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Jesus era pobre, sem terra e lutou pela libertação de todos |
Jesus Cristo era um libertador dos pobres e o Evangelho uma convocação à luta contra a opressão econômica, social e política
Abril, no calendário cristão, celebra a Páscoa, memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, filho de camponeses pobres, peregrino e insurgente contra a opressão. No calendário dos movimentos populares do Brasil, abril também é o mês em que se honra a memória dos mártires de Eldorado dos Carajás, onde 21 trabalhadores sem-terra foram brutalmente assassinados pela Polícia Militar do Pará em 17 de abril de 1996. E é o mês em que o MST, em sua Jornada Nacional de Lutas, reaviva essa história, reafirma seus compromissos e segue a trilhar o difícil caminho da libertação pelo acesso à terra, pela reforma agrária popular e pelo socialismo. Sim, Jesus está muito mais próximo do socialismo do que do capitalismo. Vejamos.
As CEBs, a Teologia da Libertação e o MST
O surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) não pode ser compreendido sem levar em conta o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da Libertação. No final dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970, no contexto da ditadura militar brasileira, a Igreja Católica, sobretudo através do setor progressista, incentivou a formação das CEBs. Essas comunidades, compostas majoritariamente por camponeses, trabalhadores urbanos e populações empobrecidas, tinham como objetivo promover a leitura da Bíblia a partir da realidade concreta de injustiça e exclusão vivida pelos seus membros. As CEBs não eram apenas espaços de espiritualidade, mas também de organização popular e formação crítica. Nelas, os trabalhadores rurais passaram a se reconhecer como sujeitos históricos, capazes de lutar por seus direitos, entre eles, o direito à terra.
Paralelamente, a Teologia da Libertação ganhava força na América Latina, defendendo a ideia de que a fé cristã exigia o compromisso com a transformação das estruturas injustas da sociedade. Para teólogos como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Frei Betto, Jesus Cristo era um libertador dos pobres e o Evangelho uma convocação à luta contra a opressão econômica, social e política. Essa nova visão teológica inspirou a militância de base, oferecendo uma leitura libertadora da fé que denunciava o pecado estrutural da miséria e da exploração e chamava os cristãos à prática da justiça e da solidariedade concreta.
Nesse ambiente de formação comunitária e conscientização social, os trabalhadores rurais começaram a se organizar para reivindicar a democratização da terra. Durante o final da década de 1970 e início dos anos 1980, multiplicaram-se as ocupações de terras improdutivas, impulsionadas pela crise do modelo agrário concentrador e pelo enfraquecimento do regime militar. Muitos dos militantes que lideraram essas ações vinham diretamente das CEBs ou haviam passado por processos de formação política e religiosa inspirados pela Teologia da Libertação.
Em 1984, durante o 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, nasce oficialmente o MST, sintetizando a experiência de organização popular construída nas CEBs e animada pela fé engajada proposta pela Teologia da Libertação. O movimento herdou desses processos a sua capacidade de organização em bases comunitárias, a centralidade da solidariedade, da formação política e da resistência como princípios éticos e estratégicos. A luta pela terra, para o MST, nunca foi apenas uma luta econômica: foi e continua sendo uma luta pela dignidade humana, pela justiça social e pelo direito de todos a uma vida plena, valores que dialogam profundamente com o espírito das primeiras comunidades cristãs descritas no Evangelho.
A vida de Jesus
Jesus nasceu pobre, entre camponeses, em uma Galileia à margem, longe dos centros de poder.
Filho de José e Maria, trabalhadores simples, Jesus cresceu e conheceu a dificuldade da vida rural e, ao virar pregador itinerante, abraçou a causa dos pobres, dos oprimidos, dos famintos de justiça. Seu "Reino de Deus" não foi a reprodução da ordem estabelecida, mas a promessa de um mundo em que os pequenos seriam exaltados e os grandes…
"O Espírito do Senhor está sobre mim porque me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres", proclamou (Lucas 4:18).
Assim também são os homens, mulheres e crianças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Peregrinos da esperança, expulsos pelo latifúndio e pela ganância, eles ocupam terras improdutivas para nelas fazer valer a Constituição e brotar a vida. Combatem a fome, com a organização, a injustiça com a solidariedade, o esquecimento com a luta. A Jornada Nacional de Lutas, que acontece todos os anos em abril, é herdeira da memória de Eldorado dos Carajás e da resistência milenar dos povos que nunca aceitaram a opressão como destino.
Neste ano de 2025, o cenário da luta pela terra em São Paulo expõe com força a violência e o descaso do poder público. Em janeiro, o assentamento do MST em Tremembé, no interior paulista, foi alvo de um ataque brutal que resultou em dois trabalhadores mortos e seis feridos. A ofensiva armada deixou claro que, para os pobres que ousam lutar por seus direitos, o campo ainda é território de sangue.
