Páginas

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

O carrasco e a cozinheira da escola

             A existência ou inexistência de funções públicas e seus respectivos servidores responsáveis pelo planejamento e execução das mesmas dizem muito a respeito da visão de mundo da classe política majoritária, dos governantes e da sociedade que delegou poder a eles.


 

              O carrasco é uma função pública que pode nos remeter à imagem na Idade Média das forcas, das guilhotinas. Mas infelizmente os carrascos ainda existem nos países/estados onde existe a pena capital com o entendimento de que o término da vida de alguém é o desaguar da realização da justiça. Devem ter hoje outros nomes eufemísticos. Desde as primeiras formatações de Estado o uso exclusivo da força e da aplicação da pena capital compete ao governante da vez e do funcionário público – carrasco. Outrora valorizado, protegido, detentor de benefícios compensatórios de estigmatizada profissão, a mesma foi sendo extinta em vários países após um salto civilizatório derivado do pós-guerra e a discussão de novos marcos regulatórios para os sistemas de justiça que nascem sob égide dos direitos humanos. Saímos da barbárie da espetacularização da morte como justiça para a justiça com esperança de ressocialização. Se funciona ou não é outra conversa.

              A sociedade brasileira investiu muito nas últimas décadas para que o acesso à educação pública e de qualidade fosse um importante fator no combate à desigualdade social. Com o provimento de robustos recursos públicos que possam garantir o funcionamento perene de um sistema de alimentação escolar, a refeição corrobora com a redução da desigualdade num contexto onde estamos à volta com desemprego em alta e muitas famílias em situação de insegurança alimentar. Na ponta, a funcionária pública responsável pela execução do preparo do alimento é a cozinheira. Uma função valorosa, em prol da vida está sob ameaça por processos de alteração de relações de trabalho, em especial, a terceirização.

              Vendendo a terceirização como panaceia, vários governantes alegam que a principal vantagem da terceirização é a redução de custos pelo não pagamento de encargos trabalhistas. Ora, se o setor público tem que contratar empresas terceirizadas que deverão honrar com suas respectivas obrigações trabalhistas, o processo de terceirização, por si só, não tem a magia de fazê-las desaparecer de nosso sistema previdenciário e tributário. Então onde ocorre a redução dos custos para o governo de maneira que não afete a margem de lucro da empresa terceirizada contratada? Na redução geral de salários e benefícios aos trabalhadores terceirizados.

              Constam do rol de aspectos negativos já observados nos contratos terceirizados, além da remuneração menor aos trabalhadores, a alta rotatividade da mão-de-obra, a elevada quantidade de afastamentos por acidente de trabalho, a não garantia de contratação pelo setor público da melhor empresa terceirizada, uma vez que o critério primordial de escolha é pelo menor preço, além da possibilidade do não envolvimento do trabalhador terceirizado com a cultura organizacional de seu local de trabalho de fato dada a falta de perspectiva de permanência nesse tipo de relação trabalho, baixa motivação e reconhecimento, e a quase inexistência de canais de participação e colaboração mais pró-ativa. Isso posto, cabe indagar. Quem paga a conta pela queda de qualidade do serviço prestado a partir da celebração generalizada de contratos terceirizados pelo setor público? O primeiro prejudicado, óbvio, é o próprio usuário. Mas se extrapolarmos para um período mais longo, inter-geracional até, quem paga a conta é a sociedade como um todo por gerar um povo menos saudável, menos escolarizado, menos preparado para o mercado de trabalho e para a convivência social cidadã.

              Os contratos com empresas terceirizadas celebrados pelo setor público não ocorrem por acaso. Nascem como mais um mecanismo do neoliberalismo de acesso aos recursos públicos gerenciados pelo Estado. Trata-se de uma imposição ideológica do Estado como gestor utilizando-se para balizar todas as relações institucionais como relações empresariais. Para o alcance de tal objetivo é fundamental o enfraquecimento da organização da classe trabalhadora via fragmentação e da disseminação do lenga-lenga do funcionamento ineficiente do Estado e redução do tamanho do mesmo.  Na cidade de Ribeirão Preto - SP ficou explícito o círculo vicioso entre empresas terceirizadas e lideranças políticas com o advento da operação da polícia federal denominada Sevandija.

              As cozinheiras das escolas públicas em geral são pessoas benquistas junto à comunidade escolar.  Para além do preparo dos alimentos interagem e conhecem várias crianças pelo nome, as estimulam a ter alimentação saudável, equilibrada, sabem das restrições alimentares de outras etc. Nas planilhas do Estado gestor entra o atendimento educador-humanizado?

              Em Ribeirão Preto está em curso o projeto de extinção do cargo de cozinheira no setor público municipal. Diferentemente da extinção do cargo de carrasco que se deu por vários lugares por um avanço civilizatório estamos longe de uma situação social alimentar que extingue a função da cozinheira de uma escola pública hoje presente em vários lugares no Brasil, diante da realidade de vários alunos que mistura insegurança alimentar com má alimentação geradora de obesidade. A sociedade que se abdica de sua responsabilidade e permite a transformação do alimento de crianças e adolescentes em business promove o aprofundamento das desigualdades sociais.


Blog O Calçadão. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário