A glutonaria da caserna, o oneroso Centrão, a banalização da morte e a
dificuldade dos grupos progressistas em pautar o debate
Comecemos pelo básico: certas críticas circulam mais pelo mimetismo. A
chamada “nova direita” usa e abusa da tática e faz circular bem suas ideias.
Falta conteúdo, mas uma das características desse grupo é o apelo emotivo. As
fissuras do acordo que levou ao poder o atual governo vem se mostrando cada vez
mais evidentes. Grupos como o MBL, os dissidentes do PSL e outros agrupamentos
da “nova direita” se afastaram, dando um contorno claro: sobraram a
extrema-direita, os militares e, enquanto houver grana, o tal Centrão.
Ainda que não haja um consenso de projeto de sociedade para se opor ao
governo, a cada dia as críticas saem com mais rapidez e vigor do interior dos
grupos progressistas. Um exemplo disso é a tal farra do leite condensado, que
energiza nossas Forças Armadas (FFAAs), e do chiclete, que mantém em dia o
hálito de nossos combatentes nas mais inóspitas missões, bem como mantém seus
ouvidos imunes ao entupimento causado pela pressão em grandes altitudes. Não faltaram
críticas, charges, imagens, vídeos e tudo o mais que contribui para a
circulação mimética. Ocorre que o alvo da crítica tem know-how na estratégia do apelo puramente emocional. Com isso, apesar do desconforto, a
farra das guloseimas contribuiu para desviar o foco de pontos nevrálgicos: a liberação
bilionária de emendas para eleger o presidente da Câmara e o fracassado trato
da pandemia. Em suma: a crítica circulou com êxito, mas a forma como se deu a
narrativa, paradoxalmente, serviu de contenção de danos.
Há uma base governista tão coesa que está pronta para receber e
reproduzir quase todas as justificativas e a apresentação de valores
descontextualizados serviu como um primoroso “passe” para Jair atacar seus
opositores e incendiar sua torcida. Há quatro pontos mais importantes: a
primeira – muito simples e também “viralizável” – é trazer à baila incoerências
no discurso, o que por certo não convencerá a base coesa, mas fragilizará ainda
mais essa base perante os grupos em dúvida, sobretudo aqueles de corte
“lavajatista”, que remontam o discurso do moralismo udenista; a segunda é
questionar os valores pagos pelo produto, as inconsistência da versão dita em
relação ao registrado no Portal da Transparência, que deve desaguar na
necessidade de explicar onde está o nó, para isso, é preciso estimular o
questionamento no sentido do “follow the
Money”; a terceira – um pouco mais profunda – visa contextualizar o debate dos valores. Vamos por parte.
1.°) As incoerências no moralismo de goela
Não faz muito tempo que a “nova direita” se escandalizou com a presença
de lagosta e vinho na lista de compras do STF. Em 2019, a linha das críticas
era a perplexidade em relação à insensibilidade dos magistrados em plena crise
econômica. Na ocasião, os ministros do STF, às turras com Jair e sua trupe,
eram vilões da “nova direita” e representava, por serem perdulários, tudo o que
atrapalhava a recolocação do país nos eixos. Na ocasião, Moro ainda ministro,
mantinha na base governista o grupo lavajatista, os neoliberais ainda não
estavam suficientemente desolados a ponto de abandonar Jair. Lagosta e vinhos
no STF. Um escândalo!
Ora, neste momento em que parte da chamada “nova direita” desembarcou.
Qual o sentido de investir tempo naquilo que é “explicável”, por mais estranha que
possa parecer a explicação? O que tem que estar em pauta é que, tal como foi
recebido com escândalo o banquete do STF, a glutonaria do alto escalão do
governo Bolsonaro e da caserna também promovem orgias gastronômicas com o
dinheiro do contribuinte. Afinal, o Executivo comprou mais de R$ 6 milhões em
frutos do mar e só os militares compraram cerca de R$ 2,5 milhões em vinho.
Isso mesmo, exatamente a mesma prática[i].
