Matheus Arcaro para o Blog O Calçadão |
Albert Camus
dizia que o anseio de liberdade é o princípio de qualquer revolução. Eu,
pretensiosamente, completo a sentença: e a ilusão de liberdade é a base para a
conservação. Muito mais perigosa que qualquer ditadura é a pseudoliberdade. Na
ditadura, o inimigo tem rosto. Sabemos (ou pelo menos intuímos) quando devemos
atacar ou recuar. A liberdade ilusória é como o câncer que se espalha sob a
pele saudável. Marx, certa vez, afirmou que há utopias mais reacionárias que
sistemas autoritários. Faz sentido: quem acredita ser livre, não tem porque
reivindicar liberdade.
Livres para assistirem jogos de futebol
ou comprarem celulares de última geração, as pessoas agradecem a Deus pela vida
que têm. E riem e se divertem. E depois dormem feito anjos porque estão
cansadas do dia de trabalho e, principalmente, porque precisam repor as
energias para a jornada do dia seguinte. E assim o sistema se autoalimenta.
Obviamente, são muitos os artifícios
para insuflar no sujeito a sensação de liberdade. O voto e as vitrines são grandes
exemplos: escolher os representantes políticos e comprar o que as empresas
vorazmente oferecem parece carimbar no homem um selo de autonomia. Mas isso,
quando muito (para usarmos uma imagem recorrente aos estruturalistas), não
passa de um jogo de xadrez, no qual as peças têm seus movimentos rigidamente
limitados e somente quem conhece as regras consegue perceber.
E o lazer, não seria uma faísca de
liberdade? Theodor Adorno afirma que na sociedade contemporânea não existe
tempo livre, somente tempo liberado. Afinal, mesmo nos intervalos da labuta, as
ações dos sujeitos são permeadas pelo capital. Em suma: não há o “fora”. E sem
o lado de fora não há contraste, não há fissura. Logo, não há liberdade.
Certa vez um dos meus alunos disse que
era livre porque podia ir para onde quisesse. Respondi: a questão não é poder
ir para cá ou para lá, mas descobrir o que faz você ir para lá ou para cá. É
simples: as pessoas são tão livres para irem a um concerto sinfônico quanto a
um show sertanejo universitário. E geralmente os concertos têm audiência
infinitamente menor que os shows sertanejos.
Por falar em audiência, os meios de
comunicação de massa não podiam ficar de fora dessa análise. Não é exagero
afirmar que eles são uma espécie de perversão dos ideais iluministas de
libertação do homem através da tecnologia e do progresso. Nas mãos do poder
econômico e político, a tecnologia e a ciência são empregadas para impedir que
as pessoas tomem consciência de suas possibilidades. Exemplo: um trabalhador
que, em seu horário de lazer, deveria ler bons livros ou ir ao teatro, chega
em casa e senta-se em frente à TV para esquecer seus problemas, absorvendo os
mesmos valores que predominam em sua rotina de trabalho.
Resta-nos a internet. Ela não seria uma saída plausível? Seria e, em certa medida é. De fato, a rede mundial de computadores é uma ferramenta que abre possibilidades. Mas os que colam nela o rótulo de salvadora, fazem questão de esquecer que a internet não passa de meio, de uma plataforma. Se os que a operam não publicam conteúdo de qualidade ou não procuram conteúdo de qualidade, a internet não passa de mais um tentáculo do sistema. Não passa de reprodução do status quo, do senso comum e da indústria cultural. E, infelizmente, a reprodução ainda se sobrepõe à qualidade.
*Matheus Arcaro é mestre em Filosofia
Contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em
Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico,
palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá,
2016), dos livros de contos Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014) e
Amortalha (Ed. Patuá, 2017) e do livro de poesia Um clitóris encostado na
eternidade (Ed. Patuá, 2019). Também colabora com artigos para vários portais e
revistas.
site: www.matheusarcaro.art.br
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