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sábado, 16 de maio de 2020

SUS, 32 anos: esta terra tem dono - Por Paulo Capel Narval


Ao completar 32 anos em 17 de maio(1), o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das poucas instituições brasileiras, além dos símbolos pátrios e da moeda nacional, presente nos 5.570 municípios e no Distrito Federal. Também estão nesses territórios o Flamengo (e provavelmente o Corinthians), por seus quase 70 milhões de aficionados, e algumas denominações religiosas. Mas é o SUS que marca a presença institucional do Estado federativo brasileiro.
A Constituição da República, promulgada em 1988, dedica o artigo 196 ao direito de todos à saúde e afirma ser “dever do Estado” assegurar o seu exercício. O Brasil é um dos poucos países que reconhecem, constitucionalmente, esse direito. Vale a pena, a propósito, rever a íntegra do art. 196, expresso nos seguintes termos “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Poucos se dão conta do quão avançado é este artigo, ao vincular as “políticas sociais e econômicas”, que devem ser orientadas para a “redução do risco de doença e de outros agravos”, à ideia de saúde. Assim, além de assegurar o direito de todos ao “acesso universal e igualitário às ações e serviços” de saúde, a Constituição de 1988 reconhece e valoriza positivamente o papel do conjunto das políticas públicas na “promoção, proteção e recuperação” da saúde. Para todos, sem exceção.
O art. 197 afirma a “relevância pública” das ações e serviços de saúde, motivo pelo qual cabe “ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”. As leis federais 8080 e 8142, ambas de 1990, regulamentam o SUS, cujos princípios e diretrizes são objeto dos artigos 198 a 200 da Carta Magna de 1988.
Em artigos anteriores no site A Terra é Redonda (‘Arredondando a saúde‘, ‘SUS: terra arrasada‘ e ‘SUS: terra de ninguém‘) abordei as importantes conquistas do nosso sistema universal para a saúde pública brasileira nas últimas três décadas e identifiquei suas principais dificuldades, consubstanciadas no crônico subfinanciamento que tem levado ao sucateamento de instalações e equipamentos e à precarização dos vínculos trabalhistas com notável desvalorização dos profissionais de saúde. Desvalorização que atinge também, e injustamente na maioria das vezes, seus dirigentes e gestores. É frequente ouvir que o SUS “é bom na teoria, mas é mal gerido” e que este seria um dos seus principais problemas. Muitos secretários de saúde e dirigentes de hospitais e unidades de saúde são apresentados publicamente pela imprensa como se fossem insensatos e incompetentes. A solução, dizem, seria privatizar e “trazer para o SUS a excelência da gestão competitiva, a experiência do mercado”. A Emenda Constitucional 95/2016, que congelou por 20 anos os recursos destinados à saúde pública, está asfixiando ainda mais o subfinanciamento do SUS. Segundo o Conselho Nacional de Saúde, R$ 22,5 bilhões foram retirados do sistema apenas nos últimos dois anos. Esse quadro é agravado pela fragmentação da gestão, que vem sendo compartilhada pela União não apenas com Estados e Municípios, como deve ser. Ao longo desses 32 anos foram gradativamente se imiscuindo na gestão do SUS também algumas centenas de empresas privadas, ditas inadequadamente “organizações sociais” de saúde (OSS), dentre as quais instituições filantrópicas (‘Santas Casas de Misericórdia’, por exemplo), muitas das quais operam em sintonia com interesses mercantis, contrariando decisões de conselhos e conferências de saúde. Indagado sobre a legalidade da transferência de recursos públicos para OSS, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que sim, em 16/5/2015. Ocorre que algumas OSS apresentam desvio de finalidade em suas operações, pois são controladas por grupos de empresários inescrupulosos, que as compram e vendem como se fossem quitandas, supermercados, lojas de eletrodomésticos ou empresas quaisquer. Outras são controladas por quadrilhas que se especializaram em roubar dinheiro público. Nada têm de social, nem se referem a comunidades ou grupos étnicos. São, apenas, quando muito, empresas gerenciando o exercício do direito social à saúde, operando onde deveria estar o Estado, seja pela administração direta, seja pela indireta. Mas, sobretudo, apenas o Estado, com exceções a essa regra devidamente justificadas e aprovadas, periodicamente, por conselhos de saúde e demais órgãos de controle do Estado. Por outro lado, muitas instituições filantrópicas não passam daquilo que, no jargão dos trabalhadores do SUS, se conhece como “pilantrópicas”, pois seus balanços estão sempre no vermelho, enquanto alguns de seus dirigentes ocultam gordas contas bancárias. Não obstante, ou até mesmo por isso, estão sempre a pedir mais e mais recursos complementares a governadores e prefeitos e, sobretudo, diretamente no Congresso Nacional, onde estão deputados e senadores cujas campanhas eleitorais são “fortalecidas”, legal ou ilegalmente, com dinheiro público oriundo de fundos que deveriam financiar o SUS. A filantropia, como expressão do nobre sentimento de caridade, passa longe, muito longe das “pilantrópicas”.
