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sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

“Eu acho que há uma combinação quase atmosférica entre uma obra cinematográfica e o que acontece na sociedade”, afirma um dos diretores do filme vencedor do Prêmio de Júri, em Cannes, Kléber Mendonça Filho

Cineastas reforçaram o papel histórico que o filme vem desempenhando ao redor do mundo.
Fotos e texto: Filipe Augusto Peres


Durante debate realizado pelos SESC e o Cine Clube Cauim no último dia 22, em Ribeirão Preto, os diretores do premiado e prestigiado filme Bacurau (2019) falaram com o público e abordaram as questões políticas, sociais e históricas que envolveram a construção do roteiro e a sua respectiva ressonância ao redor do mundo.

Em uma parceria Cine Clube Cauim e SESC, entre os dias 21 e 22 de janeiro, o Cine Clube Cauim exibiu, com casa lotada nos dois dias, passando de 800 pessoas no maior cinema de Ribeirão Preto, o prestigiado e premiado filme, Prêmio do Juri, no Festival de Cannes, em 2019, “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, sendo que no dia 21 ocorreu a exibição com a presença dos diretores seguida de um bate-papo com eles no dia seguinte.

Cineastas falaram sobre a importância do contexto social, político e histórico em que o Brasil, o mundo passa atualmente para explicar a ressonância de Bacurau.


Contexto Social e Político do Brasil e do Mundo

No dia 22, durante a conversa com o público, os cineastas falaram sobre questões técnicas e, principalmente, sobre as questões políticas que contextualizaram o lançamento e a divulgação do filme durante todo o ano de 2019. Já em sua primeira fala, Kleber Mendonça Filho afirmou a importância de grandes espaços como o Cauim, capaz de juntar grandes aglomerações para debater obras culturais, para debater a sociedade, o país: “Aglomerações como essa, onde as pessoas se juntam para trocar ideias, falar sobre a cultura, falar sobre país, falar sobre a sociedade são, absolutamente, essenciais, sempre. Mas no momento, particular, que a gente está passando no Brasil, acho que elas são ainda mais importantes”.

Juliano Dornelles


Para a construção do roteiro de Bacurau, Juliano Dornelles, apesar de ter dito que o texto base foi escrito em 2009, admitiu que este foi modificado diversas vezes devido às mudanças constantes do contexto social e histórico quando falou sobre a filmagem de Bacurau: “a gente se divertiu muito, o roteiro passou por diversas transformações. A gente acompanhou muito o que estava acontecendo ao nosso redor, no mundo, prestou muita atenção e, em 2019 o filme fica pronto, é exibido no Festival de Cannes e ganha prêmio do Júri. O resto da história imagino que vocês já saibam”.

Ainda sobre a importância de estar atento ao que acontece na sociedade, Kleber Mendonça reforçou a fala JD e afirmou que a escrita do roteiro de Bacurau, por não ter sido isolada, pôde captar o grau de absurdo do mundo nos últimos dez anos:
[...] “Bacurau, a gente estava conectado sempre e ao estar conectado era como se nós estivéssemos recebendo o grau de absurdo que o mundo começou a entrar. Não estou dizendo que o mundo nunca foi absurdo, não, mas acho que de dez anos para cá e, com todo esse acesso de comunicação, de desenvolvimentos políticos (que não só no Brasil, são também nos EUA, na Europa), a gente começou a observar uma realidade que se aproximava muito de uma ficção. Inclusive, o roteiro de Bacurau era muito mais absurdo 6 anos atrás do que ele é hoje, em 2020. A gente fica percebendo isso durante a escrita do roteiro, principalmente quando Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos. Eu lembro do ano em que ele foi eleito e lembro dos meses que antecederam a eleição e sempre aparecia como algo que não ia acontecer, como um grande absurdo, um tipo de situação que faz parte de um livro ou filme de ficção científica. Só que em 2016, de fato, ele foi eleito. Foi aí que nós entendemos que o nosso roteiro tinha passado para um outro estágio, não por causa do roteiro mas por causa do mundo ao redor do roteiro”.