Meus caros, os mais de R$ 8,5 milhões em vinhos e frutos do mar fazem parecer
simplório o polêmico contrato do STF de R$ 481 mil. E, então, de que modo
justificar a compra de tais itens como indispensáveis? Num momento de aumento
da miséria e do desemprego, nem o vinho e os frutos do mar poderiam ser
economizados? A mamata, como se vê, parece longe de acabar!
2.°) Follow the Money para verificar o que vale entre o dito e o
escrito
Leite condensado light in natura por R$ 162 e caixa de bombom por R$
89. Lata de spray de chantilly por R$ 533, R$ 128 mil em paçocas que custaram R$
5,45 a unidade[ii].
Preços registrados no Portal da Transparência pelo Exército e pela Marinha,
respectivamente. Isto é, permanecem questionamentos sobre compras de produtos
com preços acima do mercado. Ora, eram o governo federal e os asseclas do Jair
quem diziam que governadores e prefeitos iriam se esbaldar nas compras sem
licitação no Estado de Calamidade. Jair e Pazuello se vangloriavam por não
comprar seringas e agulhas na pandemia dado o aumento de preços no fim de ano.
Mas, apesar dessa retórica moralista compras que demandam investigações
ocorreram entre os militares. As FFAAs, apresentadas ao país como a reserva
moral, devem explicar cada preço e cada item. Apesar de serem militares, ainda
estão submetidos aos marcos legais para o uso do dinheiro público. Outros
órgãos estariam na mira do TCU e da CGU. Então, o que se deve esclarecer é: são
incompetentes para preencher o Portal da Transparência? Portal este que faz
parte de legislação desde 2012. Ou realmente compraram com preço acima do
mercado? Se compraram, qual a justificativa legal para o fato?
Por fim, há algo pior. A informação de pagamento no Portal da
Transparência diverge da versão dos fornecedores. A padaria de Campo Largo
teria recebido entre R$ 25 e 30 mil, no Portal consta pagamentos muito
superiores, quase R$ 1 milhão em parcelas de R$ 28 mil[iii].
A empresa do leite condensado, cujo advogado é do mesmo escritório que
advoga para a Havan, é de um casal aparentemente simples de Campos[iv],
eles alegam que R$ 162 era uma caixa com 27 unidades de leite condensado de
395g, no Portal R$ 162 seria o preço de uma unidade de 395g[v].
Além disso, as empresas dos pais e do filho teriam vendido R$ 37 milhões ao
governo, sendo o filho do casal de Campos um militar (ou ex-militar?), pastor,
residente em Brasília, cuja empresa teria vendido R$ 25 dos 37 milhões vendidos
pela família. Fora os mais de R$ 7 milhões vendido pela esposa do filho, a nora
do casal de Campos.[vi]
Talvez, por todas essas questões, o ataque à imprensa no almoço com os
cantores sertanejos pode não ter sido mera pirotecnia. Como se diz nas redes,
"Galvão, sentiu". Ou seja, se é superficial discutir a utilidade do
chiclete e leite condensado na caserna. Parece razoável que o preço dos
produtos e a rota do dinheiro sejam investigados e esclarecidos. Mesmo que seja
para afirmar a incompetência de gente das FFAAs para digitar informações no
Portal da Transparência, o país precisa saber. Quem não deve, não teme.
4.°) O contexto dos valores totais
Jair concedeu entrevista para o governista "Pingos nos is",
Augusto Nunes já publicou no R7 e Caio Coppola já faz sua defesa. Todos
explicando a utilidade do Leite Condensado e da goma de mascar para vida na
caserna e que a quantidade deles foi menor que em outros governos. Além disso,
todos eles alegaram – e não mentiram – que o valor empenhado não foi totalmente
comprado e que as compras concluídas foram menores que 2018 e 2019. Pronto:
estava concluída a nova narrativa. Bolsonaro, como sempre, é vítima da grande
imprensa e da voracidade de uma oposição que torce contra o país.
