Antônio Alberto Machado- Publicado em 20/03/2020 |
O NOVO coronavírus é novo porque já havia outros coronas circulando por aqui pelo menos desde o começo do século passado. A “novidade” do atual está em seu rápido potencial de propagação. É bem por isso que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou agora estado de pandemia – ou seja, uma epidemia com ampla disseminação; no caso, disseminação em âmbito global.
O que aconteceu, e está acontecendo, na China, no Irã e na Itália revela que de fato o momento é crítico. Indica que a Humanidade poderá passar por uma catástrofe de proporções bíblicas. Tomara que não! De qualquer maneira, já é possível dizer que o impacto social, econômico e sanitário dessa pandemia é o maior das últimas gerações, desde a Gripe Espanhola, que, em apenas dois anos, matou vinte milhões de pessoas (1918-1919).
Por força de tal magnitude, muitos entraram a tirar conclusões moralistas sobre essa nova pandemia: o coronavírus seria um castigo para a Humanidade egoísta; uma advertência contra as injustiças do mundo. Seria, talvez, um sinal de que os humanos precisam rever seus valores fundamentais… Enfim, os palpites variam.
Creio que é bobagem prosseguir nessa direção. Não há nada de castigo, ensinamento ou provação nesta pandemia – é o mundo. De mais a mais, a Humanidade já passou por outras catástrofes semelhantes, ou maiores que essa, e nem assim se redimiu, não corrigiu seus erros e caminhos. Por isso, e por ora, sem julgamentos morais, é preferível refletir sobre algumas contradições que nos afligem nessa nova pandemia.
Primeira delas: o novo corona é um “vírus global”, que está a exigir o fechamento das fronteiras entre países para impedir sua propagação, só que isso ocorre num momento em que a globalização capitalista vinha exigindo exatamente o contrário, ou seja, a derrubada das fronteiras e a liberdade dos negócios, do laissez-faire, laissez-passer – “Deixai fazer, deixai passar”.
Num momento de superconexão da Humanidade, em que as pessoas se falam e se veem por meio de áudios e vídeos diariamente, quando as máquinas supersônicas do século XX encurtaram as distâncias no tempo e no espaço, propiciando a fácil locomoção das pessoas por todo o globo terrestre, somos obrigados a ficar em casa, a nos separar – distanciados e até isolados, uns dos outros.
No instante em que o mundo, capitalista e neoliberal, apregoa a minimização e até o desaparecimento do Estado, o coronavírus vem demonstrar, dramaticamente, que o Estado é indispensável à promoção da saúde das pessoas e ao combate às epidemias com potencial para a extinção em massa dos seres humanos.
Bem no momento em que o credo neoliberal propõe a privatização dos sistemas de saúde e de seguridade social, o coronavírus deixa evidente que apenas o mercado, sem a rede pública de saúde, não é capaz de prover o tratamento e o combate a doenças endêmicas, epidêmicas ou pandêmicas – enfim, doenças que atingem indistintamente o conjunto da sociedade, com ou sem plano privado de saúde.
Quando o negacionismo – e até mesmo alguns dirigentes mundiais – põe em dúvida o papel da Ciência, questionando, por exemplo, o aquecimento global e a importância das vacinas, o coronavírus vem escancarar a tarefa primordial do conhecimento científico – quer para a preservação do habitat, nossa Casa Comum, quer para a manutenção da vida no planeta.
No momento em que o mundo está fazendo sua quarta grande revolução (depois da Agrícola, Científica e Industrial), no momento em que mergulhamos de vez na chamada “revolução digital”; quando as novas tecnologias prometem um avanço vertiginoso na direção do futuro e corremos velozmente para a era da indústria e do crescimento 4.0, eis que surge o coronavírus para dizer que devemos parar.
Por último, e sem prejuízo de mais outras contradições, quando o mundo caminhava no rumo da desigualdade crescente entre países e fortunas pessoais, entre povos e indivíduos, surge o novo coronavírus para lembrar que o destino da Humanidade é um só. Que estamos todos no mesmo barco, sujeitos às mesmas intempéries e naufrágios, e que não nos salvaremos sem que todos se salvem.
Antônio Alberto Machado, Professor livre-docente da Unesp.
Nenhum comentário:
Postar um comentário