Galeno Amorim, com um texto impecável e emocionante, faz justa homenagem ao guerreiro das lutas populares Luís Carlos Garcia. |
Luís Carlos Garcia na CEF em 08/06/2016
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Em todas as situações, ele tinha um lado.
Mas a imagem mais antiga que tenho dele é outra. É ele literalmente causando - como se diz na gíria de hoje - sobre um par de tamancos, última moda nos morros cariocas daqueles anos 1970. Sapateava com orgulho, se equilibrando sobre sua madeira opaca, nas ruas sem asfalto do Lagarto Verde, onde iam parar os desvalidos e miseráveis no epicentro do mar de cana e riquezas que rodeavam a cidade, de não mais que 35.000 almas.
Luís, no início, era mais amigo do meu irmão, cujas idades se aproximavam. Eu era mais amigo do Natal, o irmão dele. Os quatro juntos aprontávamos diabruras próprias da idade e da condição social. O jogo de bola em campinhos de chão batido era uma paixão em comum que nos opunha - ele à frente do seu Santos F.C; eu, "dono" do Palmeirinha F.C. Vem daí a outra lembrança: era ele um ponta direita irritantemente driblador e provocador.
Com Luís e o irmão tomei, pela primeira vez, ainda adolescente, o rabo de galo, mistura de cachaça com vermute. Também me esmerei na arte de roubar laranja - furtar, eu aprenderia mais tarde, ao virar repórter de polícia - em terras dos usineiros. Luís, que já tinha morado com a família na colônia da fazenda, nos convencia que era uma tolice deixar tanta fartura se estragar enquanto tanta gente não podia desfrutar.
Ele ainda não sabia, mas já era uma espécie de Robin Hood em terras sertanezinas. Passei várias festas de Natal e Ano Novo na casa dos Garcia, capitaneada pelo pai, Geraldo, um homem simples, pobre e rigoroso, de uma retidão de caráter inigualável. Foi nessa casa modesta, não mais que um barraco, que eu me escondi quando, certa vez, resolvi fugir de casa - mas esta já é uma outra história.
Mais tarde, seria colega do Luís Carlos - era assim que se apresentava, carregando no sotaque importado nos esses dos dois nomes combinados - na bancada de vereadores da Câmara de Sertãozinho do início dos anos 1980, que assumi, aos vinte anos, algumas vezes, suplente que era - inclusive no lugar do próprio Garcia, por conta de licenças de saúde. Punhamos fogo no plenário naqueles tempos sombrios de final de ditadura, quando acreditávamos que o embate quase mortal de ideias entre esquerda e direita era uma tarefa ingrata da qual não se podia fugir. Nem passava por nossas cabeças o que o futuro nos reservaria para o milênio seguinte...
Eis que, agora, fico sabendo da morte do Luis, não se sabe ao certo se pelo Coronavírus, por uma dengue mal curada ou se foi a pneumonia, seguida de meia-dúzia de paradas cardíacas, que o levou. Justo ele que se meteu em tanta confusão, levou tiro e cassetada da polícia.
Só sei que, com ele, se vai também uma parte rica da minha memória afetiva. Luís era polêmico, às vezes atrapalhado, às vezes podia até soar meio demagogo.
Mas tinha méritos inquestionáveis. Sempre, repito, teve um lado. E não é difícil adivinhar qual. O lado dos desafortunados, dos pobres, dos lazarentos. O que, convenhamos, não é pouco em um mundo tão marcado pela desigualdade que grita entre os que têm e os que não têm - um embate que muitos insistiam, ao menos até agora, não existir mais.
Por anos, pensei em fazer do meu amigo Luís Carlos Garcia personagem de um dos meus livros. Não fiz. Quem sabe agora, que é tarde demais, não seja a hora...
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