Embora ocultado sistematicamente da população pela grande mídia mercantil, que o torna invisível deliberadamente para agradar às empresas cujos comerciais a sustentam, e agredido diuturnamente por razões ideológicas, o SUS ostenta números que deixam clara a sua eficiência, conforme enfatizei em ‘SUS: terra arrasada‘. Há problemas de gestão, que pode e deve ser permanentemente aprimorada, como de resto toda a administração pública, mas, bem ao contrário do que divulga a imprensa comercial, é inegável a eficiência do sistema de saúde brasileiro.
Agora, em 2020, com a pandemia da COVID-19 o SUS se defronta com mais um teste duríssimo à sua capacidade de enfrentar e resolver problemas de saúde pública. Com efeito, ainda que subfinanciado o sistema vem resistindo à pandemia e, sobretudo, aos ataques brutais que lhe são desferidos sem cessar a partir do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios. Não bastassem os atropelos à razão perpetrados pelo atual ocupante do Planalto, que com sua fanfarronice e aparições espalhafatosas não apenas atrapalha ações técnicas, mas cria dificuldades adicionais ao enfrentamento da COVID-19, também o Ministério da Saúde escolheu não agir e, simulando que faz alguma coisa, deixa a pandemia seguir espontaneamente seu curso em todo o Brasil. Estados e municípios que façam o que quiserem e como puderem, parece ser o lema ministerial, cujo atual titular, Nelson Luiz Sperle Teich, é um presente de grego dado por Bolsonaro à cidadania em comemoração aos 32 anos do SUS. Na semana em que nosso país registrou oficialmente mais óbitos e casos confirmados de COVID-19 do que a China, cuja população é 6,5 vezes maior do que a brasileira, Teich dizia-se preocupado com a situação financeira de hospitais privados(2). Um evidente SUScida(3), posto no comando nacional do sistema de saúde com a missão de fazer apenas o que Bolsonaro mandar, mas seguir falando, como fazia seu antecessor, obviedades sobre a pandemia. Reitera, sem convicção, que “a gente, como ministério, nunca se posicionou para a saída do distanciamento”, mantendo a postura “científica” da pasta. Especialista em contorcionismo verbal, assegurou que o presidente “está preocupado com as pessoas, com a sociedade”. Agora sem Mandetta, mas com um simulacro à altura, e anódino para Bolsonaro, a Estratégia da pinça segue seu curso. Antes dele, notabilizou-se como eminente SUScida no comando do SUS, o ministro da Saúde de Michel Temer, Ricardo Barros, para quem “o tamanho do SUS” precisava “ser revisto”(4). Ambos, Barros e Teich, foram parar no cargo de modo legal, mas ilegítimo, pois jamais “moveram uma palha” sequer na dificílima construção do sistema. Suas biografias só se encontraram com a trajetória do SUS no exercício do mais elevado posto da Saúde brasileira.
Não obstante esses SUScidas, o SUS vem ganhando novos adeptos (SUSistas)(3), alguns inusitados até há pouco tempo, como jornalistas(5) e empresários(6) tidos como expressão do pensamento neoliberal e, portanto, em princípio avessos à presença do Estado, mesmo em assuntos relacionados ao exercício de direitos sociais. Prova de que a inteligência, assim como a ignorância, em suas diferentes modalidades, não se vincula a esta ou aquela opção ideológica. Antes mesmo da crise pandêmica de 2020, mas ainda em outubro de 2019, quando a América Latina foi sacudida por levantes massivos no Equador e no Chile, o SUS foi visto como uma instituição necessária para atenuar os efeitos de eventuais “problemas similares” no Brasil, caso prevalecesse a agenda ultraliberal defendida pelo ministro Paulo Guedes, o “mãos-de-tesoura”, alcunha a ele dedicada por sua obstinação em “cortar, cortar, cortar”, avançando (como efetivamente ocorreu) sobre o sistema de proteção social brasileiro, do qual fazem parte, ao lado do SUS, a previdência e a assistência social.