Na capital paulista, trabalhadores rurais sem-terra ocuparam a sede do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)para denunciar a estagnação da reforma agrária no estado. A ocupação exigiu a retomada imediata dos processos de desapropriação e assentamento de famílias acampadas, diante da omissão das autoridades e da ausência de qualquer avanço significativo.
Ainda em abril, o MST ocupou a usina de cana de açúcar Usina São José, denunciando a destruição ambiental cometida por ela e mostrando que avança a impunidade dos poderosos. O derramamento de melaço de cana-de-açúcar, subproduto industrial da Usina São José, contaminou gravemente os corpos d’água da região. O vazamento começou no ribeirão Tijuco Preto, afluente do rio Piracicaba, e percorreu cerca de 70 quilômetros até chegar à Área de Proteção Ambiental (APA) Tanquã, conhecida como o “Mini Pantanal Paulista”, um dos locais de maior reprodução de espécies nativas no interior de São Paulo. O resultado foi a morte de aproximadamente 250 mil peixes e a destruição do sustento de 130 famílias de pescadores, num crime ecológico e social de grandes proporções. A cena se aproxima da descrição bíblica do Apocalipse:
“E o segundo anjo derramou a sua taça no mar, e este tornou-se em sangue como que de um morto, e morreu no mar toda alma vivente. E o terceiro anjo derramou a sua taça nos rios e nas fontes das águas, e tornaram-se em sangue.” (Apocalipse 16:3-4).
O que deveria ser fonte de vida virou morte; o que deveria alimentar, agora contamina e mata.
Mas, assim como Jesus e os cristãos primitivos foram perseguidos e condenados por lutarem ao lado dos pobres, sendo condenados pelo Estado, lutadoras e lutadores do MST, sem mandado judicial, após a negociação por uma retirada pacífica já em andamento, enfrentaram forte repressão policial, com o uso de bombas e tiros. Famílias que buscavam produzir alimento e garantir o direito constitucional à terra foram tratadas como inimigas, enquanto o latifúndio criminoso, improdutivo e embargado pela justiça seguiu protegido.
Os inimigos são os mesmos
Os mesmos inimigos que Jesus enfrentou ressurgem hoje sob novas máscaras. Contra os latifundiários que expropriavam o povo, Jesus dizia:
"Ai de vocês, ricos!"
(Lucas 6:24).
Hoje, a Bancada Ruralista perpetua a concentração de terras, protege os interesses dos grandes proprietários e criminaliza quem ousa sonhar com a Reforma Agrária.
Contra os fariseus e hipócritas que se julgavam donos da fé e do povo, Jesus ergueu sua voz:
"Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens"
(Mateus 23:13).
Hoje, parte da chamada Bancada da Bíblia ocupa o púlpito da política para abençoar a injustiça e condenar os pobres.
E contra a violência de Estado, que esmagava os que buscavam a liberdade, Jesus não se calou — e pagou com a vida. Ele foi preso, torturado, julgado em farsa e executado entre ladrões. Assim também, ontem em Eldorado dos Carajás e hoje nas ocupações, assentamentos e estradas de São Paulo, o sangue dos trabalhadores continua a ser derramado pela força brutal a serviço do latifúndio e do capital financeiro.
Neste Abril de Lutas, em que Páscoa e 17 de abril se encontram, recordamos que a cruz de Cristo e a cruz dos mártires da terra não são símbolos de derrota, mas sementes de ressurreição. A luta pela terra é a luta pela vida — vida plena, vida digna, vida em abundância, como Jesus anunciou; com direto a alimentação saudável e plantio de árvores.
A Jornada Nacional de Lutas do MST, com suas ocupações, marchas, feiras e ações de solidariedade, é mais do que uma agenda política: é a atualização viva do Evangelho dos pobres, o testemunho de que a terra pode e deve ser para quem nela trabalha.
Em cada bandeira vermelha hasteada, em cada pedaço de terra conquistado, em cada escola construída nos assentamentos, ressoa o mesmo grito que atravessa séculos:
"Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados"
(Mateus 5:6).
Lembrar Eldorado dos Carajás, denunciar o ataque de Tremembé, dar voz às ocupações do Incra e de Rio das Pedras, celebrar a Páscoa a partir da memória do que foi e por quem foi a vida e morte de Cristo, lutar em Abril junto a trabalhadores do campo e da cidade é reafirmar que a última palavra não será da morte, da fome ou da injustiça. A última palavra será da vida, será dos que têm fome e sede de justiça.
Aos nossos mortos, nem um minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta.
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