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Procurador de justiça aposentado Dr. Marcelo Pedroso Goulart destacou a Constituição em sua fala. Fotos: @filipeaugustoperes |
Evento reuniu juristas, especialistas e militantes para discutir os desafios enfrentados por comunidades rurais na garantia de seus direitos fundamentais no Brasil
Na noite desta
quarta-feira (23) a Casa da Advocacia de Ribeirão Preto sediou a roda de conversa “A Atuação em Defesa dos Direitos
da População do Campo e os Desafios na Proteção dos Direitos Humanos no Brasil”.
A atividade, promovida pelas Comissões de Direitos Humanos e de Assuntos Agrários
da OAB Ribeirão Preto, reuniu um público diverso, formado por advogados, acadêmicos,
estudantes, representantes de entidades sociais e militantes de movimentos
populares.
A proposta
do evento foi ampliar o debate sobre a situação das populações do campo diante
de crescentes violações aos seus direitos constitucionais. O massacre de Eldorado
dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, serviu de marco simbólico para a
realização da atividade, lembrando os 19 trabalhadores rurais assassinados pela
Polícia Militar do Pará enquanto marchavam pelo direito à terra.
A presidenta
da Comissão de Direitos Humanos, Dra. Anna
Victória Rodrigues de Souza, abriu a atividade destacando a
importância de romper o silêncio institucional sobre os conflitos no campo.
“Falar de direito à terra é falar de um direito fundamental, coletivo,
de todo o povo brasileiro. Infelizmente, ainda hoje militantes que defendem o
direito à terra e ao meio ambiente saudável são vítimas de violências, e não
apenas por parte do Estado, mas também da sociedade civil, que ainda carrega
preconceitos e desconhecimentos profundos sobre essa luta.”
Com mediação do Vice-Presidente, o advogado Douglas Marques, a roda de conversa contou com a presença de três convidados centrais: o advogado popular Dr. Luciano Botelho, da direção regional do MST, a socióloga Dra. Manuela Martins da Costa Aquino, da direção estadual do MST, e o procurador de justiça aposentado Dr. Marcelo Pedroso Goulart.
A roda de
conversa também contou com a presença da vereadora de Ribeirão Preto, Perla Muller (PT). Perla acompanhou as
falas e reforçou, nos bastidores do evento, a importância de aproximar o poder
legislativo municipal das pautas de justiça social e garantia dos direitos
humanos no campo.
Luciano
Botelho: a reforma agrária como obrigação do Estado
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A reforma agrária é um direito constitucional |
O advogado
Dr. Luciano Botelho, militante do MST e integrante da Rede Nacional de
Advogados Populares, iniciou sua fala com um diagnóstico da situação jurídica
dos trabalhadores rurais no Brasil. Para ele, a reforma agrária é um direito
constitucional que vem sendo sistematicamente ignorado.
“A Constituição não apenas permite, ela manda que o Estado promova a
reforma agrária. O problema não é a falta de previsão legal, mas a ausência de
vontade política para cumpri-la.”
Botelho
apontou os desafios enfrentados pelos movimentos sociais diante da
criminalização de suas ações.
“O discurso jurídico dominante ainda trata a ocupação de terras
improdutivas como 'invasão'. Mas a Constituição é clara: propriedade que não
cumpre sua função social deve ser desapropriada. Quando o Estado não cumpre
esse dever, é legítimo que a sociedade civil organizada ocupe esses espaços e
pressione para que os direitos sejam respeitados.”
Luciano
ainda reforçou que a luta pela terra não é um ato isolado ou anacrônico:
“Fazer reforma agrária é garantir sobrevivência. É enfrentar a crise
ambiental, a fome e o desemprego com medidas estruturantes. A terra não pode
ser tratada como mercadoria. Ela é meio de vida, de cultura, de soberania”.
Manuela
Aquino: a violência estrutural contra o campo e seus povos
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Há uma reconcentração fundiária silenciosa em curso, amparada por grandes interesses econômicos |
A socióloga
Dra. Manuela Aquino, também militante do MST, trouxe à tona a perspectiva
histórica e social dos conflitos no campo. Sua fala foi marcada por uma análise
crítica das políticas públicas e dos dados de violência rural.
“A CPT registrou 2.185 conflitos no campo em 2024. Foram 103 tentativas
de assassinato, 272 ameaças de morte. Isso revela não apenas uma conjuntura
difícil, mas uma estrutura de violência profundamente arraigada na formação
social do Brasil.”
Manuela
denunciou o avanço da mineração, da monocultura e do agronegócio sobre
territórios já conquistados por povos indígenas, quilombolas e assentados.
“Há uma reconcentração fundiária silenciosa em curso, amparada por
grandes interesses econômicos. Empresas [...] atuam em escala nacional para
capturar terras públicas e privatizá-las.”
A Dra.
também lembrou que a violência não se restringe à repressão direta.
“Negar acesso à água, à saúde, à escola, é uma forma de violência. No
assentamento Mário Lago, aqui em Ribeirão, há famílias há 20 anos sem acesso
pleno a saneamento. Isso também é uma violação de direitos humanos.”
Ao final,
Manuela destacou:
“Falar de reforma agrária não é só falar de justiça para quem vive no
campo. É falar da nossa soberania alimentar, do direito de toda a sociedade a
um território justo, diverso e produtivo”.
