AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RÉU: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
DESPACHO/DECISÃO
Decisão
em regime de plantão, às 04:30 do dia 28/3/2020.
Trata-se de ação civil pública
proposta pelo Ministério Público Federal contra a União, com pedido de tutela
de urgência para que, entre outras providências, a ré abstenha-se de veicular
peças publicitárias relativas à campanha "O Brasil não pode parar”. Alega
o Ministério Público Federal que a referida campanha instaria os brasileiros a
voltarem a suas atividades normais, sem que a campanha estivesse embasada em
documentos técnicos que indicassem que essa seria a providência adequada,
considerado o estágio atual da pandemia do Covid-19 no Brasil, o que poderia
agravar o risco da disseminação da doença no país.
O Parquet sustenta, ainda,
que: (i) a veiculação da campanha seria contrária os princípios da precaução e
prevenção, aplicáveis ao direito à saúde; (ii) a propaganda seria abusiva e não
informativa; (iii) haveria ilegalidade e violação ao princípio da finalidade na
referida campanha; (iv) haveria um comportamento contraditório da União,
especificamente à luz da Portaria nº 356/2020 do Ministério da Saúde.
A ação foi distribuída para a 10ª
Vara Federal do Rio de Janeiro às 21:35 do dia 27/3/2020, vindo os autos
conclusos para análise do juízo plantonista pela existência de pedido de tutela
de urgência, cuja demora na análise pode, potencialmente, resultar em risco de
grave prejuízo ou de difícil reparação, conforme preceitua a Resolução n.
71/2009 do Conselho Nacional de Justiça.
É o breve
relatório. Decido.
O pedido
de tutela de urgência requerido pelo Ministério Público Federal
consiste
em:
“1 - Liminarmente, a título de tutela
provisória de urgência (art. 300, CPC), para a qual os requisitos de
relevância jurídica e urgência já foram demonstrado, determinar à ré UNIÃO:
a) Abster-se de veicular, por rádio, televisão, jornais, revistas, sites ou
qualquer outro meio, físico ou digital, peças publicitárias relativas à
campanha "O Brasil não pode parar", ou qualquer outra que sugira à
população brasileira comportamentos que não estejam estritamente embasados em
diretrizes técnicas, emitidas pelo Ministério da Saúde, com fundamento em
documentos públicos, de entidades científicas de notório reconhecimento no
campo da epidemiologia e da saúde pública;
b)
Abster-se de, em todos os perfis
oficiais vinculados ao governo federal em redes sociais, aplicativos de
mensagens e qualquer outro canal digital, compartilhar ou de qualquer outra
maneira fomentar a divulgação de informações que não estejam estritamente
embasadas em evidências científicas, nos termos do pedido anterior;
c)
Divulgar, no prazo de 24 horas,
em todos os canais, físicos ou digitais, de comunicação social, e em disparos
massificados em redes sociais e aplicativos de mensagens, nota oficial, em
versão escrita, falada (“áudios”) e filmada (“vídeos”), em que reconheça que a
campanha publicitária "O Brasil não pode parar" não está embasada em
informações científicas, de modo que seu teor não deve ser seguido pela
população ou pelas autoridades, como embasamento para decisões relativas à
saúde pública;
d) Promover campanha de informação a respeito das formas de transmissão e
prevenção da Covid-19, segundo as recomendações técnicas atuais, no prazo de 15
dias, a contar da intimação da decisão que determinar a medida.
2 - Até que se faça a divulgação apontada no item
anterior e como medida acauteladora e de execução por sub-rogação, que se
oficie às empresas responsáveis pelas redes sociais “Facebook”, “Twitter”, “YouTube”
e “Instagram” e pelos aplicativos de mensagens “WhatsApp” e “Telegram” para
que:
a) promovam atos tendentes a impedir o tráfego de conteúdo de áudio, vídeo
e imagem relativos à campanha “O Brasil Não Pode Parar” em seus aplicativos e
redes sociais, mediante solução técnica que não permita realização com sucesso
de “upload” ou publicação dos materiais da campanha, cessando a medida assim
que efetivadas as providências constantes nos subitens “a”, “b” e “c” do item “1”;
b)
utilizem soluções técnicas
adequadas para que não seja possível indexar conteúdo (“tag”) ou agregar
múltiplas postagens de terceiros usuários das redes sociais e aplicativos de
mensagens a partir dos marcadores (hashtags) “#voltabrasil” ou “#obrasilnaopodeparar”,
ou “#oBrasilNãoPodeParar”.
c)
veiculem, periodicamente, por
meio dos seus aplicativos e redes sociais, inclusive mediante disparos em massa
de mensagens, como medida de contrapropaganda, para fins de esclarecimento da
população brasileira, a seguinte mensagem: “O distanciamento social deve ser
mantido até que o
Brasil possua testes suficientes e base científica
para gradual retomada das atividades. Países que demoraram a fazer isso
registram milhares de mortes e colapso de seus sistemas de saúde por causa da
Covid-19. Fique em casa. Ajude a salvar vidas”.
Requer que todos os pedidos acima formulados contra
os réus sejam determinados sob pena de multa cominatória não inferior a R$
100.000,00 (cem mil reais) diários ou por ato de violação, conforme o caso.”
Verifica-se dos elementos
presentes nos autos que a campanha “O Brasil não pode parar” vem sendo
promovida por meio de hashtags em publicações oficiais do
governo federal, bem como por meio de divulgação de vídeo. Veja-se a
transcrição do vídeo da campanha em comento, conforme link colacionado no
Evento 1, Anexo 2:
“Para os quase 40 milhões de trabalhadores
autônomos, #oBrasilNãoPodeParar.
