.16)

Além disso, a autora explica que há interrupções não intencionais, provenientes do estilo de conversação de cada indivíduo. Dentre os diferentes estilos, Tannen salienta o estilo de alta consideração, que dá prioridade à consideração com o interlocutor, permitindo que ele fale e aguardando pausas para falar, e o estilo de alto envolvimento, em que se dá mais valor à demonstração de um entusiástico envolvimento na interação — o que pode culminar em algumas interrupções não intencionais.

Outros estudos demonstram a evidência de uma maior utilização dos recursos/estratégias da polidez linguística pelas mulheres, em diferentes contextos culturais. Assim, Brown e Levinson (op.cit.) consideram relevante para a pesquisa da correlação gênero-polidez a linha de estudos que realiza tentativas de descrição dos estilos comunicativos que diferenciam os gêneros — chamados de genderlects, ou dialetos de gênero — tal como a de Lakoff (1975, 1977a, 1979), que sinaliza que as mulheres são, em geral, linguisticamente mais polidas que os homens, efetuando mais movimentos discursivos de preservação das faces dos seus interlocutores do sexo masculino, enquanto os homens tendem a realizar mais ameaças às faces de suas interlocutoras. Dessa forma, para os autores, continua válido o argumento de que homens e mulheres têm um estilo de conversação distinto, em virtude de sua distinta posição na sociedade.

A prática de “manterrupting” (interrupções sistemáticas masculinas à fala de uma mulher), por exemplo, pode ser observada em vários contextos sociais, desde o meio empresarial, passando pelas interações discursivas em meio acadêmico, discursos políticos, etc. Para citarmos apenas um exemplo recente e emblemático, no primeiro debate ocorrido entre os candidatos à presidência dos Estados Unidos, em 2016, Donald Trump interrompeu 26 vezes a fala de Hillary Clinton, apenas nos primeiros 26 minutos de debate, e 51 vezes ao longo de toda a interação, de acordo com o levantamento realizado pelo Vox[10]. Assim, nesse exemplo, é possível observar que o sexismo é linguisticamente marcado nas interações conversacionais, nas quais as ameaças intencionais à face de Hillary Clinton refletem a postura linguisticamente não cortês de Trump, na tentativa de manter seu poder discursivo ao longo de todo o debate.

Finalmente, consideramos serem necessárias pesquisas linguísticas, apoiadas pelo arcabouço teórico e metodológico da Sociolinguística Interacional, da Análise do Discurso e de outras áreas de estudo que analisam consistente e cientificamente os fenômenos da linguagem situados em seus contextos sócio-históricos de produção, a fim de que se faça uma reflexão em profundidade sobre os estilos comunicativos e estratégias discursivas que contribuem com a perpetuação de interações conversacionais conflituosas e reprodutoras de violências simbólicas, e, em última análise, com a desigualdade de gênero em nossa sociedade.




[1] FOUCAULT, M. A ordem do discurso. (L’Ordre du discours, Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 déc. 1970, Paris: Gallimard, 1971.) Trad. Edmundo Cordeiro e António Bento. Disponível em: http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/Foucault_OrdemDoDiscurso.pdf  Acesso em: 22 jun. 2017.
[2] GUMPERZ, J. & COOK-GUMPERZ, J. (1982). In: GUMPERZ, J. (Ed.) Language and social identity. Cambridge: Cambridge University Press, p. 1-21.
[3] GOFFMAN, E. (1970). Ritual de la interacción. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo.
[4] BROWN, P. & LEVINSON, S. (1987). Politeness: some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press.
[5] LEUNG, S. (2002). Conflict talk: A Discourse Analytical Perspective. Working papers in TESOL & Applied Linguistics, v. 2, n. 3.
[6] GRIMSHAW, A.D. (1990) Conflict talk: Sociolinguistic investigations in conversations. Cambridge: Cambridge University Press.
[7] PRETI, D. (2003). Alguns problemas interacionais da conversação. In: PRETI, D. (Org.) Interação na fala e na escrita. São Paulo: Humanitas. p. 45-66.
[8] TANNEN, Deborah. (1996) Gender and Discourse. New York: Oxford University Press.
[9] TANNEN, D. (1990) You just don’t understand: Women and men in conversation. New York: William Morrow.

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