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Fotos: Filipe Augusto Peres |
Debate na 2ª Feira da Reforma Agrária expõe entrega ilegal de terras públicas pelo Estado de São Paulo a grileiros
Mediado pelos dirigentes estaduais Nilcio Costa e Nivalda Alves, aconteceu em Campinas/SP, no último sábado (4), durante a 2ª Feira da Reforma Agrária Neusa Paviato, na Estação Cultura de Campinas, o seminário “Regularização das Terras Públicas Devolutas como Anistia à Grilagem”. A mesa reuniu Alberto Vásquez, assessor parlamentar do PT na Alesp; Sônia Morais, da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA); e Fernanda Matheus, dirigente estadual do MST em São Paulo.
O seminário evidenciou um consenso entre os debatedores: a regularização fundiária conduzida pelo governo paulista institui uma “anistia à grilagem”, atinge frontalmente a Constituição estadual e ameaça a função social da propriedade pública.
A “reforma agrária para os ricos”
Em sua fala, Alberto Vásquez classificou a legislação paulista de regularização fundiária como “uma reforma agrária para os ricos”. Segundo ele, a Lei nº 17.557/2022 e o PL 410/2025, de autoria do governador Tarcísio de Freitas, representam uma “anistia à grilagem institucionalizada”.
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O que deveria ser legitimação de pequenas posses deu lugar à alienação de grandes áreas por até 10% do valor da terra |
“Em São Paulo, aquilo que deveria ser legitimação de pequenas posses deu lugar à alienação de grandes áreas por até 10% do valor da terra nua aos grileiros”, afirmou Vásquez, destacando que o projeto aprovado em regime de urgência “não passou por nenhuma comissão da Assembleia Legislativa” .
O assessor parlamentar alertou ainda que as alterações recentes autorizam a venda de áreas públicas até 2.499 hectares fracionadas em nome de terceiros, burlando o limite constitucional de 2.500 hectares.
“É um disparate moral e jurídico: o Estado entrega terras devolutas a quem as ocupou irregularmente, legaliza fraudes e destrói décadas de políticas públicas voltadas à reforma agrária”, criticou.
Segundo Vásquez, o impacto financeiro da lei equivale a bilhões de reais em patrimônio público transferido ao latifúndio. Ele lembrou que uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 7326/2022), movida pelo PT Nacional, está suspensa no Supremo Tribunal Federal desde que o governador se reuniu com a ministra Cármen Lúcia.
“A função social da terra foi abandonada”
A jurista Sônia Morais, da ABRA, fez um resgate histórico da legislação agrária paulista e denunciou a distorção de seu sentido original.
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O que vemos agora é o desmonte total |
“A valorização da terra era pelo trabalho, pela geração de emprego e pela produção de alimentos. Hoje, o que se valoriza é a especulação fundiária”, lamentou .
Ela recordou a atuação do governo Franco Montoro, que criou o ITESP e os assentamentos estaduais baseados no direito real de uso, sem privatizar áreas públicas.
“O Estado de São Paulo foi pioneiro ao criar assentamentos com base em terras devolutas. O que vemos agora é o desmonte total desse legado, a transformação do ITESP em uma imobiliária que legaliza a concentração fundiária”, criticou.
Sônia também alertou para o risco de entrega das riquezas naturais e do subsolo a mineradoras e empresas estrangeiras, ressaltando que “até áreas de assentamento já autorizadas podem ser exploradas por mineração, com autorização do governo federal”.
“Estamos diante da destruição do conceito de função social da terra. A legislação ambiental, agrária e minerária precisa ser revista sob a ótica dos direitos humanos e da soberania nacional”, defendeu .
“É um processo de entrega e repressão”
Encerrando o debate, Fernanda Matheus, da Direção Estadual do MST, destacou o caráter autoritário das recentes medidas do governo estadual e a escalada da repressão contra o movimento.
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Além do desmonte legal, há uma política de perseguição |
“O governo Tarcísio tem promovido a política da ocupação zero. Ele se gaba dizendo que o MST não se cria em São Paulo, mas isso se sustenta pela força da repressão policial”, denunciou .
Fernanda relatou que as últimas ocupações realizadas pelo movimento no Pontal do Paranapanema foram reprimidas em menos de uma hora, com uso massivo de efetivos policiais, cavalos e cães.