Mas foi com a pandemia, porém, que mudou radicalmente a visão de muitos sobre o SUS, agora visto como o esteio sobre o qual está sendo possível enfrentar a COVID-19, apesar da banalização da doença pelo governo federal e a hostilidade à ideia de colocar o pensamento científico, e não o ‘terraplanismo’ sanitário, orientando as ações de prevenção e controle, ou como impõe a Constituição de 1988, as “ações e serviços” para “promoção, proteção e recuperação” da saúde.
É a capilaridade do SUS, com sua presença em todo o território (são cerca de 43 mil Unidades Básicas de Saúde – UBS e 550 Unidades de Pronto Atendimento – UPA) compondo o que se define como rede básica, formando um conjunto articulado e coordenado, aliado à capacidade de gestão compartilhada e participativa (de usuários organizados em conselhos) que confere ao SUS competência e potência para resistir ao novo coronavírus e aos arroubos ‘mandonistas’ da tradição autoritária que voltou a tomar de assalto a República brasileira. O SUS resiste e está na vanguarda do enfrentamento da pandemia da COVID-19. O sistema é, efetivamente, uma fortaleza, a despeito de suas conhecidas fragilidades e vem sendo construído por meio de muita ação política dos atores interessados em sua consolidação e desenvolvimento como instituição pública. É importante ressaltar este aspecto, pois o SUS é uma política de Estado e, portanto, não se vincula a este ou aquele partido político, a este ou aquele governo, ainda que partidos e governos o valorizem em graus variados ou mesmo não o valorizem. Por isto, o que ele é, concretamente, no país e em cada município, resulta de ações políticas, negociações, acordos, pactuações. Mas isto é sua fortaleza, não uma vulnerabilidade. Decerto que a politicagem e o clientelismo devem ser repudiados. O que se deve fazer para rejeitar tais práticas é a defesa e o aprofundamento da democracia e dos princípios que regem a administração pública. Não, como por vezes ocorre, negando a política, pois não é “a política” que prejudica ou atrapalha o SUS, mas o oposto. É justamente a negação ideológica da política (e, registre-se, dos partidos políticos e da democracia), como faz o governo Bolsonaro, em sua cruzada fundamentalista cristã de instalar no país o “conflito permanente”, de base ideológica e negadora do papel essencial da política, o que prejudica e atrapalha muito a elaboração e implementação de políticas públicas produtoras e protetoras de direitos. Inclusive o direito à saúde. A propósito, vale enfatizar sempre: “Saúde é democracia. Democracia é saúde”, como repetia Sérgio Arouca e como instaurou a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) e reiterou sua 16ª edição, realizada em 2019.
Ao contrário do que pensam Bolsonaro (“eu tenho a caneta”; “quem manda sou eu”) e seu ministro da Saúde (“não temos informações”; “o governo não sabe a realidade dos acontecimentos”; “não sei e ninguém sabe”), o SUS tem dono e tem rumo. Seus donos são os brasileiros(as) que o financiam com os impostos que pagam. Seu rumo, definido por usuários e profissionais de saúde em Conferências de Saúde, periodicamente realizadas em municípios, estados e nacionalmente, é o da afirmação do direito à saúde e da recusa a transformar ações e serviços de saúde em mercadorias. Não é pouca coisa.
Para o “novo” mundo que advirá no pós-COVID-19, Castells(7) aponta para novas formas de viver, pensar e organizar a economia, revitalizando o setor público e reformando-o, para livrá-lo da burocracia e da politicagem. Contar com o SUS para reorganizar a intervenção do Estado brasileiro nas políticas econômicas e sociais que as façam operar para a “redução do risco de doença e de outros agravos” e assegurar o direito de todos ao “acesso universal e igualitário às ações e serviços” de saúde, é um excelente ponto de partida. Mas será necessário, para isto, derrotar politicamente a arrogância do governo federal em suas relações com os demais entes federativos. O lamentável episódio do impedimento da participação dos representantes oficiais de Estados e Municípios na cerimônia de posse de Nelson Teich, em 17/4/2020(8), fato inédito na história do SUS, mostra o tamanho da incompreensão da cúpula do governo sobre o que é e como funciona o SUS, quem é o seu dono e qual é o seu rumo. O posterior pedido de desculpas do ministro só piorou as coisas. Reuniões diárias, ainda que virtuais na atual conjuntura, sobre a gestão nacional do SUS, incluindo medidas relativas ao enfrentamento da pandemia que nos assola, contando com a participação de representantes da União e de Estados e Municípios, simplesmente não ocorreram nas semanas que se seguiram ao desatino da posse. Teich vem sendo evasivo e inócuo nas reuniões diretas com governadores. As promessas do governo federal relacionadas com a compra e distribuição de equipamentos de UTI e insumos elementares, como luvas, máscaras e outros equipamentos de proteção individual, vem demorando “uma eternidade” para se concretizar. A convicção que se generalizou entre gestores do SUS é que o sistema está sem seu comando nacional, em um dos momentos mais graves de sua história. Manaus é hoje apenas o exemplo mais eloquente das consequências da omissão do gestor federal, e do abandono a que vêm sendo submetidos os municípios brasileiros, fato que se agrava dramaticamente nas grandes cidades, sobretudo as metrópoles.
