(foto: Agência Fapesp/Divulgação) |
Médicos da USP aplicaram pela primeira vez imunoterapia que
usa células T do paciente para tratar linfoma gravíssimo
Por Silvana Salles - Jornal da USP
Um funcionário público aposentado de 63 anos, morador de
Belo Horizonte, chegou ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da USP, no interior de São Paulo, com um quadro de saúde
gravíssimo. Lutando contra o câncer desde 2017, ele já havia passado por
radioterapia e quimioterapia, sem sucesso. A batalha parecia fadada à derrota
quando os médicos conseguiram autorização para tentar uma nova terapia, que
levou à remissão total da doença. Foi assim que o aposentado se tornou o primeiro
paciente da América Latina tratado com células CAR T.
“Esse paciente é portador de um linfoma não Hodgkins
avançado, uma doença agressiva. Ele já foi submetido a quatro linhas de
tratamento prévias, teve uma resposta muito ruim, inclusive refratária a algumas
delas, e veio justamente para fazer o CAR T-cell”, conta Renato Cunha, médico
que cuida do caso em Ribeirão Preto. Cunha está à frente da tarefa de
desenvolver uma plataforma brasileira de terapia com células CAR T no âmbito do
Centro de Terapia Celular (CTC), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) sediado na USP.
CAR T-cell, do inglês, significa “célula T com receptor de
antígeno quimérico”. O complicado nome indica que o tratamento usa células
geneticamente modificadas. Trata-se de uma terapia recente para combater o
câncer. Nos Estados Unidos, a FDA (Food and Drug Administration, um órgão de
vigilância sanitária semelhante à nossa Anvisa) liberou a terapia para uso
comercial em 2018. Lá, como em outros países ricos, os resultados são tão
promissores que renderam aos seus precursores o prêmio Nobel de Fisiologia e
Medicina no ano passado.
“O câncer, todo mundo sabe, é um desafio. Os tratamentos têm
melhorado muito e esse tratamento com as células CAR T é um dos mais
promissores que existem no momento. É um tratamento disponível em poucos
países”, afirma o médico hematologista Dimas Tadeu Covas, professor da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e coordenador do CTC. “Nós
desenvolvemos uma tecnologia toda nossa, toda nacional, dentro de um instituto
público, dentro de um hospital público, apoiado pela USP, pela Fapesp, pelo
CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e pelo
Ministério da Saúde. Portanto, (é) um tratamento que se destina aos nossos
pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS)”, completa o professor.
O principal problema da terapia com células CAR T é o custo.
Segundo Covas, nos EUA, a produção das células e as despesas hospitalares,
juntas, chegam a custar US$ 1 milhão (mais de R$ 4 milhões). Covas calcula que
a plataforma brasileira poderá baratear o tratamento em até 20 vezes, na
comparação com o custo de um produto comercial. Além disso, a ideia é que o CTC
mantenha aberto o protocolo de produção de células CAR T, permitindo que outros
laboratórios reproduzam as técnicas para cuidar de mais pacientes.
“Representa um grande avanço científico, porque é um
tratamento muito recente, uma tecnologia protegida por segredos industriais. E,
por outro lado, é um grande avanço em termos sociais. Vamos poder oferecer
isso, daqui a algum tempo, para a nossa população“, comemora o coordenador do
CTC.
Como funcionam as células CAR-T?
A terapia com células CAR T não é simples. Exige uma
estrutura laboratorial complexa, certificada pela Anvisa e com boas práticas de
produção. Exige também hospitais com capacidade para fazer transplantes de
medula óssea, bons laboratórios e bom suporte de tratamento intensivo. Uma vez
que as condições permitam, tudo começa com uma amostra de sangue do paciente.
Nosso sistema imunológico é composto majoritariamente de
dois tipos de células especializadas. Um deles é o linfócito B, responsável por
produzir anticorpos. O outro é o linfócito T, que funciona como um guarda do
nosso organismo – é ele que ataca as bactérias invasoras, por exemplo. No caso
do tratamento realizado em Ribeirão Preto, o câncer do paciente era causado por
linfócitos B doentes. E o que os pesquisadores fizeram foi extrair os
linfócitos T da amostra de sangue do paciente para modificá-los geneticamente.
