Ilustração / Geni e o Zepelim |
Dias
atrás ganhou grande repercussão em algumas redes sociais o fato de, em se
pesquisar o significado da palavra professora no dicionário da empresa Google
ter como resultado, além do significado daquelas que exercem o magistério, o
das mulheres que iniciam alguém na vida sexual.
O emprego da palavra professora, dentro
do significado questionado, não é dirigido para maldizer a categoria
profissional que trabalha com educação, mas sim aproveitar da característica
principal - alguém que ensina - para fazer a ponte com a situação daquele que
esta diante de alguém que lhe iniciará na vida sexual. O que dará o tom jocoso
ou ofensivo não será a palavra por si própria e seu significado estanque de
outras frases e ideias, mas o contexto na qual a mesma será empregada. Vamos
exemplificar um pouco com a realidade da juventude preta e pobre das periferias
urbanas. Cidadão. Que palavra bonita, não é? Mas proferida pelo policial ao
jovem preto e pobre da periferia numa truculenta blitz, vira o quê? Disciplina.
Não é o conteúdo de determinada área do conhecimento a ser ministrado pela
professora, mas sim o responsável, dentro da hierarquia do crime em coibir
violentamente aqueles que ferem as regras da organização. E o pirriu. Essa nem
muitos dicionários apresentam. Antigamente, vigilante, guarda noturno.
Atualmente é como adolescentes e jovens detidos no sistema prisional brasileiro
chamam os que trabalham na vigilância dos próprios detentos. Agora, por favor,
levante a mão quem conhecia uma dessas palavras. Agora duas. As três.
Pessoalmente confesso com vergonha que
aprendi a última há semanas atrás, uma vez que moro no país com a terceira
população carcerária do planeta. Eu e vários da minha família já trabalhamos
como faxineiro. Devo denunciar os roteiristas dos seriados policiais da Netflix
por usar a palavra em suas tramas quando o faxineiro, cúmplice de um grande e
violento criminoso, os chama para se livrar dos corpos e limpar toda a cena do
crime? Fico preocupado com esses roupantes puristas que podem roubar a riqueza
de significados e infinitas combinações das palavras e expressões. Denunciar o
Google ou a Netflix é fácil. Empresa global de tecnologia da informação e
entretenimento, respectivamente, são muito conhecidas e bem capitalizadas. Pode
dar visibilidade e até um dinheirinho. No mínimo uma lacração em rede social.
Coragem mesmo seria denunciar, no caso do falso dilema da palavra professora,
Mário de Andrade, poeta, escritor e um dos principais responsáveis pela Semana
de Arte Moderna no Brasil, em seu livro “Amar verbo intransitivo”. Do fundo do
seu coração, responda. Conhecendo a biografia de Mário de Andrade e esse livro
aqui indicado, o autor quis ofender a categoria profissional dedicada ao
magistério, majoritariamente composta por mulheres? Pelo amor de Deus, não,
nunca! Pode-se extrair várias interpretações de uma obra, mas nessa, Mário de
Andrade põe o dedo na ferida ao expor a hipocrisia de uma sociedade machista,
patriarcal, composta por famílias com pessoas, ditas, de bem (Opa! Parece que
tenho ouvido isso nos dias atuais.) e que insere uma personagem prostituta no
seio da família certinha, como instrumento alegórico literário que faz a ponte
daquilo que realmente acontecia dentro das famílias de bem – a prostituta disfarçada
como elo entre o profano e o sagrado. Se
Mário de Andrade, esse morto tão vivo graças a literatura estivesse presente no
nosso dia-dia, assim como se fala de futebol nos bares da esquina essa polêmica
nem existiria. Lembrei-me agora de Jorge Amado. Deve estar se revirando no
túmulo também.
É estranho que pessoas das mais variadas
matizes ideológicas defensoras das liberdades individuais e direitos sociais
tenham se apegado a essa questiúncula com tanta força. Como diria um amigo meu
em relação aos liberais que se curvam ao corporativismo imediatista que mama
nas tetas do Estado ou ao conservadorismo nos costumes, são liberais até a
página dois. É estranho porque nós precisaremos também das prostitutas para
melhorar esse pais. Para conversar sobre aborto, rede de atenção à saúde da
mulher, exploração sexual e violência contra a mulher. E no campo do pensamento
imaginário auxiliar na desconstrução de tanta preocupação e discurso moralista
com o que cada um faz com seus orifícios. Ressalva. Exploração sexual e
pedofilia é crime. É estranho porque
essa caça às bruxas percorrendo nosso vernáculo - isso pode, isso não pode - é típico de posições autoritárias em
relação ao expressar-se. De quem flerta com a censura. Hoje em dia isso é
protagonismo da direita bolsanarista-olavista. É estranho porque a educação
pública e gratuita, em todos os níveis, está sob ataque de viés
neoliberal-mercantilizador (terceirização de professor e de equipe gestora,
extinção de direitos trabalhistas, fomento ao EAD – educação à distância de
baixa qualidade, arroxo salarial, cortes nas verbas orçamentárias). A reforma
da previdência empobrecedora do povo e engordadora do sistema financeiro
nacional e internacional foi aprovada no senado. Essas são a prioridade da
luta. Desmascarar as falsas benesses desses modelos junto à sociedade. Assim
posto, nós, prostitutas e professoras estamos no mesmo barco, porém sem as mãos
no leme. O título do artigo é um jogo de palavras com o título de um escrito
famoso do educador Paulo Freire - “Professora sim, tia não” para lembrarmos que
quem já tem voz e grita muito, as vezes não ouve e se esquece daquelas que tem
pouca voz em nossa sociedade.
Curiosamente antes de escrever
esse artigo o significado que gerou polêmica da palavra professora constava no
dicionário Michaelis on line. Hoje, não mais. Ao que parece o
politicamente correto continua a fazer estragos. Coitada da semântica.
*Celso Correia da Silva Júnior é amigo e colaborador do Blog O Calçadão
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