Cabe agora aos representantes de Estados e Municípios tomar as rédeas da gestão nacional do SUS e mostrar que, aos 32 anos, o SUS é uma “terra com donos”, um patrimônio efetivamente nacional, e que não pode ser reduzido a mais um “programa do governo federal”. É preciso exigir respeito aos entes federativos para que se construam soluções nacionais para problemas que extrapolam, e muito, o restrito âmbito de ação do governo federal, embora este desempenhe papel central estratégico. Será necessário, sobretudo, defender o SUS como um sistema universal de saúde, pois uma das mais importantes lições da pandemia da COVID-19 foi demonstrar a fragilidade da estratégia conhecida como “cobertura universal”, segundo a qual ações e serviços de saúde não precisam ser direitos inscritos nas constituições dos países, nem que governos invistam para concretizar esse direito, sendo suficiente que assegurem a todos a titularidade de ‘planos de saúde’ (que, aliás, não são nem ‘planos’ nem muito menos de ‘saúde’).
O que se está a ver em todo o mundo é que o mercado e sua tão decantada autorregulação, falha miseravelmente quando se trata de saúde. Situações extremas, como a da COVID-19 mostram que nem vouchers, cheques-consultas ou planos de saúde (“top” ou “populares”), nem mesmo ‘dinheiro-na-mão’, são capazes de gerar recursos e, sobretudo, competências, onde isto não existe. Ao contrário, constata-se, uma vez mais, que países que contam com sistemas universais de saúde vêm respondendo de modo mais apropriado aos desafios da pandemia, quando comparados com aqueles que adotaram a estratégia de mercantilizar cuidados de saúde. O exemplo dos Estados Unidos é apenas o mais expressivo, mas não o único. Aliás, lá, como aqui, os chefes do poder executivo desdenham da pandemia, aumentando-lhe o risco ao repetirem declarações cuja única finalidade é agradar o segmento mais desinformado dos seus eleitores. Partidarizam a epidemia. Atrapalham muito. O professor Marcio Moretto, da EACH/USP, analisou a correlação em municípios paulistas com mais de 300 mil eleitores, entre a porcentagem de votos em Bolsonaro no primeiro turno das eleições 2018 e o grau de adesão ao distanciamento social, a partir de 25/3/2020. Encontrou forte correlação negativa (r = -0,77). Quem mais votou no presidente menos seguiu as orientações das autoridades sanitárias do SUS e, também, a Organização Mundial da Saúde.
Fonte: Moretto M (EACH/USP, 2020).

Atitudes e declarações de chefes de Estado, e de governo, são muito importantes no enfrentamento de epidemias, pois tais cargos, cujo exercício requer equilíbrio e compostura, conferem credibilidade às ações e impõem respeito. Em uma federação de dimensões continentais como o Brasil isto é ainda mais importante. Sem essa credibilidade e respeito, como está acontecendo no Brasil, a função de coordenação do enfrentamento da epidemia acaba tendo na figura do presidente da República não o seu principal gestor, mas o principal problema. Lamentavelmente, Bolsonaro firmou-se como um dos principais entraves às ações, não apenas do governo federal, mas dos demais entes federativos responsáveis pelo SUS em todo o país. Estados e municípios, ademais de lidarem com as suas dificuldades específicas, se vêm no dever de tentar neutralizar os efeitos danosos das ações com origem no Palácio do Planalto, que persiste, irresponsavelmente, em projetar à nação a ideia de que não enfrentamos mais do que uma “gripezinha”, que pode ser enfrentada com jejum e fé, combinados com “remédios” milagrosos que “o nosso hospital X descobriu”. Essa atitude, tão negativa quanto farsescamente otimista, induz comportamentos individuais e práticas empresariais que ampliam o número de vítimas fatais da pandemia. O “terraplanismo” sanitário que molda a presença do presidente da República no cenário epidêmico, com suas ações e omissões como Chefe de Estado, se transformou, assim, em parte relevante do problema que enfrentamos para debelar a pandemia.
