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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Combater preconceito contra o pobre é um grande desafio - Por Thiago Scatena.

Esgoto corre ao lado de casa no Joquey Ribeirão Preto. Foto:Paulo Honório

Ribeirão Preto é uma cidade excludente. Uma cidade que não tem uma única casa ou apartamento sendo feito desde de 2016 para família de baixa renda. Não há nenhum projeto ou política habitacional para estas famílias.  Cultiva um preconceito absolutamente cruel com as famílias mais vulneráveis da nossa cidade.

O Blog O Calçadão reproduz o texto do amigo, sociólogo e pesquisador de pós-graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP)  Thiago Scatena, em que observa os comentários dos leitores de uma matéria jornalística sobre favelas na cidade e contrapõe com os argumentos de quem além de estudar o problema, acompanha ao lada das famílias excluídas da sociedade.


Thiago Scatena - Jam.Aeroporto

Toda vez que a mídia faz uma reportagem sobre favelas em Ribeirão Preto a maioria dos comentários dos internautas é crítica aos moradores das favelas. Argumentam que são pessoas que ganham casas da prefeitura ou do MCMV e vendem para voltar pra favela; ou que não gostam de trabalhar e que ficam nas favelas para não pagar contas.

Publico aqui alguns desses comentários com o nome e a cara dessas pessoas, pois elas já se expuseram publicamente no comentário do jornal. Como trabalho com o tema favelas/ocupações/assentamentos irregulares tem uns bons anos, estudei a bibliografia a respeito e faço pesquisa de campo em favelas de Ribeirão Preto, não me sinto desconfortável de contra-argumentar:

1) sobre a questão de compra e venda de lotes ou casas em favelas. A relação comercial de compra e venda ocorre sim em favelas, mas é restrita a uma parte insignificante dos moradores. Não existe um mercado enorme de compra e venda de lotes e casas em favelas, e não existe uma pessoa ou grupo que faz esse tipo de atividade porque o risco dessa atividade é tamanho, e a complexidade também é tamanha que é impossível uma pessoa ou grupo ganhar ou ficar rico com essa atividade.
Em favelas que tem autogestão a associação de moradores PROÍBE essa atividade e o lema é ocupar para morar. Por isso Movimentos Sociais de Moradia são importantes, eles regulam o uso do solo nas favelas. E outra, se existisse um mercado tão significativo de compra e venda de lotes e casas em favelas quem seriam os compradores senão pessoas/famílias pobres em situação de vulnerabilidade social?;

2) as pessoas ficam em favelas para não pagar a água, internet, energia e luz, além de ganhar cestas básicas. É evidente que favelas são estruturas urbanas não regulares que, portanto não podem ter acesso regular a serviços públicos do tipo, logo o famoso gato é sim utilizado. Contudo, é improvável que uma família more em uma favela porque não quer pagar água ou luz. Não faz sentido alguém morar em um local de risco de alagamento ou risco de sofrer uma reintegração de posse e perder todos os investimentos em sua moradia para fugir do pagamento de contas de água e luz.
Em minhas pesquisas de campo constatei que a grande maioria das pessoas que moram em favelas são os trabalhadores de baixo rendimentos, de ganhos de no máximo 1 salário mínimo, em situações de trabalho informal, e menos com carteira assinada. É interessante apontar que aqueles com carteira assinada ou trabalham com limpeza ou atividades domésticas (empregadas domésticas e tia que limpa o seu escritório antes de vc chegar) ou são empregados da construção civil (novo ciclo de atração de mão de obra não qualificada do ciclo 2010 até hoje). Em uma cidade como Ribeirão Preto onde um aluguel de uma casa para uma família de 4 pessoas não sai por menos de 600 reais, mais as contas, um salário mínimo não dá conta;

3) essas pessoas ganham casas da COHAB e da MCMV e vendem para voltar para as favelas. Esse é o ponto maia complexo que envolve a política pública de moradia municipal e federal. Sim, em minha experiência constatei que ocorre muitas vendas ou trocas de apartamentos ou casas de benefícios públicos, mas, mais uma vez, não são a maioria e expõem mais um problema das políticas públicas de moradia do que de caráter moral das pessoas. As políticas públicas de moradia brasileira são lastimáveis, a poderosa COHAB de Ribeirão Preto produziu segregação urbana em localizar seus conjuntos em regiões afastadas dos locais do trabalho, como a Zona Norte e Oeste, e opostas espacialmente da região rica da cidade, a Zona Sul. Ou seja, a COHAB de RP promoveu uma segregação urbana e aumentou tempo de percurso do trabalho para casa. O pouco MCMV para faixa 1 na cidade também promove esse tipo de espacialidade.

Outro ponto, a dinâmica de vida das pessoas é diferente da dinâmica que o Estado espere que vc tenha, muita famílias que ingressam em uma política habitacional tem que pagar, em média, parcelas módicas divididas em 36 anos para ter sua moradia (sim, apartamentos sociais da COHAB e do MCMV não são de graça), e a vida das pessoas é outra, eles mudam de emprego, mudam de cidade, ficam desempregadas e sem dinheiro, ficam doentes e precisam de grana e outros fatores que implicam na venda de seu maior bem, que como todo bom brasileiro sabe, é o imóvel.
Não sei dizer qual é o grau de evasão das moradias oriundas de políticas públicas mas não acho que seja um dado irrelevante. Vale lembrar que isso é mais uma questão econômica e de vida do que um fator moral e de caráter das pessoas. E vale lembrar que existe um sistema rígido de controle estatal no cadastro de pessoas e famílias que entram em uma política pública de moradia, ou seja, uma pessoa não pode acessar um MCMV mais uma COHAB, ou dois MCMV. Pra mim, essa é o ponto mais complexo das questões: políticas públicas de moradia mais efetivas.

PS: em Ribeirão Preto o número alarmante de moradores de favelas/ocupações/assentamentos irregulares se deve a um conjunto se fatores, o primeiro é a inatividade do poder público municipal e da COHAB nas últimas décadas, que se ausentou de discutir essa questão urbana, associado a um crescimento do número de pessoas morando nessas condições no período de crise econômica 2014 até hoje.  Além do encarecimento do custo de aluguéis e de compra e venda de imóveis. 

PS2: constatação óbvia, quem mora em favelas são pessoas pobres em situação de vulnerabilidade social. Ribeirão Preto possui inúmeros imóveis bem localizados vazios e parados, sem pessoas que possam o alugar. É uma questão econômica, as pessoas não tem recursos financeiros para arcar com um aluguel mais os custos da casa, simplesmente o salário, quando este existe, não dá conta.

PS3: eleições municipais estão chegando, e pautas urbanas como Moradia, Mobilidade, Meio Ambiente Urbano serão fatores chave para Ribeirão Preto. Se o seu candidato não tiver boas propostas nessas áreas é melhor repensar seu voto.

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