O que não vai ser dito é que o volume necessário de compras de
alimentos era muito menor que nos anos anteriores. Por exemplo, as
universidades federais e institutos federais ficaram fechados por cerca de nove
meses no ano de 2020 com a implementação do ensino remoto durante a pandemia,
servidores do grupo de risco estavam em home
office. Logo, gastar menos não é necessariamente decorrente da austeridade.
Eles também não vão mencionar que a cada ano aumenta a quantidade de
Restaurantes Universitários completamente terceirizados, o que diminui a
quantidade de órgãos federais que precisam licitar alimentações, uma vez que a
empresa que assume a gestão do RU é quem faz tais compras. O estudo de Adriana
de Paula e Amélia Bifano, publicado na Brazilian
Journal of Development[vii],
identificava que 70% dos restaurantes universitários nas instituições federais
de ensino eram totalmente terceirizados em 2019, enquanto 20% adotava gestão
mista e apenas 10% eram geridos pelo Poder Público e a tendência de
terceirização total continuava em marcha. Isto é, comparar a quantidade
comprada agora com a quantidade comprada há dois anos guarda esse problema
básico: as unidades cujo fornecimento é totalmente público diminuem ano a ano.
Segundo o estudo: "Estima-se que os serviços de alimentação instalados nas
IFES estejam passando por um processo gradativo de terceirização total, visto a
impossibilidade de alocação de servidores públicos em postos de trabalhos
próprios da produção de refeições" (HOCAYEN & BIFANO, 2019, p. 32480).
Portanto, está claro que argumentar com esse grau de detalhamento não
provoca grande engajamento nas redes. Porém, reduzir o problema das compras em
“leite condensado”, “chiclete” e “R$ 1,8 bilhão” permitiu novamente que Jair e
seus porta-vozes na imprensa revertessem o ônus em estratégia de mobilização dos
asseclas. No fim e ao cabo, o maior engajamento em torno do assunto está mais
vinculado ao embarque na oposição de segmentos da direita outrora aliados, do
que propriamente pelo acerto no tom e no tema. Há mais a ser explorado no
famigerado carrinho de compras. Bem como há mais e mais exemplos para contestar
a imagem de austero que os defensores querem crer e fazer crer.
Enquanto isso, Luiz Eduardo Ramos, articulador político do Planalto,
comandou negociações para liberação de cerca de R$ 3 bilhões em recursos extras para que 250 deputados
e 35 senadores aplicassem em obras em seus redutos eleitorais em troca de votos
nos candidatos à presidência da Câmara e do Senado alinhados ao governo. E o
Brasil passou das 222 mil mortes, atingiu a maior média móvel diária desde
julho, atingiu mais de nove milhões de casos, segue patinando fragorosamente no
Plano de Imunização, o que corrobora com a conclusão do Lowy Institute, de
Sidney (Austrália): temos a pior gestão da pandemia no mundo.
Novamente, a realidade contraria o discurso: o governo que anunciou o
fim do “toma lá dá cá” abre os cofres do país que o presidente dizia quebrado
para obter apoio político e a tão propalada escolha técnica nos empurra um
militar na Saúde, cuja especialização em logística não serviu para evitar a falta
de oxigênio em Manaus e nem para evitar problemas nos voos de distribuição do
primeiro lote das vacinas. Como já era possível antever, não seria um
parlamentar oriundo do baixo clero da Câmara com produtividade nula a acabar
com as negociatas e nem mesmo a implementar a eficiência da gestão pública.
Essa “nova política” – seja lá o significado desejado para o termo – nada tem de
respeito aos recursos públicos e só pode sobreviver – em meio a chuvas e
trovoadas – alimentando o imenso apetite do Centrão, que pouco se lixa com
coerência ideológica, e permitindo que glutões perdulários saciem sua sanha,
enquanto o povo luta contra a fome, a pandemia e a bufonaria de quem deveria
liderar.
Jefferson Nascimento
Doutorando em Ciência Política - UFSCar
Membro do NEPPLA - Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos
Latino-Americanos