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quinta-feira, 24 de abril de 2025

Direitos humanos no campo são tema de roda de conversa promovida pela OAB Ribeirão Preto

 

Procurador de justiça aposentado Dr. Marcelo Pedroso Goulart destacou a Constituição em sua fala.
Fotos: @filipeaugustoperes

Evento reuniu juristas, especialistas e militantes para discutir os desafios enfrentados por comunidades rurais na garantia de seus direitos fundamentais no Brasil

Na noite desta quarta-feira (23) a Casa da Advocacia de Ribeirão Preto sediou a roda de conversa “A Atuação em Defesa dos Direitos da População do Campo e os Desafios na Proteção dos Direitos Humanos no Brasil”. A atividade, promovida pelas Comissões de Direitos Humanos e de Assuntos Agrários da OAB Ribeirão Preto, reuniu um público diverso, formado por advogados, acadêmicos, estudantes, representantes de entidades sociais e militantes de movimentos populares.

A proposta do evento foi ampliar o debate sobre a situação das populações do campo diante de crescentes violações aos seus direitos constitucionais. O massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, serviu de marco simbólico para a realização da atividade, lembrando os 19 trabalhadores rurais assassinados pela Polícia Militar do Pará enquanto marchavam pelo direito à terra.

A presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Dra. Anna Victória Rodrigues de Souza, abriu a atividade destacando a importância de romper o silêncio institucional sobre os conflitos no campo.

“Falar de direito à terra é falar de um direito fundamental, coletivo, de todo o povo brasileiro. Infelizmente, ainda hoje militantes que defendem o direito à terra e ao meio ambiente saudável são vítimas de violências, e não apenas por parte do Estado, mas também da sociedade civil, que ainda carrega preconceitos e desconhecimentos profundos sobre essa luta.”



Com mediação do Vice-Presidente, o advogado Douglas Marques, a roda de conversa contou com a presença de três convidados centrais: o advogado popular Dr. Luciano Botelho, da direção regional do MST, a socióloga Dra. Manuela Martins da Costa Aquino, da direção estadual do MST, e o procurador de justiça aposentado Dr. Marcelo Pedroso Goulart.

A roda de conversa também contou com a presença da vereadora de Ribeirão Preto, Perla Muller (PT). Perla acompanhou as falas e reforçou, nos bastidores do evento, a importância de aproximar o poder legislativo municipal das pautas de justiça social e garantia dos direitos humanos no campo.

Luciano Botelho: a reforma agrária como obrigação do Estado

A reforma agrária é um direito constitucional

O advogado Dr. Luciano Botelho, militante do MST e integrante da Rede Nacional de Advogados Populares, iniciou sua fala com um diagnóstico da situação jurídica dos trabalhadores rurais no Brasil. Para ele, a reforma agrária é um direito constitucional que vem sendo sistematicamente ignorado.

“A Constituição não apenas permite, ela manda que o Estado promova a reforma agrária. O problema não é a falta de previsão legal, mas a ausência de vontade política para cumpri-la.”

Botelho apontou os desafios enfrentados pelos movimentos sociais diante da criminalização de suas ações.

“O discurso jurídico dominante ainda trata a ocupação de terras improdutivas como 'invasão'. Mas a Constituição é clara: propriedade que não cumpre sua função social deve ser desapropriada. Quando o Estado não cumpre esse dever, é legítimo que a sociedade civil organizada ocupe esses espaços e pressione para que os direitos sejam respeitados.”

Luciano ainda reforçou que a luta pela terra não é um ato isolado ou anacrônico:

“Fazer reforma agrária é garantir sobrevivência. É enfrentar a crise ambiental, a fome e o desemprego com medidas estruturantes. A terra não pode ser tratada como mercadoria. Ela é meio de vida, de cultura, de soberania”.

Manuela Aquino: a violência estrutural contra o campo e seus povos

Há uma reconcentração fundiária silenciosa em curso, amparada por grandes interesses econômicos

A socióloga Dra. Manuela Aquino, também militante do MST, trouxe à tona a perspectiva histórica e social dos conflitos no campo. Sua fala foi marcada por uma análise crítica das políticas públicas e dos dados de violência rural.

“A CPT registrou 2.185 conflitos no campo em 2024. Foram 103 tentativas de assassinato, 272 ameaças de morte. Isso revela não apenas uma conjuntura difícil, mas uma estrutura de violência profundamente arraigada na formação social do Brasil.”

Manuela denunciou o avanço da mineração, da monocultura e do agronegócio sobre territórios já conquistados por povos indígenas, quilombolas e assentados.

“Há uma reconcentração fundiária silenciosa em curso, amparada por grandes interesses econômicos. Empresas [...] atuam em escala nacional para capturar terras públicas e privatizá-las.”

A Dra. também lembrou que a violência não se restringe à repressão direta.

“Negar acesso à água, à saúde, à escola, é uma forma de violência. No assentamento Mário Lago, aqui em Ribeirão, há famílias há 20 anos sem acesso pleno a saneamento. Isso também é uma violação de direitos humanos.”

Ao final, Manuela destacou:

“Falar de reforma agrária não é só falar de justiça para quem vive no campo. É falar da nossa soberania alimentar, do direito de toda a sociedade a um território justo, diverso e produtivo”.