Para os ambulantes, engenheiros, feirantes,
arquitetos, pedreiros, advogados, professores particulares e prestadores de
serviço em geral, #oBrasilNãoPodeParar.
Para os comerciantes do bairro, para os lojistas do
centro, para os empregados domésticos, para milhões de brasileiros,
#oBrasilNãoPodeParar.
Para todas as empresas que estão paradas e que
acabarão tendo de fechar as portas ou demitir funcionários,
#oBrasilNãoPodeParar.
Para dezenas de milhões de brasileiros assalariados
e suas famílias, seus filhos e seus netos, seus pais e seus avós
#oBrasilNãoPodeParar.
Para os milhões de pacientes das mais diversas
doenças e os heroicos profissionais de saúde que deles cuidam, para os
brasileiros contaminados pelo coronavírus, para todos que dependem de
atendimento e da chegada de remédios e equipamentos, #oBrasilNãoPodeParar.
Para quem defende a vida dos brasileiros e as
condições para que todos vivam com qualidade, saúde e dignidade, o Brasil
definitivamente não pode parar.”
Numa primeira análise,
verifica-se que, apesar de despido de conteúdo informacional ou educativo, o
referido material pode transmitir orientação social. Segundo o Ministério
Público Federal, essa mensagem seria abusiva, na medida em que induziria a
população a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde.
Os dados mais atualizados da situação
da Covid-19 no Brasil apontam que há 3.417 casos confirmados, bem como 92
mortes decorrentes da doença[1]. Em
20/3/2020, ficou declarado, em todo o território nacional, o estado de
transmissão comunitária do coronavírus, por meio da Portaria n. 454/2020 do
Ministério da Saúde. A curva dos casos acumulados desde a confirmação do
primeiro caso no país, verificada há 31 dias, pode ser vista no gráfico[2] abaixo, que denota sua clara ascensão:
O achatamento da curva de casos é
indicado pela comunidade científica como medida necessária para que os sistemas
de saúde mantenham sua capacidade de tratar os doentes, sob pena de entrarem em
colapso, o que resultaria em um número muito maior de mortes — tanto por
Covid-19 como por outras causas – como bem ressaltou o Ministério Público em
sua petição inicial.
Na mesma lógica, o estudo
realizado pela Imperial College of London (Evento 1, Anexo 4)[3] prevê que medidas de distanciamento
social e reforço do distanciamento dos idosos levariam a 529.779 mortes no
Brasil, ao passo que uma supressão da epidemia, consistente no isolamento
social, levaria, na pior das hipóteses, a 206.087 mortes. Quando se tratam de
indivíduos necessitando de leitos em UTI, no primeiro cenário teríamos 702.497
pessoas, e no segundo, 460.361.
Pois bem. Os princípios da
precaução e prevenção são aplicáveis ao direito à saúde, conforme já decidiu o
Supremo Tribunal Federal na ADI 5592[4].
A doutrina de Paulo Affonso Leme Machado assim ensina:
“Em caso de dúvida ou incerteza, também deve
se agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A
dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção.
‘O princípio da precaução consiste em dizer não somente somos responsáveis
sobre o que nós sabemos, sobre o que nós deveríamos ter sabido, mas, também,
sobre o de que nós deveríamos duvidar’ – assinala o jurista Jean-Marc Lavielle.
(...) Na dúvida, opta-se pela solução que proteja imediatamente o ser humano e
conserve o meio ambiente (in dubio pro salute ou in dubio pro natura).”[5]
Assim, na análise preliminar do
pedido de tutela de urgência, verifica-se que o incentivo para que a população
saia às ruas e retome sua rotina, sem que haja um plano de combate à pandemia
definido e amplamente divulgado, pode violar os princípios da precaução e da
prevenção, podendo, ainda, resultar em proteção deficiente do direito
constitucional à saúde, tanto em seu viés individual, como coletivo. E essa
proteção deficiente impactaria desproporcionalmente os grupos vulneráveis,
notadamente os idosos e pobres.
Nesse sentido, fica demonstrado o
risco na veiculação da campanha “O Brasil não pode parar”, que confere estímulo
para que a população retorne à rotina, em contrariedade a medidas sanitárias de
isolamento preconizadas por autoridades internacionais, estaduais e municipais,
na medida em que impulsionaria o número de casos de contágio no país.
Na dita campanha não há menção à
possibilidade de que o mero distanciamento social possa levar a um maior número
de casos da Covid-19, quando comparado à medida de isolamento, e que a adoção
da medida mais branda teria como consequência um provável colapso dos sistemas
público e particular de saúde. A repercussão que tal campanha alcançaria se
promovida amplamente pela União, sem a devida informação sobre os riscos e
potenciais consequências para a saúde individual e coletiva, poderia trazer
danos irreparáveis à população.
Pelo exposto, DEFIRO EM PARTE A TUTELA DE URGÊNCIA para
que a União se abstenha de veicular,
por rádio, televisão, jornais, revistas, sites ou qualquer outro meio, físico
ou digital, peças publicitárias relativas à campanha "O Brasil não pode
parar", ou qualquer outra que sugira à população brasileira comportamentos
que não estejam estritamente embasados em diretrizes técnicas, emitidas pelo
Ministério da Saúde, com fundamento em documentos públicos, de entidades
científicas de notório reconhecimento no campo da epidemiologia e da saúde
pública. O descumprimento da ordem está sujeito à multa de R$ 100.000,00 (cem
mil reais) por infração.
Os demais itens do pedido de
tutela de urgência deverão ser analisados pelo juízo natural, por não se
verificar risco iminente que justifique a atuação do juízo de plantão.
Intime-se
com urgência, para cumprimento imediato da tutela deferida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário