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terça-feira, 25 de agosto de 2020

Um espectro ronda a universidade pública: a privatização e suas mentiras

 
Por: Isabela Silva

O ensino superior é um instrumento extremamente importante para a manutenção da sociedade: transformando-a, garantindo oportunidades para milhares de brasileiros; mas, principalmente, uma ferramenta essencial para a luta de classes. Até junho de 2019, 90% da produção científica nacional veio das universidades públicas através dos alunos de graduação e pós, que vão desde a produção de novos remédios até as inovações tecnológicas que trazem inúmeros benefícios à sociedade. Entretanto, ainda que as universidades públicas brasileiras sejam esse motor e também referência internacional, o discurso da privatização tem cada vez mais força nos últimos anos.

A universidade pública, gratuita e de qualidade, direito ao qual todos deveriam ter acesso, vive sob constante ataque. Um dos mais duros golpes sofridos pela educação recentemente foi a PEC 55/16, que congelou o teto de gastos sociais (como saúde e educação) por 20 anos. Somado a isso, através de um forte discurso de que a universidade só tem “balbúrdia” e que os estudantes só fumam maconha e não dão retorno à sociedade, operou-se em grande medida um novo golpe à universidade pública gratuita: o projeto “Future-se”, dirigido pelo ministro da educação, Weintraub, em 2019, que tentava acabar com a autonomia universitária das universidades federais.

Não é novidade para ninguém que questionamentos acerca da mensalidade configuram o imaginário de parcelas mais conservadoras do Brasil. Mas a universidade pública, embora seja gratuita, conta com um universo de investimentos do setor privado. Somente a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), conta com uma parceria de R$ 200 milhões com a Fapesp e a Shell, para pesquisas inovadoras no setor de gás; a UFRJ, do mesmo modo, abriga um núcleo de pesquisas tecnológicas da Petrobras; já o Centro de Química Medicinal da Unicamp trabalha com três empresas farmacêuticas e de biotecnologia e o Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia USP/Ipen (Cietec) conta com mais de 100 empresas incubadas e 150 graduadas no currículo.

No mesmo sentido, é um mito acreditar que as grandes universidades do mundo são completamente privadas e que seu sucesso advém disso: em países desenvolvidos, a maior parte do dinheiro que financia a ciência na universidade é público, inclusive para as universidades que cobram a mensalidade. Nos Estados Unidos, até 2016, 60% dos investimentos destinados à pesquisa advinham do governo, segundo a NSF International. Do mesmo modo, na União Europeia esse percentual chega a 77%. E isso ocorre muitas vezes porque não é de interesse do setor privado a pesquisa básica, que se destina ao desenvolvimento do conhecimento científico sobre fenômenos do universo, que não objetiva o lucro e a aplicação prática a curto prazo.

Ademais, ao se questionar o quanto o governo federal e estadual despende por ano com o ensino superior há de se lembrar que, constitucionalmente, o ensino básico e fundamental devem ser prioridades dos municípios, bem como o ensino fundamental e médio, devem ser objeto de primazia dos estados; e da federação, o ensino superior. E tudo isso porque há um grande fardo e uma verdadeira revolução ao se adentrar no universo das universidades públicas: a pesquisa científica! Professores e alunos, que, além de lecionarem e estudarem, organizam suas pesquisas, formando-se novos cientistas na graduação, pós-graduação, com o mestrado, doutorado e pós-doutorado. Segundo o Geocapes (2017), 81% dos cursos de pós-graduação concentravam-se na universidade pública e apenas 19%, na rede privada.

Esse grande complexo, rico em recursos humanos e com larga infraestrutura física apenas enriquecem a sociedade: as universidades públicas, federais e estaduais, são 80% das instituições que mais depositam patentes no país. Só a Unicamp possui 603 empresas-filhas em atividade, faturando mais de R$ 4,8 bilhões por ano; 10 dos 16  fundadores de empresas “unicórnios” do Brasil são formados na USP, sendo que cada uma das empresas vale mais de US$ 1 bilhão. Além da produção científica e hospitalar, a universidade pública concentra um grande polo cultural, com diversidade em museus, orquestras e teatros, além das diversas atividades de extensão (parte essencial do tripé universitário, juntamente ao ensino e pesquisa). Só a USP tem 4 museus e 15 coleções, que recebem quase meio milhão de visitantes por ano, e cinco hospitais públicos, entre eles o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, que em 2018 realizou quase 1,5 milhão de atendimentos e 50 mil cirurgias. Milhares de cursos gratuitos são oferecidos, além de 5 mil vagas para pessoas acima de 60 anos estudarem na universidade de forma gratuita.

A cobrança de mensalidade jamais abarcaria todo o complexo orquestrado na universidade pública. Uma pesquisa realizada pela USP, que leva em consideração que a renda familiar bruta de 45% dos calouros é de até cinco salários mínimos, aponta que a cobrança de mensalidade não chegaria a cobrir 8% de seu orçamento. Ainda que 90 mil alunos de graduação e pós pagassem mil reais por mês, isso representaria apenas 9 milhões de reais à USP, que, mensalmente, gasta aproximadamente 500 milhões de reais com profissionais, contas de luz, telefone, transporte, limpeza, equipamentos, bolsas, material bibliográfico, entre outras despesas.  Mais uma vez, observando-se o MIT, nos EUA, ainda que seus alunos paguem um valor de aproximadamente 100 mil reais por ano, isso representa apenas 10% de sua receita.

A universidade pública e gratuita é cara, conta com investimentos privados e gera um imenso retorno à sociedade ao movimentar a economia, proporcionar cultura, lazer e oportunidades à população. Ainda sim, há muito para se melhorar, democratizando-se cada vez mais o acesso à universidade pública, como já iniciado pelas cotas, realizando-se políticas de permanência consistentes e que supram a necessidade daqueles que lutam para viver o sonho da transformação, que é viver e aprender nesse universo.

É preciso que se compreenda a universidade e que sua autonomia financeira e administrativa sejam preservadas. A universidade é antro da diversidade e representa o desenvolvimento e o progresso: quem prega que a universidade deve ser privatizada, não a conhece. Não vive seus desafios diários e suas lutas, que muito trazem conquistas à sociedade, como às milhares de vidas que dependem do SUS, dos cursinhos populares, das aulas de economia doméstica, dos milhares de cursos gratuitos oferecidos, entre tantos outros benefícios. Defender a universidade pública, gratuita e de qualidade é defender o futuro e qualquer coisa fora disso é uma grande mentira, fruto de um espectro obscuro e obsoleto difundido pelas classes dominantes; a universidade pública e gratuita resiste!

Isabela Silva é Conselheira Conselho Universitário USP, Conselheira suplente Conselho Gestor da USP Ribeirão - Representantes Discentes e Diretora de Relações Institucionais UEE São Paulo.

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