Por S.A Carolinna Martins
Analisando alguns contextos escolares em
instituições publicas periféricas de Ribeirão Preto, pude notar a exclusão
social e o apagamento da identidade cultural/social e a construção da imposição
de gênero sobre os sujeitos. Como
pedagoga, passei por varias escolas de contextos e corpos estruturais
diferentes, porém semelhantes no lidar machista e preconceituoso.
Sem fazer
menções especificas ou pontuar nomes, por uma questão ética, exponho aqui o que
encontrei nesses cenários de formação. Basicamente, no geral, as escolas contam
com murais de recados e espaços para a exposições de trabalhos dos alunos que, em
suma, encontravam-se vazios, apresentavam ambiente pobre em portadores de textos,
tanto nos corredores quanto nas salas de aula. A presença massiva de
estereótipos de gênero e traços europeus é muito marcante. Os ambientes de
utilização escolar como, por exemplo, banheiros, salas de aula e refeitórios,
são indicados com bonecas e bonecos, confeccionados em panos, papel cartão ou
EVA . Para indicar o sexo feminino, utiliza-se uma boneca de vestido rosa,
branca, loira, de olhos azuis e cabelo liso; o mesmo para representar o sexo
masculino, boneco loiro ou de cabelos castanho claro liso, branco, de olhos
claros e com roupinha azul (é claro). No
geral, em sua grande maioria, o corpo de alunos é composto por crianças pardas
ou negras, com cabelo crespos ou encaracolados e olhos escuros. Pensando na
construção do sentimento de pertencimento e reconhecimento de si, por esse
alunado dentro do ambiente escolar que estão inseridos, me questionei, todas as
vezes em que estive presente nessas escolas, sobre qual a representação desses
elementos indicativos em relação às crianças. Sob um olhar amplo,
reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e
econômicos, bem como a valorização da diversidade daquilo que distingue os
negros dos outros grupos que compõe a população brasileira; Também, requer a
adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da
diversidade, afim de superar a desigualdade étnico-racial na educação em seus
variados níveis escolares; exige que se questionem relações ético-raciais
baseadas em preconceitos que desqualificam os negros e salientam estereótipos
depreciativos, palavras e atitudes que expressam sentimentos de superioridade
em relação aos mesmos; valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos
de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por
seus descendentes na contemporaneidade; exige buscar compreender seus valores e
lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação;
implica criar condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em
virtude da corda sua pele, do seu cabelo, da cor de seus olhos, menosprezados
em virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos. Abro um
parênteses para falar sobre uma angustia particular que me assombra e tenho
certeza que é partilhada entre muitxs; AINDA não tenho um arcabouço rico
pertinente as discussões sobre apropriação cultural, por isso, muitas vezes me
questiono até onde eu, como mulher branca e cisgênero, tenho propriedade para
levantar estes questionamentos ou conhecimentos, seja em sala de aula, seja
fora dela. Pois bem, se pensar que nunca senti diretamente o quão cruel e
repugnante pode ser passar por uma situação de preconceito racial explicito, de
fato, apenas posso fazer proposições a partir de premissas imagináveis. Porém,
ao refletir sobre a importância do meu trabalho como professora, educadora e o
papel fundamental que todo educador desempenha na construção e desconstrução de
conceitos presentes na personalidade de diversos indivíduos presentes no
cotidiano escolar, chego a conclusão de que sim, posso e DEVO levantar tais
questionamentos e trazer conhecimento histórico sobre a lutas etno-raciais
passadas e presentes em nossa sociedade. Mesmo eu, sendo mulher branca e
cisgenero, ao trazer essas questões posso contribuir para o empoderamento
dessas crianças ou pré-adolescentes. Exemplificando, relato um momento que
vivenciei em sala de aula:
Era 1ºano do ensino fundamental, escola publica
e periférica, crianças entre 5 e 7 anos, majoritariamente pardas e negras. Foi
uma aula sobre construção de poemas e autoria, levei o poema Pele Negra no
intuito de que as crianças, também, pudessem acessar sua memória discursiva ao
registrar oralmente quais as lembranças e os significantes presentes
no poema lhes remetessem. Foi entregue uma copia
impressa para cada um, de forma que todos pudessem acompanhar a leitura. Ao passo que fui fazendo a leitura
dramática do poema percebi reações variadas nas crianças. Em se tratando de uma
sala em que a grande maioria eram negras e pardas, quando o poema repetia ao
final de todos os versos na parte A “sou preto”, tive a sensação de que eles
iam tomando consciência de si, de sua cor, como quem diz “ eu sou preto
também”. Aqui trago novamente a reflexão sobre que elementos representativos no
ambiente escolar, em que esse corpo de aluno esta inserido, esta incutindo como
padrão? As reações durante toda a leitura do poema me sugeriram que talvez eles
nunca antes tivessem ouvido tão abertamente ou sem marginalização, sem o tabu
costumeiro, o “ser preto” naquele ambiente. Quando eles repetiam “sou preto”,
soava em tom “empoderado”, como quem diz “sim, eu sou preto”, com a leveza que
o tabu social preconceituoso sob a palavra preto não permite. Entendo que, a
escola, enquanto instituição social responsável por assegurar o direito à
educação a todo e qualquer cidadão, deve se posicionar politicamente, contra
toda e qualquer forma de discriminação.