Aos 32 anos o SUS segue convivendo com indefinições relevantes que lhe dificultam o presente e ameaçam o seu futuro e que precisam ser enfrentadas, agora mais do que nunca. Não são problemas novos, mas foram agravados nos últimos anos e ganharam ênfase com a pandemia da COVID-19. Possibilidades de solução vêm sendo identificadas em conferências de saúde e outros fóruns, mas infelizmente não têm sido valorizadas no plano político por tomadores de decisão. Dentre elas estão, além da revogação da EC-95/2016 e o teto de gastos que asfixia financeiramente o SUS, a urgente recuperação das perdas de recursos imposta ao sistema desde a sua criação, bem como ao conjunto do sistema de Seguridade Social, de que trata o Capítulo II da Constituição de 1988, cuja fragilidade como instrumento de proteção social ficou evidenciada pela incapacidade do governo brasileiro em fazer chegar, com a urgência devida, recursos destinados à subsistência das pessoas. Milhões de cidadãos foram humilhados em todo o país, em filas e aglomerações deprimentes e não recomendadas epidemiologicamente, para receber o auxílio de R$ 600,00 que demorou várias semanas para ser liberado, quando se dispõe de tecnologia e recursos para executar tais operações em algumas horas, ou no máximo alguns dias. É urgentíssimo desenvolver, fortalecer e consolidar o sistema brasileiro de Seguridade Social, assegurando-lhe os recursos de que necessita para proteger a cidadania. Essa recuperação da capacidade financeira da Seguridade Social deve ser utilizada, no âmbito do SUS, para criar uma carreira multiprofissional interfederativa, de abrangência nacional e base administrativa nas regiões de saúde, sob gestão conjunta da União, Estados e Municípios. A essa “Carreira de Estado do SUS(3) devem ficar vinculados todos os cargos de direção e assessoramento de sistemas e serviços públicos de saúde, cujo provimento deve obedecer a critérios técnico-administrativos e resultar de prévia submissão e indicação de titulares aprovada pelos respectivos conselhos de saúde, dos quais façam parte as representações profissionais com atuação no SUS, em processos de gestão participativa e democrática, visando a coibir o clientelismo político-partidário, o eleitoralismo e o nepotismo na administração pública.
Alguns, como Angela Merkel, a primeira ministra alemã, têm se referido à pandemia da COVID-19 como se estivéssemos em uma guerra. Fala-se em “orçamento de guerra”. Outros comparam o impacto econômico com o causado pela Segunda Guerra Mundial. Os “Pracinhas”, soldados veteranos do Exército que combateram o nazifascismo naquele conflito são hoje, com justiça, reconhecidos como heróis nacionais e, com suas famílias, amparados pelo Estado brasileiro. Tratamento similar deveria ser dado aos profissionais de saúde vitimados fatalmente pela COVID-19, conforme propõe o Conselho Nacional de Saúde. Afinal, na “guerra da COVID-19”, tais profissionais são uma espécie de “Pracinhas” do SUS, cujas famílias e dependentes também merecem, em suas ausências, amparo do poder público.
Profissionais de enfermagem realizaram, em 1º de Maio, ato em comemoração ao Dia Mundial do Trabalhador, com um protesto, silencioso e pacífico, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Denunciaram, com o apoio do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal (SindEnfermeiro), o descaso com suas condições, recursos e ambientes de trabalho, sobretudo a falta de EPI. Buscavam, também, chamar a atenção para o número de mortes causada pela COVID-19 e alertar para a importância do distanciamento físico no controle da pandemia. Todos utilizavam máscaras de proteção facial e mantiveram o distanciamento mínimo recomendado de dois metros. Ainda que tenham se manifestado pacificamente, os participantes foram alvo de hostilidades, insultos e agressões por um grupo de fanáticos apoiadores do governo federal, envoltos em ou empunhando bandeiras do Brasil(9).
Os profissionais da saúde, com justiça aplaudidos em muitas noites do outono 2020 em todo o país, por sua dedicação e coragem no enfrentamento da COVID-19, precisam ser reconhecidos como o que efetivamente são: profissionais. Por isso, nada mais justo do que criar, com elas e eles, uma Carreira de Estado do SUS, pois sem trabalhadores da saúde não há SUS. E sem o SUS viveríamos em uma espécie de “inferno sanitário”(10).

Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP
Nota: Publicado originalmente no site A Terra é Redonda, em 6/5/2020.

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