“Além do desmonte legal, há uma política de perseguição. O governo criou até um setor de inteligência na Polícia Civil para monitorar dirigentes do MST. Isso revela o grau de autoritarismo desse projeto de Estado”, afirmou.
Para Fernanda, a defesa das terras públicas é uma questão de soberania nacional e de democracia.
“Não é só uma disputa fundiária: é uma disputa pelo sentido do país, pelo direito de o povo decidir o destino de suas terras”, concluiu.
Entre as falas, uma síntese possível ecoou das palavras de Sônia Morais:
“A história nos mostra que quando o Estado abdica do papel de garantidor da justiça social, o que prospera é o privilégio. E o privilégio é o outro nome da grilagem.”
Entenda as Leis: Regularização ou Legalização da Grilagem?
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Os PLs são incostitucionais |
A Lei nº 17.557/2022 e o Projeto de Lei nº 410/2025 são
apresentados pelo governo paulista como medidas para “dar segurança jurídica” e
“regularizar ocupações antigas em terras devolutas”. Mas, sob uma análise
crítica, essas normas representam um marco
da legalização da grilagem de terras públicas — um processo de privatização do patrimônio do Estado
em benefício de grandes proprietários rurais.
Lei nº 17.557/2022
Aprovada em julho de 2022, a lei criou o Programa Estadual de Regularização de Terras, autorizando o governo a celebrar acordos judiciais e administrativos com ocupantes de áreas devolutas ou “presumivelmente devolutas” — ou seja, terras públicas que nunca foram oficialmente doadas, vendidas ou destinadas à reforma agrária.
Na prática, o dispositivo permite que o Estado venda essas áreas a quem já as ocupa, alegando posse mansa e pacífica, mediante pagamento de um valor simbólico: a partir de 10% do preço médio da terra nua, calculado pelo Instituto de Economia Agrícola. O ocupante pode ainda parcelar o pagamento em até dez anos, com correção mínima.
A lei, portanto, reconhece como legítima a posse construída sobre a irregularidade. Ao não exigir a comprovação de boa-fé na origem da ocupação, nem mecanismos eficazes de aferição da função social da terra, o Estado abre caminho para que latifundiários que grilaram áreas públicas as regularizem facilmente, pagando pouco e consolidando juridicamente uma propriedade que nasceu da violação da lei.
Projeto de Lei nº
410/2025
O PL nº 410/2025, protocolado pelo governo em abril de 2025, altera e amplia a Lei nº 17.557. Ele propõe unificar e simplificar os processos de regularização em todas as regiões administrativas do Estado, incorporando também as Leis nº 11.600/2003 (10ª Região Administrativa) e nº 16.475/2017 (Regiões de Registro e Itapeva).
Na prática, o projeto retira entraves técnicos e jurídicos que ainda dificultavam a titulação de grandes áreas, tornando o processo mais rápido, automático e menos fiscalizado.
Isso significa que grandes proprietários que ocupam terras públicas em disputa há décadas poderão obter o título definitivo sem o devido exame sobre a legitimidade da posse. O ITESP, órgão técnico responsável pela análise dos casos, passa a ter papel mais burocrático do que investigativo, reduzindo-se a homologar as solicitações apresentadas.
Assim, o PL 410 amplia a lógica de anistia da Lei 17.557: o Estado, em vez de recuperar ou destinar as terras para fins sociais, passa a reconhecer como “regular” aquilo que historicamente foi fruto de grilagem, violência e expulsão de comunidades camponesas, indígenas e quilombolas.
O resultado: concentração fundiária e desmonte da reforma agrária
Em
conjunto, as duas normas criam um mecanismo
institucional e inconstitucional de transferência de terras públicas ao setor privado,
beneficiando especialmente o agronegócio e os latifundiários que consolidaram
suas posses sobre áreas devolutas.
Enquanto o discurso oficial fala em “regularização” e “segurança jurídica”, o efeito concreto é a reprodução da estrutura fundiária desigual que marca o campo brasileiro: poucos donos concentram quase toda a terra, enquanto milhares de famílias seguem sem acesso à propriedade rural.
A regularização sem reforma agrária torna-se, portanto, uma política de legalização da desigualdade. Em vez de corrigir as distorções históricas da concentração de terras, o Estado paulista opta por validar o passado grileiro, garantindo aos grandes ocupantes a titularidade definitiva do que antes era terra pública.
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