Marcelo Goulart: a Constituição exige a reforma agrária



O procurador de justiça aposentado Marcelo Goulart fez uma intervenção didática, centrada na leitura da Constituição.

“O artigo 184 determina: imóvel rural que não cumpre sua função social deve ser desapropriado. A função social está definida no artigo 186: além de produtividade, é preciso respeitar o meio ambiente, os direitos trabalhistas e o bem-estar dos trabalhadores.”

Marcelo fez duras críticas à omissão do Estado e ao modelo do agronegócio:

“Temos um país continental, com terras agricultáveis, e milhões passando fome. Isso é uma vergonha nacional. O agronegócio exporta commodities. Quem alimenta o povo é a agricultura familiar, que recebe migalhas de investimento.”

Para ele, o modelo fundiário brasileiro é inconstitucional.

“É um modelo que viola o princípio da função social da propriedade, concentra riqueza, poder político e ideológico, e impede a construção da sociedade livre, justa e solidária prevista no artigo 3º da Constituição.”

Goulart concluiu com uma proposta:

“Que os parlamentares progressistas em todas as esferas iniciem uma greve de fome simbólica em apoio à reforma agrária. Isso teria repercussão nacional e internacional. A Constituição precisa ser cumprida — e é nosso dever pressionar o governo para isso, seja ele qual for.”

Debate

Encerradas as falas principais, foi aberto um espaço de debate que evidenciou a legitimidade dos movimentos sociais. Uma participante da plateia, ligada ao agronegócio, apresentou um contraponto ao relatar experiências traumáticas envolvendo ocupações de terras. Em sua fala, ela afirmou que não acredita em ocupação de terra, que sempre que se “rompem cercas” é invasão

Respondendo com clareza, o procurador Marcelo Goulart respondeu que

“Existe uma diferença consagrada: é invasão quando se ocupa um imóvel rural que cumpre sua função social. Mas quando o imóvel não cumpre essa função, a ocupação é legítima. Quem detém a terra sem atender aos critérios da Constituição — uso produtivo, respeito ao meio ambiente e aos trabalhadores — não é propriamente dono no sentido constitucional. É ocupante irregular de um bem que deve estar a serviço da coletividade.”

Goulart também lamentou a omissão do Estado e a distorção dos discursos públicos:

“É função do Ministério Público propor a desapropriação de imóveis que não cumprem sua função social. Se isso não está sendo feito, devemos pressionar. O agronegócio tem acesso a bilhões via BNDES. A agricultura familiar, que alimenta o povo, recebe migalhas. Isso não é democracia econômica.”

Dra. Manuela Aquino ainda lembrou que existe um aspecto aspecto histórico da violência e da consequente desigualdade fundiária no Brasil.

“A violência no campo não é nova. O massacre dos povos indígenas, a escravidão, os despejos, tudo isso faz parte de uma estrutura que sempre concentrou terra e expulsou quem dela precisa para viver. Nossa luta é para que essa estrutura mude, e isso exige enfrentamento com os interesses que lucram com o atual modelo.”

O advogado Luciano Botelho também respondeu ao questionamento levantado sobre a legalidade dos movimentos sociais:

“Movimentos sociais não precisam de CNPJ para existir. O direito à livre associação é constitucional. O MST atua dentro da legalidade, e se há denúncias específicas de abuso, que sejam investigadas. Mas criminalizar o conjunto de uma luta legítima por terra, alimentos e dignidade é desinformação — e muitas vezes, má fé.”

Durante o debate, a vereador Perla Muller (PT), lembrou os privilégios e os crimes do agronegócio.

O agronegócio o setor que mais registra trabalhadores e trabalhadoras mantidas em condição análoga à escravidão

“O agronegócio é o setor que mais emite gases de efeito estufa, além de ser o setor que mais recolhe recursos livres pagando nada ou quase nada. Qual é o setor que mais emite gases de efeito estufa?  Qual que é o setor que mais recolhe recursos livres, pagando nada ou quase nada? Saiu uma reportagem falando quem são os donos da água, né? É o setor que mais registra trabalhadores e trabalhadoras mantidas em condição análoga à escravidão”.

E destacou a dificuldade de se levar adiante a reforma agrária, uma vez que a luta social, os interesses da população não se veem representados na institucionalidade, no parlamento.

“Por que não se faz a reforma agrária agora? Esse mesmo poderio, hoje, faz dos 513 deputados e deputadas da Câmara Federal, ocupar-se 324 cadeiras, isso em agosto de 2023. E fazem que 50 das 81 cadeiras do Senado também estejam na monta da chamada bancada ruralista. Como que nós fazemos reforma agrária nessa situação, quando a luta social não encontra apoio que ela precisa na luta institucional?”

O debate foi encerrado com uma reflexão coletiva proposta por Marcelo Goulart.

“O que está em jogo é mais do que propriedade ou produção. É o futuro de uma sociedade que precisa escolher: continuar servindo a uma elite fundiária que concentra riqueza e impede o acesso à comida, ou cumprir a Constituição e repartir a terra, a renda e a dignidade. Nós escolhemos o lado da justiça.”



 

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