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sábado, 30 de janeiro de 2021

 A glutonaria da caserna, o oneroso Centrão, a banalização da morte e a dificuldade dos grupos progressistas em pautar o debate

Comecemos pelo básico: certas críticas circulam mais pelo mimetismo. A chamada “nova direita” usa e abusa da tática e faz circular bem suas ideias. Falta conteúdo, mas uma das características desse grupo é o apelo emotivo. As fissuras do acordo que levou ao poder o atual governo vem se mostrando cada vez mais evidentes. Grupos como o MBL, os dissidentes do PSL e outros agrupamentos da “nova direita” se afastaram, dando um contorno claro: sobraram a extrema-direita, os militares e, enquanto houver grana, o tal Centrão.

Ainda que não haja um consenso de projeto de sociedade para se opor ao governo, a cada dia as críticas saem com mais rapidez e vigor do interior dos grupos progressistas. Um exemplo disso é a tal farra do leite condensado, que energiza nossas Forças Armadas (FFAAs), e do chiclete, que mantém em dia o hálito de nossos combatentes nas mais inóspitas missões, bem como mantém seus ouvidos imunes ao entupimento causado pela pressão em grandes altitudes. Não faltaram críticas, charges, imagens, vídeos e tudo o mais que contribui para a circulação mimética. Ocorre que o alvo da crítica tem know-how na estratégia do apelo puramente emocional. Com isso, apesar do desconforto, a farra das guloseimas contribuiu para desviar o foco de pontos nevrálgicos: a liberação bilionária de emendas para eleger o presidente da Câmara e o fracassado trato da pandemia. Em suma: a crítica circulou com êxito, mas a forma como se deu a narrativa, paradoxalmente, serviu de contenção de danos.

Há uma base governista tão coesa que está pronta para receber e reproduzir quase todas as justificativas e a apresentação de valores descontextualizados serviu como um primoroso “passe” para Jair atacar seus opositores e incendiar sua torcida. Há quatro pontos mais importantes: a primeira – muito simples e também “viralizável” – é trazer à baila incoerências no discurso, o que por certo não convencerá a base coesa, mas fragilizará ainda mais essa base perante os grupos em dúvida, sobretudo aqueles de corte “lavajatista”, que remontam o discurso do moralismo udenista; a segunda é questionar os valores pagos pelo produto, as inconsistência da versão dita em relação ao registrado no Portal da Transparência, que deve desaguar na necessidade de explicar onde está o nó, para isso, é preciso estimular o questionamento no sentido do “follow the Money”; a terceira – um pouco mais profunda –  visa contextualizar o debate dos valores. Vamos por parte.

 1.°) As incoerências no moralismo de goela

Não faz muito tempo que a “nova direita” se escandalizou com a presença de lagosta e vinho na lista de compras do STF. Em 2019, a linha das críticas era a perplexidade em relação à insensibilidade dos magistrados em plena crise econômica. Na ocasião, os ministros do STF, às turras com Jair e sua trupe, eram vilões da “nova direita” e representava, por serem perdulários, tudo o que atrapalhava a recolocação do país nos eixos. Na ocasião, Moro ainda ministro, mantinha na base governista o grupo lavajatista, os neoliberais ainda não estavam suficientemente desolados a ponto de abandonar Jair. Lagosta e vinhos no STF. Um escândalo!

Ora, neste momento em que parte da chamada “nova direita” desembarcou. Qual o sentido de investir tempo naquilo que é “explicável”, por mais estranha que possa parecer a explicação? O que tem que estar em pauta é que, tal como foi recebido com escândalo o banquete do STF, a glutonaria do alto escalão do governo Bolsonaro e da caserna também promovem orgias gastronômicas com o dinheiro do contribuinte. Afinal, o Executivo comprou mais de R$ 6 milhões em frutos do mar e só os militares compraram cerca de R$ 2,5 milhões em vinho. Isso mesmo, exatamente a mesma prática[i]. Meus caros, os mais de R$ 8,5 milhões em vinhos e frutos do mar fazem parecer simplório o polêmico contrato do STF de R$ 481 mil. E, então, de que modo justificar a compra de tais itens como indispensáveis? Num momento de aumento da miséria e do desemprego, nem o vinho e os frutos do mar poderiam ser economizados? A mamata, como se vê, parece longe de acabar!

