“Para a classe
trabalhadora, é central identificar as contradições dessa disputas”
Confira
entrevista de Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, sobre a decisão
histórica adotada pelo STF sobre a prisão de Lula
Por
Fernanda Alcântara - Da Página do MST
|
Kelli Mafort, da Coordenação Nacional do MST. Foto: Reprodução |
Após a anulação de todas as condenações
contra o ex-presidente Lula, ainda no início deste mês,
nesta última semana foi acatado o habeas corpus do ex-presidente Lula sobre o
caso do Tríplex. Com a decisão, se determinou a parcialidade do juiz Sergio
Moro e, portanto, todo o processo, não apenas a sentença, foi anulado.
O MST esteve mobilizado diretamente na campanha que pedia a liberdade de
Lula, e em todos os cantos do país, justamente por acreditar que
“quando um povo decide garantir uma ação na defesa de sua existência, nada e
nem ninguém podem impedi-lo”. Durante os 580 dias em que Lula esteve preso em
Curitiba, a Vigília Lula Livre, montada ao lado do prédio da Polícia Federal,
denunciou que tratava-se de uma prisão injusta para tirar Lula das eleições de
2018.
Confira abaixo a entrevista Kelli Mafort,
da coordenação nacional do MST, sobre a resolução do STF que repara os
direitos de Lula, a suspeição de Moro e a posição do MST sobre estas decisões.
Como
o MST vê a decisão do Ministro Faccin sobre o caso Lula? Ela demonstra certa
mudança na postura do STF?
O ministro Fachin tem colocado a defesa
da Lava Jato acima da legislação brasileira, buscando justificar os atos
criminosos cometidos pela Operação. Sua decisão justa de anular os processos de
Lula e transferi-los para a instância competente da Justiça Federal em outro
Foro, infelizmente não se pautou no senso de justiça e nem no cumprimento dos
direitos cidadãos, mas sim na tentativa de livrar o juiz Sérgio Moro, acusado
de suspeição, bem como todo o esquema imperialista que envolve a Lava Jato.
Portanto, Fachin agiu para defender esses interesses, atuando como se fosse um
advogado do capital.
Consideramos que a operação Lava Jato
nunca se propôs a enfrentar o problema da apropriação indevida de recursos e
bens públicos por pessoas e grupos particulares, o alardeado combate à
corrupção. Ao contrário, a operação está situada numa disputa intra-burguesa,
na qual um projeto neodesenvolvimentista, como dos governos petistas, não tinha
mais espaço político, dado principalmente à crise estrutural do capital e a
diminuição da margem de concessão por parte do capital aos trabalhadores e
trabalhadoras.
Segundo o Dieese, o impacto da
operação Lava Jato para a economia brasileira foi de R$ 172,2 bilhões, que
deixaram de ser investidos no país de 2014 a 2017. Como resultado, cerca de 4,4
milhões de postos de trabalho foram eliminados. Os principais setores afetados
foram as cadeias produtivas de petróleo, gás e a construção civil, além da
queda na arrecadação de impostos, com perdas estimadas na ordem de R$ 47,4
bilhões que deixaram de ser arrecadados aos cofres públicos.
A operação Lava Jato mirou setores
estratégicos da economia brasileira, integrados há tempos com o capital internacional,
mas que mantiveram certa autonomia dos limites do possível num país capitalista
emergente, o que não durou muito.
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Foto: Arquivo MST |
O
império estadunidense, e não somente o ex presidente Trump, segue seu projeto
para a América Latina e especialmente para o Brasil: apropriação de bens
naturais, recursos estratégicos e subordinação de empresas com capital de
origem nacional. O capital não quer quebrar as empresas brasileiras, mas sim
subordiná-las, e nisso também há uma disputa entre as grandes potências do mundo,
pautadas nas mudanças da geopolítica, como foi possível ver ontem (24) com a
autorização do Conselho da Petrobras de privatização da Rfam para os Emirados
Árabes.
