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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

CARTA ABERTA DE UM PAI AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA DO BRASIL

*Por: Matheus Arcaro

Senhor Jair, eu já conhecia as vossas declarações virulentas em relação aos que divergem de suas ideias, em relação aos indígenas, aos negros, aos pobres. Contudo, hoje, quero me ater à sua visão sobre a mulher. O senhor, assim como eu, é pai de uma menina. Talvez o senhor não concorde, mas o mundo para as mulheres é bem mais difícil do que para nós: o machismo está encrustado na sociedade há muitos séculos; ainda hoje mulheres em cargo semelhante ao dos homens ganham salários menores; mulheres são silenciadas, seus desejos são reprimidos, mulheres são assediadas e estupradas e, em muitos casos, são responsabilizadas por isso, porque, como o senhor supõe, não souberam se dar ao respeito ou não estavam vestidas adequadamente.

Embora eu fique triste por sua filha ter um pai que tanto desvaloriza a mulher, o modo como o senhor a cria não me diz respeito. Contudo, como o senhor é uma pessoa pública, suas declarações repercutem em várias camadas da sociedade e, inclusive, chancelam comportamentos de inúmeras pessoas.

O que posso dizer é que minha filha, que hoje conta com 3 anos e 4 meses, não é fruto de uma fraquejada. Apesar de todos os obstáculos e dificuldades que ela enfrentaria, desejei que fosse menina desde o momento da concepção. No que depender de mim, ela aprenderá a ser uma mulher independente, que não se curva a representantes políticos que desconhecem o mínimo de civilidade.

Quando crescer, ela poderá raspar o sovaco ou não. Poderá se relacionar com homens, mulheres, com ambos, com nenhum. Poderá ser médica, advogada, artista ou secretária. Poderá engravidar, se esta for a sua vontade e, mesmo com a barriga enorme, poderá sair às ruas para defender seus direitos de equidade em relação aos homens.

De minha parte, espero que, quando minha filha for crescida, não tenha necessidade de lutas tão desgastantes. Espero que, até lá, consigamos reconstruir a democracia que o senhor destrói diariamente. Mais que isso: espero que esse período obscurantista sirva de lição para aquela parcela da sociedade que colocou em xeque as instituições brasileiras e seja uma espécie de catapulta para avanços sociais depois que o senhor e sua trupe desocuparem o centro político.

Enquanto estas nuvens densas não se dissipam, resta-me o combate diário para proporcionar à minha filha as possibilidades de desfrutar da parte boa da vida, que não são poucas. Há um mundo regido pelo afeto, pela empatia, pela busca de igualdade. Um mundo que, provavelmente, o senhor desconhece. 

*Matheus Arcaro é mestre em Filosofia Contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 2016), dos livros de contos Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014) e Amortalha (Ed. Patuá, 2017) e do livro de poesia Um clitóris encostado na eternidade (Ed. Patuá, 2019). Também colabora com artigos para vários portais e revistas.

site: www.matheusarcaro.art.br

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