2.°) Follow the Money para verificar o que vale entre o dito e o escrito

Leite condensado light in natura por R$ 162 e caixa de bombom por R$ 89. Lata de spray de chantilly por R$ 533, R$ 128 mil em paçocas que custaram R$ 5,45 a unidade[ii]. Preços registrados no Portal da Transparência pelo Exército e pela Marinha, respectivamente. Isto é, permanecem questionamentos sobre compras de produtos com preços acima do mercado. Ora, eram o governo federal e os asseclas do Jair quem diziam que governadores e prefeitos iriam se esbaldar nas compras sem licitação no Estado de Calamidade. Jair e Pazuello se vangloriavam por não comprar seringas e agulhas na pandemia dado o aumento de preços no fim de ano.

Mas, apesar dessa retórica moralista compras que demandam investigações ocorreram entre os militares. As FFAAs, apresentadas ao país como a reserva moral, devem explicar cada preço e cada item. Apesar de serem militares, ainda estão submetidos aos marcos legais para o uso do dinheiro público. Outros órgãos estariam na mira do TCU e da CGU. Então, o que se deve esclarecer é: são incompetentes para preencher o Portal da Transparência? Portal este que faz parte de legislação desde 2012. Ou realmente compraram com preço acima do mercado? Se compraram, qual a justificativa legal para o fato?

Por fim, há algo pior. A informação de pagamento no Portal da Transparência diverge da versão dos fornecedores. A padaria de Campo Largo teria recebido entre R$ 25 e 30 mil, no Portal consta pagamentos muito superiores, quase R$ 1 milhão em parcelas de R$ 28 mil[iii].

A empresa do leite condensado, cujo advogado é do mesmo escritório que advoga para a Havan, é de um casal aparentemente simples de Campos[iv], eles alegam que R$ 162 era uma caixa com 27 unidades de leite condensado de 395g, no Portal R$ 162 seria o preço de uma unidade de 395g[v]. Além disso, as empresas dos pais e do filho teriam vendido R$ 37 milhões ao governo, sendo o filho do casal de Campos um militar (ou ex-militar?), pastor, residente em Brasília, cuja empresa teria vendido R$ 25 dos 37 milhões vendidos pela família. Fora os mais de R$ 7 milhões vendido pela esposa do filho, a nora do casal de Campos.[vi]

Talvez, por todas essas questões, o ataque à imprensa no almoço com os cantores sertanejos pode não ter sido mera pirotecnia. Como se diz nas redes, "Galvão, sentiu". Ou seja, se é superficial discutir a utilidade do chiclete e leite condensado na caserna. Parece razoável que o preço dos produtos e a rota do dinheiro sejam investigados e esclarecidos. Mesmo que seja para afirmar a incompetência de gente das FFAAs para digitar informações no Portal da Transparência, o país precisa saber. Quem não deve, não teme.

 4.°) O contexto dos valores totais

Jair concedeu entrevista para o governista "Pingos nos is", Augusto Nunes já publicou no R7 e Caio Coppola já faz sua defesa. Todos explicando a utilidade do Leite Condensado e da goma de mascar para vida na caserna e que a quantidade deles foi menor que em outros governos. Além disso, todos eles alegaram – e não mentiram – que o valor empenhado não foi totalmente comprado e que as compras concluídas foram menores que 2018 e 2019. Pronto: estava concluída a nova narrativa. Bolsonaro, como sempre, é vítima da grande imprensa e da voracidade de uma oposição que torce contra o país.

O que não vai ser dito é que o volume necessário de compras de alimentos era muito menor que nos anos anteriores. Por exemplo, as universidades federais e institutos federais ficaram fechados por cerca de nove meses no ano de 2020 com a implementação do ensino remoto durante a pandemia, servidores do grupo de risco estavam em home office. Logo, gastar menos não é necessariamente decorrente da austeridade.

Eles também não vão mencionar que a cada ano aumenta a quantidade de Restaurantes Universitários completamente terceirizados, o que diminui a quantidade de órgãos federais que precisam licitar alimentações, uma vez que a empresa que assume a gestão do RU é quem faz tais compras. O estudo de Adriana de Paula e Amélia Bifano, publicado na Brazilian Journal of Development[vii], identificava que 70% dos restaurantes universitários nas instituições federais de ensino eram totalmente terceirizados em 2019, enquanto 20% adotava gestão mista e apenas 10% eram geridos pelo Poder Público e a tendência de terceirização total continuava em marcha. Isto é, comparar a quantidade comprada agora com a quantidade comprada há dois anos guarda esse problema básico: as unidades cujo fornecimento é totalmente público diminuem ano a ano. Segundo o estudo: "Estima-se que os serviços de alimentação instalados nas IFES estejam passando por um processo gradativo de terceirização total, visto a impossibilidade de alocação de servidores públicos em postos de trabalhos próprios da produção de refeições" (HOCAYEN & BIFANO, 2019, p. 32480).

Portanto, está claro que argumentar com esse grau de detalhamento não provoca grande engajamento nas redes. Porém, reduzir o problema das compras em “leite condensado”, “chiclete” e “R$ 1,8 bilhão” permitiu novamente que Jair e seus porta-vozes na imprensa revertessem o ônus em estratégia de mobilização dos asseclas. No fim e ao cabo, o maior engajamento em torno do assunto está mais vinculado ao embarque na oposição de segmentos da direita outrora aliados, do que propriamente pelo acerto no tom e no tema. Há mais a ser explorado no famigerado carrinho de compras. Bem como há mais e mais exemplos para contestar a imagem de austero que os defensores querem crer e fazer crer.

Enquanto isso, Luiz Eduardo Ramos, articulador político do Planalto, comandou negociações para liberação de cerca de R$ 3 bilhões em recursos extras para que 250 deputados e 35 senadores aplicassem em obras em seus redutos eleitorais em troca de votos nos candidatos à presidência da Câmara e do Senado alinhados ao governo. E o Brasil passou das 222 mil mortes, atingiu a maior média móvel diária desde julho, atingiu mais de nove milhões de casos, segue patinando fragorosamente no Plano de Imunização, o que corrobora com a conclusão do Lowy Institute, de Sidney (Austrália): temos a pior gestão da pandemia no mundo.

Novamente, a realidade contraria o discurso: o governo que anunciou o fim do “toma lá dá cá” abre os cofres do país que o presidente dizia quebrado para obter apoio político e a tão propalada escolha técnica nos empurra um militar na Saúde, cuja especialização em logística não serviu para evitar a falta de oxigênio em Manaus e nem para evitar problemas nos voos de distribuição do primeiro lote das vacinas. Como já era possível antever, não seria um parlamentar oriundo do baixo clero da Câmara com produtividade nula a acabar com as negociatas e nem mesmo a implementar a eficiência da gestão pública. Essa “nova política” – seja lá o significado desejado para o termo – nada tem de respeito aos recursos públicos e só pode sobreviver – em meio a chuvas e trovoadas – alimentando o imenso apetite do Centrão, que pouco se lixa com coerência ideológica, e permitindo que glutões perdulários saciem sua sanha, enquanto o povo luta contra a fome, a pandemia e a bufonaria de quem deveria liderar.

 

Jefferson Nascimento

Doutorando em Ciência Política - UFSCar

Membro do NEPPLA - Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos



4 comentários:

  1. Exatamente assim! Parabéns pelo verdadeiro e excelente artigo!

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  2. Muito obrigado pela atenção e pelas palavras.

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  3. Excelente análise e reflexão Jeferson. Parabéns caramada !!

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  4. Jefferson. Sempre lúcido em suas análises. Um promissor analista social.

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