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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O autoritarismo da liberdade aparente - Por: Matheus Arcaro

     

Matheus Arcaro
Matheus Arcaro para o Blog O Calçadão

Albert Camus dizia que o anseio de liberdade é o princípio de qualquer revolução. Eu, pretensiosamente, completo a sentença: e a ilusão de liberdade é a base para a conservação. Muito mais perigosa que qualquer ditadura é a pseudoliberdade. Na ditadura, o inimigo tem rosto. Sabemos (ou pelo menos intuímos) quando devemos atacar ou recuar. A liberdade ilusória é como o câncer que se espalha sob a pele saudável. Marx, certa vez, afirmou que há utopias mais reacionárias que sistemas autoritários. Faz sentido: quem acredita ser livre, não tem porque reivindicar liberdade.

Livres para assistirem jogos de futebol ou comprarem celulares de última geração, as pessoas agradecem a Deus pela vida que têm. E riem e se divertem. E depois dormem feito anjos porque estão cansadas do dia de trabalho e, principalmente, porque precisam repor as energias para a jornada do dia seguinte. E assim o sistema se autoalimenta.


Obviamente, são muitos os artifícios para insuflar no sujeito a sensação de liberdade. O voto e as vitrines são grandes exemplos: escolher os representantes políticos e comprar o que as empresas vorazmente oferecem parece carimbar no homem um selo de autonomia. Mas isso, quando muito (para usarmos uma imagem recorrente aos estruturalistas), não passa de um jogo de xadrez, no qual as peças têm seus movimentos rigidamente limitados e somente quem conhece as regras consegue perceber.


E o lazer, não seria uma faísca de liberdade? Theodor Adorno afirma que na sociedade contemporânea não existe tempo livre, somente tempo liberado. Afinal, mesmo nos intervalos da labuta, as ações dos sujeitos são permeadas pelo capital. Em suma: não há o “fora”. E sem o lado de fora não há contraste, não há fissura. Logo, não há liberdade.


Certa vez um dos meus alunos disse que era livre porque podia ir para onde quisesse. Respondi: a questão não é poder ir para cá ou para lá, mas descobrir o que faz você ir para lá ou para cá. É simples: as pessoas são tão livres para irem a um concerto sinfônico quanto a um show sertanejo universitário. E geralmente os concertos têm audiência infinitamente menor que os shows sertanejos.


Por falar em audiência, os meios de comunicação de massa não podiam ficar de fora dessa análise. Não é exagero afirmar que eles são uma espécie de perversão dos ideais iluministas de libertação do homem através da tecnologia e do progresso. Nas mãos do poder econômico e político, a tecnologia e a ciência são empregadas para impedir que as pessoas tomem consciência de suas possibilidades. Exemplo: um trabalhador que, em seu horário de lazer, deveria ler bons livros ou ir ao teatro, chega em casa e senta-se em frente à TV para esquecer seus problemas, absorvendo os mesmos valores que predominam em sua rotina de trabalho.


Resta-nos a internet. Ela não seria uma saída plausível? Seria e, em certa medida é. De fato, a rede mundial de computadores é uma ferramenta que abre possibilidades. Mas os que colam nela o rótulo de salvadora, fazem questão de esquecer que a internet não passa de meio, de uma plataforma. Se os que a operam não publicam conteúdo de qualidade ou não procuram conteúdo de qualidade, a internet não passa de mais um tentáculo do sistema. Não passa de reprodução do status quo, do senso comum e da indústria cultural. E, infelizmente, a reprodução ainda se sobrepõe à qualidade.


*Matheus Arcaro é mestre em Filosofia Contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 2016), dos livros de contos Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014) e Amortalha (Ed. Patuá, 2017) e do livro de poesia Um clitóris encostado na eternidade (Ed. Patuá, 2019). Também colabora com artigos para vários portais e revistas.
site: 
www.matheusarcaro.art.br


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