Marcelo
Goulart: a Constituição exige a reforma agrária
O procurador
de justiça aposentado Marcelo Goulart fez uma intervenção didática, centrada na
leitura da Constituição.
“O artigo 184 determina: imóvel rural que não cumpre sua função social deve
ser desapropriado. A função social está definida no artigo 186: além de
produtividade, é preciso respeitar o meio ambiente, os direitos trabalhistas e
o bem-estar dos trabalhadores.”
Marcelo fez
duras críticas à omissão do Estado e ao modelo do agronegócio:
“Temos um país continental, com terras agricultáveis, e milhões passando
fome. Isso é uma vergonha nacional. O agronegócio exporta commodities. Quem
alimenta o povo é a agricultura familiar, que recebe migalhas de investimento.”
Para ele, o
modelo fundiário brasileiro é inconstitucional.
“É um modelo que viola o princípio da função social da propriedade,
concentra riqueza, poder político e ideológico, e impede a construção da
sociedade livre, justa e solidária prevista no artigo 3º da Constituição.”
Goulart
concluiu com uma proposta:
“Que os parlamentares progressistas em todas as esferas iniciem uma
greve de fome simbólica em apoio à reforma agrária. Isso teria repercussão
nacional e internacional. A Constituição precisa ser cumprida — e é nosso dever
pressionar o governo para isso, seja ele qual for.”
Debate
Encerradas
as falas principais, foi aberto um espaço de debate que evidenciou a
legitimidade dos movimentos sociais. Uma participante da plateia, ligada ao agronegócio,
apresentou um contraponto ao relatar experiências traumáticas envolvendo
ocupações de terras. Em sua fala, ela afirmou que não acredita em ocupação de
terra, que sempre que se “rompem cercas” é invasão
Respondendo
com clareza, o procurador Marcelo Goulart respondeu que
“Existe uma diferença consagrada: é invasão quando se ocupa um imóvel
rural que cumpre sua função social. Mas quando o imóvel não cumpre essa função,
a ocupação é legítima. Quem detém a terra sem atender aos critérios da
Constituição — uso produtivo, respeito ao meio ambiente e aos trabalhadores —
não é propriamente dono no sentido constitucional. É ocupante irregular de um
bem que deve estar a serviço da coletividade.”
Goulart
também lamentou a omissão do Estado e a distorção dos discursos públicos:
“É função do Ministério Público propor a desapropriação de imóveis que
não cumprem sua função social. Se isso não está sendo feito, devemos
pressionar. O agronegócio tem acesso a bilhões via BNDES. A agricultura
familiar, que alimenta o povo, recebe migalhas. Isso não é democracia
econômica.”
Dra. Manuela
Aquino ainda lembrou que existe um aspecto aspecto histórico da violência e da
consequente desigualdade fundiária no Brasil.
“A violência no campo não é nova. O massacre dos povos indígenas, a
escravidão, os despejos, tudo isso faz parte de uma estrutura que sempre
concentrou terra e expulsou quem dela precisa para viver. Nossa luta é para que
essa estrutura mude, e isso exige enfrentamento com os interesses que lucram
com o atual modelo.”
O advogado
Luciano Botelho também respondeu ao questionamento levantado sobre a legalidade
dos movimentos sociais:
“Movimentos sociais não precisam de CNPJ para existir. O direito à livre
associação é constitucional. O MST atua dentro da legalidade, e se há denúncias
específicas de abuso, que sejam investigadas. Mas criminalizar o conjunto de
uma luta legítima por terra, alimentos e dignidade é desinformação — e muitas
vezes, má fé.”
Durante o debate, a vereador Perla Muller (PT), lembrou os privilégios e os crimes do agronegócio.
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O agronegócio o setor que mais registra trabalhadores e trabalhadoras mantidas em condição análoga à escravidão |
“O agronegócio é o setor que mais emite gases de efeito estufa, além de ser o setor que mais recolhe recursos livres pagando nada ou quase nada. Qual é o setor que mais emite gases de efeito estufa? Qual que é o setor que mais recolhe recursos livres, pagando nada ou quase nada? Saiu uma reportagem falando quem são os donos da água, né? É o setor que mais registra trabalhadores e trabalhadoras mantidas em condição análoga à escravidão”.
E destacou a dificuldade de se levar adiante a reforma agrária, uma vez que a luta social, os interesses da população não se veem representados na institucionalidade, no parlamento.
“Por que não se faz a reforma agrária
agora? Esse mesmo poderio, hoje, faz dos 513 deputados e deputadas da Câmara
Federal, ocupar-se 324 cadeiras, isso em agosto de 2023. E fazem que 50 das 81
cadeiras do Senado também estejam na monta da chamada bancada ruralista. Como
que nós fazemos reforma agrária nessa situação, quando a luta social não
encontra apoio que ela precisa na luta institucional?”
O debate foi
encerrado com uma reflexão coletiva proposta por Marcelo Goulart.
“O que está em jogo é mais do que propriedade ou produção. É o futuro de
uma sociedade que precisa escolher: continuar servindo a uma elite fundiária
que concentra riqueza e impede o acesso à comida, ou cumprir a Constituição e
repartir a terra, a renda e a dignidade. Nós escolhemos o lado da justiça.”
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