Por Leonardo Sacramento e Igor Grabois
Há
três consensos gerais nos meios de comunicação sobre o resultado das eleições
de 2020: as derrotas do bolsonarismo e de Bolsonaro, a pulverização e o respiro
da esquerda. As derrotas do bolsonarismo e do Bolsonaro são evidentes e não
exigem grandes explicações, devendo ser entendida à luz do tipo de vitória da
esquerda. Já a pulverização é tratada pela mídia Huck-Moro como a prevalência
do campo de centro, como não poderia ser diferente. A conclusão da mídia é uma
dedução a priori.
A eleição de 2020 deve ser vista em duas partes: uma
eleição para o legislativo e outra para o executivo. É comum entre partidos a
ideia, pouco comprovada empiricamente, de que uma boa candidatura do executivo
alavanca a chapa do legislativo. E assim foi desde a redemocratização. A
reforma eleitoral encampada por Cunha cumpriu parcialmente o seu objetivo:
centralizar votos nos grandes partidos. Contudo, como toda lei, apresentou as
suas contradições e paradoxos quando aplicada, quando posta sobre e sob a
realidade.
Nunca a eleição do legislativo foi tão descolada da
eleição do executivo. O que era um fenômeno dos partidos da direita, se
espraiou pela esquerda. Os casos do Rio e Porto Alegre são exemplares, onde o
desempenho do PT, PSOL, PCdoB e PDT foi distinto da performance do candidato
majoritário.
A eleição para o executivo é controlada pela máquina
partidária, em que se deve escolher apenas um candidato. Essa eleição
reproduziu a tradição, deixando o eleitorado entre o projeto bolsonarista, o
projeto da esquerda tradicional e o projeto da direita tradicional. O que a
eleição do executivo mostrou? Mostrou que entre a esquerda tradicional e a
direita tradicional, a direita tradicional, capitaneada pela ascensão do DEM,
tem vantagem. Faz sentido! Em um contexto de dúvidas e crise, o eleitor
escolheu normalmente aquele que já governou. O discurso de Covas contra Boulos
sobre a falta de experiência do segundo provavelmente vem dessa percepção.
A eleição para o legislativo não possui controle tão
efetivo da máquina partidária, pois o essencial é completar a chapa ou ter a
maior quantidade de candidatos possível, a fim de atingir o quociente
eleitoral. Lógico que o candidato precisa ter algum trabalho de base, mas a
avaliação é mais heterodoxa. Aqui, o Carlos da Quitanda entra, o que é
impensável aos ritos distintivos (e financeiros) da escolha para a disputa no
executivo.
O que as urnas mostraram sobre a eleição para o
legislativo? Primeiro, como já dito, a derrota do bolsonarismo (aqui não é o
Bolsonaro somente). Militares e policiais civis caíram drasticamente, assim
como olavetes e bolsonaristas anti-vacinas. Isso é evidente nos principais
centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e
Porto Alegre. A direita tradicional também perdeu espaço, aliás, muito espaço.
O centro salvador da mídia e do mercado, que ganhou de fato o executivo, não
foi tão bem no legislativo. A rigor, se comparado com a eleição do executivo,
seguindo a ideia da correspondência, foi mal.
O diferente é a eleição da esquerda. A eleição da
esquerda traz recados a todos, especialmente à própria. Candidatos
tradicionais, gestados pela redemocratização e pela Nova República, foram em
parte substituídos pelo eleitorado de esquerda por uma esquerda mais popular,
identitária e jovem. O que restou, sobreviveu por recall, não sem estragos,
como a diminuição de votos. A bancada petista da capital paulista é uma
exceção. Saltam aos olhos as candidaturas individuais e coletivas de mulheres,
negras e pessoas trans.
Aviso: o termo identitário não é utilizado de forma
pejorativa, como em alguns círculos da esquerda, mas de forma conceitual.
Explicamos: as identidades aqui utilizadas estão tendo uma emergência com a
deflagração e desregulamentação do mundo do trabalho, em que os sindicatos, esteios
tradicionais da esquerda na Nova República, se enfraqueceram, especialmente
depois de Reforma Trabalhista de 2017. Sem a identidade do mundo do trabalho
formal, com carteira assinada, está emergindo uma identidade multifacetada, que
vai da raça e gênero, os dois com mais capilaridade, ao Fulano do Uber, o
Ciclano dos Entregadores, o Beltrano dos Aplicativos, como aconteceu na Câmara
de Vereados de São Paulo e em mais algumas.
