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quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Essa é a vida que queremos?

"Us and Them" descreve aspetos da luta de classes.
Fotos: Edgar Oliveira

Por Edgar Oliveira


Essa é a vida que realmente queremos?
Conhecendo Roger Waters, seu trabalho realizado no Pink Floyd, suas letras, sua história de vida, seu olhar clínico e seu posicionamento crítico e contundente sobre fenômenos de ordem político-sociais, seria fácil prever que o homem de 75 anos que perdeu o avô para a primeira guerra e o pai para a segunda não iria se abster. Esse respeitável senhor que há décadas divide conosco suas frustrações e traumas, causou muito incômodo às inabaláveis estruturas da elite paulistana.


O título da turnê, “Us + Them”, faz referência à canção “Us and Them”, parte integrante do disco “The Dark Side of the Moon”, uma obra conceitual sobre a sociedade contemporânea e cada música aborda um tema referente à mesma: “Us and Them” descreve aspectos da luta de classes. Tal título e a imagem de divulgação da turnê, de duas mãos quase se tocando (breve intertextualidade do encontro das mãos na obra “A Criação de Adão”, de Michelangelo) sugerem uma mensagem de reconciliação. 

Como é de praxe entre os músicos ingleses, seu show iniciou no momento exato em que foi combinado, às nove da noite, porém, durante pouco mais de dez minutos a partir daí, o telão exibiu a imagem de uma pessoa sentada em uma praia, uma representação imagética de uma das novas canções, “The Last Refugee”, um contexto de paz e reflexão no qual o barulho do mar e o vento brando pareciam conter as emoções e ímpetos do início de todas apresentações muito aguardadas. Talvez, fosse esse o efeito psicológico que queria causar na plateia, pois sabia que mexeria em vespeiro.

Conforme o esperado, tanto as clássicas canções do Pink Floyd quanto as músicas do seu álbum mais recente, “Is This the Life We Really Want?” (essa é a vida que realmente queremos?) contextualizaram durante três horas os problemas nos quais a sociedade está mergulhada, como a situação dos refugiados, desigualdade social, racismo, o capitalismo nefasto e o corporativismo em esfera global. E política, é claro! Sabendo tocar para as elites de um país tão desigual, estaria ele tentando promover a empatia?

Segundo o Brasil 247, mais de 70 ataques às minorias foram realizados por bolsonaristas desde domingo.

Durante o intervalo, a palavra de ordem exibida no telão foi “resist”, verbo imperativo “resistir”, acompanhando outras expressões visando a conscientização da plateia: resistir à cleptocracia, à censura, à aliança profana entre igreja e estado, à violência, à poluição, à tortura, à escravidão moderna e ao tráfico humano, ao complexo industrial militar, ao antissemitismo, às oligarquias globais, denunciou o fascismo em ascensão no mundo e em uma lista de representantes por país, citou Bolsonaro.

Nesse momento, justamente no intervalo do show, as tensões se tornaram insuportáveis e denunciaram tanto a divisão da sociedade quanto a hipocrisia de todos aqueles que aplaudiram enquanto as críticas caíram sobre o presidente americano Donald Trump, mas não as aceitaram quando o alvo foi o Trump tupiniquim, que inclusive se vale do ex-assessor do americano, Steven Bannon, em sua campanha em redes sociais, divulgando além das fake News, os demais materiais que conhecemos muito bem por chegar aos nossos celulares todos os dias, ainda que condenemos seus conteúdos. Devemos resistir, disse o homem!

Logo após o retorno da banda, o telão exibiu a mensagem #ELE NÃO, fato que dividiu a plateia em aplausos e vaias. Antes de iniciar a próxima canção, ainda sob vaias, Waters, visivelmente perturbado e decepcionado, disse que em breve faríamos uma escolha presidencial e que apesar de não ter nada a ver com isso, ressaltava seu apreço pela democracia e pelos direitos humanos. Houve princípios de discussão, houve muita tensão. Durante a canção “Mother”, surgiu outra vez o #ELE NÃO. Entre aplausos e vaias, muitos foram embora. Waters continuou o espetáculo e despediu-se com muitas manifestações de carinho.

Se a intenção de Roger Waters foi promover a conciliação, não ocorrerá de imediato, mas todas as mensagens de empatia levam a entender seus fãs que, tendo ouvido suas músicas por décadas e ainda assim, sem compreender minimamente sua mensagem, receberam a contundente crítica de seu ídolo como uma facada. 

Canhoto do show.

Pessoas saíram perturbadas, decepcionadas, talvez com elas mesmas, pois é humanamente impossível desmerecer o maravilhoso espetáculo que foi apresentado. 

Aqueles que concordaram com cada vírgula, deixaram o estádio com um novo brilho, um novo fôlego, com a esperança de que muitos enxerguem o perigo oferecido por trás de soluções fáceis e recusem a imersão em realidades fabricadas. Felizes por saberem que um ídolo da importância e magnitude de Roger Waters integra sua luta.

Edgar Oliveira é  Educador musical, mestrando em educação, professor de educação básica na rede pública de ensino e fã não alienado do Pink Floyd.

Bibliografia

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