Sobre o Brasil, dentro deste contexto absurdo, Kleber afirmou que quando o filme estreou, em 2019, o país já estava mergulhado em uma situação política absurda: O filme tem tido uma ressonância muito grande na sociedade: “Eu acho que há uma combinação quase atmosférica entre uma obra cinematográfica e o que acontece na sociedade”.



Visão preconceituosa do Sul/Sudeste com o Nordeste

Entendendo que tanto jornalistas como artistas estão inseridos dentro de um contexto social, os cineastas, enquanto cidadãos nordestinos, também abordaram o preconceito, a visão estigmatizada que a imprensa, o cinema reproduz quando retratam o Nordeste. Sobre esta questão, Dornelles afirmou:
“A gente, como nordestino, presenciou algumas coisas que incomodaram, que deram alguma raiva no Festival de Cinema de Brasília (2009), uma série de filmes sempre com um olhar, basicamente, problemático em relação aos seus objetos, que são as pessoas desses filmes que vivem em lugares afastados ou em uma região diferente das dos diretores, dos realizadores, e esse olhar de cima pra baixo sentindo um certo exotismo, tratando-as como se fossem pessoas simples (não complexas). [...] Isso não começou naquela semana, naquele festival. Isso vem da nossa história, do Brasil sobre como a representação dessas pessoas vem sendo feita pelo jornalismo, pelas telenovelas, por tudo isso. A gente começou a se divertir com a ideia das pessoas surpreenderem de forma radical. Esse foi o ponto de partida. E (o preconceito) é algo que a gente ainda continua vendo se repetir. Não parece que tenhamos caminhado para uma evolução”.

Reforçando a crítica à ideia estigmatizada de Nordeste, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles lembraram um fato natural da região em que está situada a cidade de Parelhas-RN, local em que o filme foi rodado. KM começou relatando a chuva colossal que se abateu sobre a cidade assim que a equipe de produção chegou:
“Quando escolhemos Parelhas-RN não chovia há 7 anos e tinha um look completamente seco, que é um look clássico do sertão. Quando a equipe de produção chegou lá na primeira semana, a maior chuva em 7 anos [...]”

Complementando a fala, Juliano afirmou que o que seria um problema muito grande para outros diretores, para eles não foi. O cineasta disse que ao ver o sertão verde achou mais bonito e ressaltou que a paisagem que se apresentou após a chuva, por fugir do imaginário que se faz da sub-região da Região Nordeste, foi considerada uma sorte pois trouxe um sertão que também existe.

Em cima disso, Kléber Mendonça questionou: “O que é o sertão? O sertão é aquele lugar da teledramaturgia e do cinema novo ou o sertão é o sertão? O sertão é, na verdade, um lugar seco mas que, também, chove. E, quando chove, a natureza é voraz. Por exemplo, choveu um dia e, de repente, você via animais que você não sabia que estavam lá. Então, a relação da água com o sertão faz parte do sertão e nós decidimos colocar isso no filme”.


Relação de Bacurau com a História

Em uma de suas falas, JD justificou o estrondoso sucesso de Bacurau ao redor do mundo devido a conexão que o filme possui com história:
“Pensando sobre como Bacurau tem tanta conexão com o que acontece no mundo, Bacurau é um filme que se volta muito para a história, olha muito para o passado e esses erros do passado sendo repetidos. Enfim, aí discutimos Guerra do Vietnã (também chamada de Guerra de Resistência contra a América pelos vietnamitas – observação do blogue), como o exército americano não se interessou em entender quem eram aquelas pessoas e terminaram se dando mal. Eles não conversaram com os franceses sobre isso pois eles já tinham ocupado aquele território quando este ainda era chamado de Indochina (outro nome para a Guerra de Resistência contra a América é Segunda Guerra da Indochinaobservação do blogue). Todos esses elementos da história, da humanidade, não só do Brasil, influenciaram, junto com essa coisa da representação, junto com a coisa da gente ser do Nordeste e pensar em fazer um tipo de filme que não era permitido fazer”.



Perguntas

A luta pela terra e a perseguição do Governo Bolsonaro a sem terras, indígenas e quilombolas

Após as falas, em um determinado momento do debate sobre o filme, quando questionados por uma militante do Partido dos Trabalhadores sobre a perseguição que o governo Bolsonaro tem realizado às populações do campo (quilombolas, sem terras e indígenas), lembrando o assassinato do militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o acampado Luis Ferreira da Costa, do Acampamento “Marielle Vive!”, em Valinhos-SP, durante um protesto pacífico por água, em que os militantes do MST distribuíam alimentos orgânicos a quem passava pelo local, por um bolsonarista, se houve algum tipo de inspiração nas lutas do campo pela terra para a escrita do roteiro do filme, Kléber Mendonça Filho respondeu:
“Eu sou filho de uma historiadora. [...] Ela estudou, exatamente, o que aconteceu no Brasil, quando a escravidão foi abolida, em 1888, quando a população negra se viu livre. Na verdade, não aconteceu nada. O Brasil não fez nada para receber os novos cidadãos brasileiros que não eram mais escravos. Então, eu cresci ouvindo histórias da História sobre a questão da terra no nosso país e é uma história extremamente violenta que não para, ela simplesmente continua. O início do meu primeiro filme “O som ao redor” (2013) começa com fotos da Ligas Camponesas, nos anos 60, em Pernambuco, na Paraíba. Para mim, esta é uma questão constante e sempre (eu e o Juliano) discutimos a questão da terra, a questão da violência da terra. Há, inclusive, uma menção (no filme) que sempre me emociona, que é o nome do João Pedro Teixeira quando todos os nomes estão sendo lidos na cena do alto falante. João Pedro Teixeira é o “Cabra Marcado para Morrer” (1984), do Eduardo Coutinho, um dos grandes filmes feitos neste país na história do cinema brasileiro. Então, a questão da terra é um tema recorrente para mim e é um tema que eu quero retratar no futuro, talvez de maneira mais frontal do que em Bacurau”

Ressonâncias de Bacurau: Golpe de 2016 e Governo Bolsonaro

Quando questionados sobre a recepção que o mundo tem tido em relação ao filme, Juliano Dornelles afirmou que as reações são várias, das mais diversas formas:
“Ano passado eu fui para 20 países e as pessoas estão ligadíssimas no filme, ligadíssimas no Brasil, algo que 3, 4 anos atrás era bem diferente, vamos combinar porque essa coisa do Golpe (sobre o governo da então Presidenta Dilma Roussef, em 2016, retratado recentemente no, agora indicado ao Oscar na categoria de melhor documentário, “Democracia em Vertigem, de Petra Costa” – observação do blogue), que nós denunciamos em Cannes... as pessoas ainda não estavam ligadas. Uma outra coisa que chama a atenção é que mais da metade das perguntas eram direcionadas à questão política do Brasil, sobre Bolsonaro e eu dizia que um filme demora para ser escrito. O filme não é uma resposta a Bolsonaro. Bolsonaro é uma piada”, encerrou.

Kléber Mendonça Filho


Papel da Cultura de denúncia social e desconstrução de senso comum em tempos de perseguição pelo Governo Bolsonaro


Sobre o papel que os cineastas têm tido em responder sobre o que tem acontecido no Brasil desde o Golpe de 2016, Kléber Mendonça Filho ressaltou a importância da arte neste tempo turvo:
“Nós temos nos tornado representantes da nação brasileira. As pessoas querem tentar entender o que se passa no nosso país, não só através de Bacurau mas através de nós. Essa é uma situação muito peculiar, muito irônica, em um momento em que o artista do Brasil está sendo atacado, está sendo desvalorizado. Há um paradoxo, aí, quando o artista, como aconteceu comigo, entra numa recepção, na China, e um representante do governo não tem convite para aquela recepção. Isto para mim é muito irônico porque o artista tem um valor que vem da arte que é feita e (atualmente) tem-se a ideia de desconstruir, destruir a ideia do artista no Brasil. Isso é uma coisa que eu queria falar. A outra coisa, parecida com essa, aconteceu no Festival de Nova Iorque, numa sala maior que essa, ainda, mas a sensação visual é muito parecida. Tinha muita gente depois da sessão e lá atrás, no lado esquerdo, um senhor americanopegou o microfone e disse assim: ‘Eu queria só tirar uma dúvida, os americanos são os vilões? Por quê?’ E eu disse: Por que não?”









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