Se antes havia o Fulano da Saúde, o Beltrano do
Transporte, o Joãozinho da Educação, agora emergem candidaturas afinadas com
outras identidades, com identidades mais jovens. O PSOL, de longe, é o partido
que mais apresentou esse tipo de candidaturas, atingindo grande projeção nas
duas principais câmaras do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Ahh, mas tem mais
5.000 municípios. Sim, mas a ascensão se dá nos principais colégios eleitorais
do país, nas cidades mais urbanizadas e problemáticas, e que costumam dar o tom
para as médias cidades. Bolsonaro venceu em menos cidades do que Haddad em
2018, mas venceu com grande margem nas grandes e médias cidades. O recado das
grandes cidades costuma decidir sobre os desejos das pequenas cidades. O recado
é: o PSOL é o principal vencedor das eleições de 2020. E perceba, conclui-se a
vitória do PSOL sem entrar no mérito da eleição de Boulos. É vencedor somente
pelo que aconteceu na eleição para o legislativo.
Lógico, essas candidaturas possuem ainda pouca capacidade
de debater políticas públicas, orçamento e afins. Mas isso não é culpa delas, mas
do avanço do neoliberalismo sobre a Constituição e o mundo do trabalho. De
certa forma, são a expressão popular desse processo contraditório, e a forma
como o povo está se contrapondo. A conquista dessa capacidade, agora, é de
inteira responsabilidade dos partidos.
Os
candidatos tradicionais de esquerda perderam espaço, ou melhor, foram
substituídos. Isso significa que a perspectiva do que o eleitorado de esquerda
possui sobre candidaturas de esquerda está em mutação. Os candidatos
tradicionais que venceram, ou aqueles mais vinculados a pautas tradicionais,
como o Tarcísio no Rio, tem forte intersecção com as pautas identitárias. Quem
não tem, sofreu com a diminuição dos votos ou com a não eleição.
Uma
cidade chamou a atenção, e deve ser analisada como estudo de caso. Em Ribeirão
Preto, terra no palocismo, PT e PSOL elegeram três vereadores, com diminuição
de 28 para 22 cadeiras na Câmara. Dos três vencedores, dois são mandatos
populares vinculados ao movimento negro, movimento de mulheres, movimento LGTBI+
e movimento por moradia. O outro vencedor, uma militante estudantil de 21 anos
(PT), se forjou nas manifestações estudantis contra o governo Bolsonaro no
primeiro ano de governo. O PSB elegeu mais dois candidatos de esquerda,
vinculados a um bairro negligenciado pelo Poder Público. Esse bairro também
abriga o maior assentamento do MST da região, que, cumpre dizer, é considerada
a “capital do agronegócio”. Além de terras de caciques da esquerda, a cidade é
também pródiga em caciques da direita. Hoje está em evidência Baleia Rossi,
presidente nacional do MDB e virtual candidato à presidência da Câmara dos
Deputados.
Há
atualmente na Câmara da cidade um vereador do PT e outro do PDT, que podem ser
classificados como de esquerda, mas com atuações mais institucionais e
tradicionais (os dois são médicos em uma cidade que possui uma das melhores
razões de médicos por habitantes do pais, o que não significa que tenha médicos
nos postos de saúde). Os cinco eleitos são de perfil completamente distinto,
promovendo a bancada mais à esquerda da história da cidade, incluindo a
primeira gestão Palocci, quando ainda era classificado na esquerda. A eleição
das duas candidaturas pelo PT apresenta ainda a possibilidade de jogar uma pá
de cal no palocismo, que, surpreendentemente, ainda sobrevive em flancos do PT
municipal.
Em
São Carlos e Araraquara, duas cidades importantes do centro paulista, venceram
candidaturas do mesmo perfil pelo PT, PSOL e PC do B. O mesmo ocorreu em
cidades pelo interior, reduto muito mais conservador do que a capital paulista
(se não fosse o interior na última eleição para governador, Dória não venceria
de França). Visivelmente, a expectativa do eleitorado de esquerda mudou de um
candidato homem, branco e progressista, ou uma mulher branca de terno feminino,
para uma mulher, negra e popular.