Por outro lado, sabemos que não é tarefa
da classe trabalhadora defender empresas do capital, seja ela de onde for. No
caso da empresa Odebrecht, alvo da Lava Jato, muitas foram as manifestações de denúncia por parte dos movimentos
populares sobre a apropriação da empresa ao programa de habitação popular ou
aquisição de usinas sucroalcooleiras em terras públicas.
Para a classe trabalhadora, o central é
identificar as contradições dessa disputa intra-burguesa expressa na Lava Jato,
desvelar o uso político de deslegitimação de governos democraticamente eleitos
como no caso de Dilma, denunciar a perseguição política à figura de Lula e se
colocar contra o golpe que se pôs em movimento a partir da Lava Jato. Em outras
palavras, a Lava Jato aprofundou a dependência brasileira e a resposta da
classe trabalhadora aos donos da Operação e do Golpe, deve sempre de se pautar
pela construção do projeto de poder popular.
Do lado dos burgueses, eles justificaram
o desmonte causado pela Lava Jato levantando a falaciosa bandeira da
anticorrupção e praticando uma série de crimes, com a suspensão de direitos
elementares de defesa, uso de técnicas de tortura psicológica e subjugando
diversas pessoas, principalmente Luiz Inácio Lula da Silva, que ficou preso
injustamente por 580 dias, foi impedido de concorrer as eleições presidenciais
de 2018 e teve sua dignidade ferida em muitas situações sensíveis, quando foi
impedido de estar na despedida de afetos diretos.
A
decisão que anula a sentença do caso do triplex é definitiva e não cabe recurso
de outras instâncias. Por que só agora tivemos esta resposta?
Não teria sido possível existir a
Operação Lava Jato sem a total anuência do STF, que abriu mão de seu poder de
instância maior, “transferindo” à suprema corte para a república de Curitiba, e
nisso TODOS ministros e ministras do STF
tem responsabilidade direta, pois corroboraram com prática de Lawfare (lei e
guerra), com uso manobras jurídicas e institucionais, acima de lei.
Assim,
apesar das recentes mudanças nas decisões do STF, não dá pra passar uma
borracha sobre toda a omissão dos ministros e ministras e também não dá pra
criar ilusões de que daqui pra frente tudo vai ser diferente.
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Manifestantes em Curitiba em apoio e solidariedade ao ex-presidente Lula em 2018. Foto: Arquivo Comitê Lula Livre |
Dito isso, a decisão sobre a suspeição de
Moro, considerando que ele é um juiz imparcial, é muito importante para a
frágil democracia brasileira, além de incidir diretamente na restituição dos
direitos políticos de Lula.
A decisão da turma é definitiva e deve
ser cumprida imediatamente, não precisando ser referendada pelo plenário do
Supremo, como quer a PGR, que num ato de exceção, protocolou pedido nesse
sentido. Lula é livre e no momento atual tem todos seus direitos políticos e
cidadãos restituídos, podendo inclusive se candidatar em 2022 para as eleições
presidenciais.
Porém, a conjuntura atual não nos permite
jogar todas as forças na disputa eleitoral de 2022, criando expectativas de uma
normalidade da alternância de poder, dentro das regras democráticas. Vivemos
uma democracia liberal e a disputa institucional é pautada por regras
estabelecidas pela classe dominante. Ainda assim, a tática eleitoral é
fundamental, desde que esteja subordinada a uma construção soberana de
autonomia dos povos e construção de projeto popular.
Portanto, as tarefas políticas do campo
popular e de esquerda tem que estar de olhos atentos em 2022, mas ao mesmo
tempo fortalecer o trabalho de base, a formação política e as formas de luta
possíveis com os condicionantes da pandemia. Lula, ao que parece, foi o que
melhor percebeu isso e no seu último discurso defendeu
tarefas imediatas para salvar a vida dos brasileiros e brasileiras, enfrentar o
projeto entreguista que está no poder e derrotar as mentiras de inspiração
fascista.
Outro elemento que causa preocupação é a
ameaça constante por parte das Forças Armadas de escalar o topo rumo a um
regime ditatorial. Temos um dos governos mais militarizados da nossa história e
as recentes medidas de cerceamento da liberdade política são sinais
importantes: uso da LSN contra manifestantes, retomada do PL do Terrorismo,
exibição de exercícios militares, autorização judicial de comemoração do 31 de
março etc.