Os alunos demonstraram ter gostado muito do poema, achando-o
muito diferente de todos que já tinham visto. Abri para discussão das impressões causadas pela leitura,
durante todo esse momento de reflexão, as crianças compartilharam experiências
de discriminação vividas dentro e fora da escola. Também, houveram falas que
reiteraram a sensação que tive, crianças diziam “Olha, eu sou preto” ou “O Joãozinho é preto”, tomando consciência
de si e consciência dos outros à sua volta. A discussão abrangeu as
características diversas que compõe as sociedades. Feita a problematização,
falei sobre a estrutura de poema e compuseram coletivamente um outro poema,
inspirados tanto no poema original, quanto nas impressões e sensações advindas
do mesmo.
Ou seja, reitero aqui a importância de se falar sobre, de
questionar, de trazer as construções e discussões históricas pertinentes às
lutas sociais. Pois luta pela superação do racismo e discriminação racial é tarefa
de todo e qualquer cidadão, independentemente do seu pertencimento
étnico-racial, crença religiosa ou qualquer posição política. Essa atitude,
nada mais é, do que uma forma de
respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados pelos
africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade.
Agora, refletindo sobre os estereótipos de
gênero, estando nossa sociedade hoje em um contexto de lutas e discussões sobre
tais questões, quando a escola incute aos alunos que “meninas usam rosa e
meninos azul”, incute automaticamente também a ideologia de que tudo o que foge
à isso é errado e deve ser marginalizado. O conceito gênero foi um artifício teórico criado na segunda metade do século
passado, para designar as construções sociais sobre o masculino e o feminino.
Quando esse conceito foi apropriado por movimentos sociais como o movimento
feminista se transformou em uma importante ferramenta analítica e política, com
a finalidade de desnaturalizar as opressões de gênero, desconstruir verdades
absolutas e imutáveis sobre mulheres e homens, derrubar falsas fronteiras que
nos demarcam em estereótipos cruéis para os quais somos levados a acreditar
desde pequenos, separando-nos em pequenas caixinhas que limitam nossas
potencialidades, individualidades e perspectivas. Portanto, quando a
instituição escolar impõe aos alunos a idéia da bonequinha de rosa para
representar o sexo feminino e o bonequinho de azul representando o sexo
masculino, impõe à seus educandos uma ideologia de gênero fundamentalista que
imputa a natureza, a biologia e supostamente as características inatas dos
indivíduos, à carga pesada e histórica de desigualdade entre homens e mulheres,
cisgênero, que à grosso modo, acontece quando o individuo comporta o gênero
social e o sexo biológico em harmonia, ou transgênero, quando o individuo
transita entre as definições sociais de gênero, enfatizando que conceitos de
gênero não são diretamente ligados à orientação sexual desses indivíduos.
Fecho minhas breves reflexões com o seguinte
pensamento: Entre erros, receios e acertos, o aprimoramento. É desta
forma que enxergo a necessidade de
se conhecer, de se apropriar e de passar a diante a historia social cultural
das lutas de movimentos como movimentos étnicos, de classe, questões de gênero
ou sexualidade. Apenas dessa forma podemos trazer algum tipo de diferença para
as pessoas à nossa volta. Encerro com o poema produzido pelas crianças do
relato acima:
NÃO TEM PROBLEMA SER DIFERENTE
UM É BRANCO E O OUTRO É
NEGRO.
UM É GORDO E O OUTRO É MAGRO.
AZUL, VERMELHO, ROSA, VERDE,
VARIAS CORES.
ROSTOS DIFERENTES
NOMES DIFERENTES
TAMANHOS DIFERENTES
SINFONIA DE CARACTERISTICAS
SER DIFERENTE É BOM, PORQUE
TUDO FICA MAIS LEGAL
E MUITO MAIS COLORIDO.
SE NÃO FOSSEM AS CORES, O
MUNDO SERIA UMA CHATICE!
1ºB,
E.E.HERMINIA GUGLIANO, MAIO DE 2016.
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