Os
motivos mais sociológicos dessa mudança são objetos para outro texto. Os
motivos eleitorais estão muito mais voltados ao bolsonarismo. Esse perfil é
objeto do bolsonarismo, e foi o perfil que mais se voltou contra ao
bolsonarismo e ao Bolsonaro. Afinal, foi a Marielle Franco que morreu nas mãos
de grupos paramilitares de direita vinculados ao bolsonarismo e à família do
presidente. Provavelmente, esse perfil conseguiu se afirmar politicamente,
socialmente e existencialmente (“se fere a minha existência...”) ao avanço do protofascismo liberal. As notas
no Twitter dos políticos tradicionais de esquerda não foram suficientes.
O
fato é que essas candidaturas conseguiram romper bolhas eleitorais e grupais,
como parece indicar a quantidade de votos de alguns candidatos sobre alguns
bairros, dando a impressão (há necessidade de análise mais rigorosa) de terem
entrado em certos círculos mais conservadores, como os evangélicos. A debacle
de Russomano e a de Crivela também indicam isso. Esse último foi colocado no
segundo turno por um operativo religioso e miliciano às vésperas da eleição. E,
por que não, a ascensão de Boulos, cuja identidade é de um movimento que não
tem vínculo direto e formal com o mundo do trabalho, é o outro elemento
indicador dessa mudança.
Boulos,
por sinal, foi um dos poucos candidatos não tradicionais que a esquerda
escolheu para disputar o executivo (a Manuela está em uma intersecção evidente
com os movimentos de mulheres e de jovens), e, não coincidentemente, foi o que
teve mais saldos políticos. Em Belo Horizonte, outro exemplo, mesmo com a
vitória certa de Kalil em virtude da forma como se portou na pandemia (oposição
a Bolsonaro), Áurea Carolina, do PSOL, obteve impressionantes 8,33% dos votos
válidos.
A
tentativa de conciliar esses mundos parece ter fracassado. A tentativa mais
assertiva foi a de Rui Costa, que escolheu, a despeito dos coletivos de
mulheres negras do próprio partido (máquina sobre a militância), uma militar
negra, procurando conciliar justamente o que o eleitorado não queria conciliar:
o bolsonarismo mais ameno e as pautas identitárias e populares de esquerda.
Ressalta-se que a candidata não é bolsonarista, mas a imagem depende mais da
conjuntura do que do desejo e da convicção pessoal. Era uma policial militar em
uma cidade em que Bolsonaro goza da maior rejeição entre as capitais. Rui Costa
cometeu o maior erro estratégico dos últimos anos, em nome do tradicionalismo e
da máquina. Fracassou frente a um candidato do DEM escolhido pelo ACM Neto, que
enfrentou o bolsonarismo na pandemia e concedeu o mesmo status social e
jurídico das igrejas aos terreiros de candomblé, uma demanda histórica do
movimento negro. A conciliação não é possível! Entre esquerda tradicional e
direita tradicional, a direita tradicional levou larga vantagem.
Em
síntese, não é a pulverização dos votos no executivo para um centro criado
artificialmente por Eduardo Cunha que explica a derrota do bolsonarismo e de
Bolsonaro, mas é a ascensão de novo perfil de esquerda no legislativo, pois foi
ele que conseguiu estabelecer a polarização ao projeto liberal-protofascista. A
escolha do candidato para o executivo é controlada. Lógico que será um homem
branco de perfil tradicional, tanto à direita quanto à esquerda. A eleição para
o legislativo permite analisar o que realmente aconteceu com os votos e os seus
recados explícitos e implícitos.
As urnas falaram para os partidos de esquerda. Alguns
desaparecerão em virtude da cláusula de barreira disfarçada de quociente,
outros terão que se reformular. O fato é que a eleição foi positiva para a
esquerda, apesar dos números absolutos. Surgiu uma esquerda nas câmaras que
tende a atropelar o bolsonarismo, o executivo tradicional e as máquinas
partidárias. Vamos ver como todos responderão. O bolsonarismo e o executivo,
controlado pela direita tradicional, já sabemos. Resta saber o que a máquina
partidária, especialmente do PT, responderá. Se responder como o Rui Costa,
será cancelado. E não será pelo Twitter.
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