Como
surgiu a ideia da Vigília de apoio ao Lula? Como o MST se inseriu nesta frente
de apoio a ele?
A Vigília Lula Livre foi um ato de
resistência popular, estabelecendo uma luta permanente em defesa da Democracia,
de denúncia à injustiça contra Lula e também uma medida fundamental para
garantir a integridade física de Lula.
Surgiu por uma decisão dos movimentos
populares, que acompanhando os rápidos acontecimentos que envolveram a prisão
de Lula, viram a necessidade de receber e prestar solidariedade ao presidente
desde o primeiro momento de sua chegada à sede da Polícia Federal de Curitiba.
Com
isso foi criada uma organização interna da Vigília, tanto do ponto de vista da
sua manutenção, mas principalmente para torná-la um espaço de formação
política, prática de expressões artísticas e também espaço para atos
político-culturais. Ela durou o mesmo tempo que durou a prisão do presidente
Lula e foi um grande aprendizado para o MST e para os movimentos envolvidos.
A Vigília também cumpriu uma tarefa de
trabalho de base junto à sociedade. Muitos foram os vizinhos da localidade que
passaram a se encantar com a organização do movimento popular e a persistência
de passar dias e dias na defesa de uma causa.
O juiz Sérgio Moro tentou várias vezes
acabar com a Vigília, através de atos normativos para impedir a liberdade de
expressão e manifestação garantidas pela Constituição brasileira. As forças
milicianas da direita também investiram contra a Vigília, através de provocações,
intimidações, chegando ao absurdo atentado em abril de 2018, onde duas pessoas foram baleadas.
Mas nada impediu que o povo organizado
continuasse se manifestando. Os “bom dia, boa tarde e boa noite presidente” não
foram calados. E assim é a história: quando um povo decide garantir
uma ação na defesa de sua existência, nada e nem ninguém podem impedir.
E esse é o sentido principal da Vigília: ela foi por Lula, pela democracia, mas
foi principalmente pelo direito do povo brasileiro ser respeitado como força
política, sujeito da história.
A
Vigília sofreu muitos ataques e ameaças desde 2018. Como isso tem sido para o
Movimento, lidar contra o ódio e a violência?
O Brasil é marcado pelo histórico
conflito de luta pela terra e isso tem como base a desigualdade social e a
criminosa concentração de terras. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, 1% dos
proprietários detêm 45% das terras agricultáveis. Esse ano completamos em 17
abril, 25 anos do massacre de Eldorado dos Carajás, que segue impune até hoje,
como muitos outros massacres ocorridos no campo, mas também nas periferias
urbanas contra pobres e negros. A violência no nosso país é estrutural e está
diretamente relacionada ao racismo e ao patriarcado, que silencia os
feminicídios, por exemplo, que se ampliam em larga escala.
Violenta também é a fome, que atinge 15
milhões de pessoas no Brasil. No momento atual enfrentamos um genocídio contra
o povo que sofre com a pandemia do vírus e da fome. Mortes que seguem um
minucioso projeto de morte conduzido pelo genocida que está no poder.
O
ódio de classe não é novo, mas com a ascensão da extrema direita no Brasil, ele
se escancarou. Mas com solidariedade, organização e luta, vamos derrotá-los.
Quais
as perspectivas para o próximo período, do ponto de vista de resistência, tanto
das que começaram em 2018, em defesa da democracia, até hoje, como vacina para
todas e todos?
A luta imediata é por Vacinação Já, Volta
Auxilio Emergencial Integral e Fora Bolsonaro. A paralisação pela vida do
último dia 24 já indicou o caminho: mesmo com as restrições da pandemia temos
que fazer lutas, pois não queremos morrer nem de vírus, nem de fome, e nem de
bala de miliciano, milico ou policial. Temos que nos organizar pois a história
pertence aos que lutam e transformam sua existência, coletivamente.
*Editado por Gustavo Marinho