No laboratório, eles introduziram nessas células um vetor –
uma espécie de vírus sintético que carrega no DNA a habilidade de reconhecer
determinadas substâncias de interesse. Os linfócitos T modificados ganharam,
então, um receptor que lhes permite reconhecer o alvo terapêutico. Foi assim
que os linfócitos T se tornaram células CAR T.
Posteriormente, as células CAR T foram reintroduzidas no
paciente. Aqui, o alvo era uma proteína chamada CD-19. Como a proteína CD-19
está presente na membrana dos linfócitos B doentes, agora as células
modificadas conseguiam reconhecer e destruir as células cancerosas.
Uso compassivo
Como os estudos clínicos do CTC com células CAR T ainda não
estão abertos, o paciente mineiro conseguiu o tratamento na modalidade de uso
compassivo. “No tratamento compassivo o paciente te procura e pede para ser
tratado como última alternativa, porque ele não tem mais nenhuma opção. Geralmente,
para fazer uso compassivo, é aquele paciente que poderia entrar em algum estudo
clínico, mas ele não preenche critérios. Isso surgiu para ele não ficar sem
tratamento”, explica Renato Cunha.
Foi justamente este o caso. A família do paciente havia entrado
em contato com hospitais no exterior que fazem essa terapia, mas a burocracia
envolvida e o alto custo do tratamento tornavam a viagem proibitiva. Eles
descobriram o nome de Cunha por acaso, ao encontrar uma reportagem do final do
ano passado que contava que o médico da USP havia ganho um prêmio da Sociedade
Americana de Hematologia (ASH, em inglês) para desenvolver o processo de
produção de células CAR T no Brasil.
“Ele escreveu para mim e eu respondi, falei para ele que a
gente não estava com o protocolo (de estudo clínico) aberto. Mas ele falou,
‘olha eu gostaria muito de ir a Ribeirão conversar; mesmo que a gente não
consiga fazer, eu gostaria de ter a sua opinião sobre o meu tratamento'”,
relata o médico.
O aposentado e o filho foram a Ribeirão Preto conversar com
Cunha e seguiram em contato com o médico depois. Eles tentaram o tratamento com
uso compassivo de um medicamento chamado Polatuzumab, porém, quando o câncer se
espalhou ainda mais, decidiram insistir na possibilidade do CAR compassivo. Por
sorte, a equipe de Cunha havia recém-finalizado as etapas de validação
laboratorial do processo de produção das células.
O paciente deu entrada no Hospital das Clínicas da FMRP no
começo de setembro. Estava muito magro, tinha suor noturno, dor nos ossos e
estava usando a dose máxima de morfina. Ele foi submetido a uma aplicação de
células CAR T, teve uma reação inflamatória conhecida pelos médicos como
“tempestade de citocinas” e ficou semanas em observação. A tempestade de
citocinas foi um importante indicador de que as células CAR T haviam encontrado
seu alvo. Mais de 30 dias depois, ele não apresenta mais sintomas clínicos nem
laboratoriais da doença e deve receber alta no próximo sábado (12). “Ele tirou
a morfina, não tem mais suor noturno, voltou a ganhar peso e a dor que ele
sente é decorrente de uma fratura que ele teve nas costas por causa do
linfoma”, conta o médico do CTC.
Cunha destaca que, dos testes feitos em laboratório com as
células CAR T ao atendimento do paciente, tudo foi feito na cidade do interior
de São Paulo, o que demonstra que os pesquisadores conseguiram dominar o
processo. Agora, poderão se dedicar a testar outros vetores, outros alvos
terapêuticos e criar um produto que possa ser adotado pelo SUS.
“É como, por exemplo, produzir uma aspirina. Você aprende a
produzir um comprimido. Naquele momento aspirina, mas depois pode ser um
anador, pode ser um tilenol. O importante é você ter essa tecnologia feita e
bem adaptada ao nosso cenário. É importante dizer isso, porque a gente agora
tem uma independência, a gente tem a tecnologia que a gente precisa”, diz o
médico.
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