Professor Antônio Alberto Machado |
NÃO é de
hoje que cientistas, profetas e autores de ficção desconfiam que, uma hora ou
outra, a Terra poderá ser palco de uma catástrofe pandêmica, causada por algum
vírus. Um armagedon de dimensões bíblicas. Tal hipótese sempre esteve mais ou menos
no radar dessa turma que fica tateando o futuro.
É por
isso que os cientistas já andavam de orelha em pé com o coronavírus – desde o
surto do ebola, que é raro por aqui mas matou muita gente na África. Aliás, uma
das hipóteses que os cientistas cogitam para o apocalipse – além da explosão do
nosso sol, aquecimento ou congelamento da Terra, pancada de asteroide ou guerra
nuclear – é o extermínio da humanidade por um vírus altamente transmissível e
letal.
Em filmes,
livros de ficção científica e romances, a catástrofe provocada por um
micro-organismo desses também é tema recorrente. Alguns filmes são famosos,
como, por exemplo, o Epidemia (1995), dirigido por Wolfgang Petersen (que teve
Dustin Hoffman no elenco); e Contágio (2011), dirigido por Steven Soderbergh
(com Matt Damon, Jude Law e Kate Winslet).
A
literatura, da mesma forma, é pródiga nessa temática. Poderia lembrar aqui um
punhado de romances. Mas logo de cara me ocorrem dois deles, que li, reli e
estou treslendo: A peste, de Albert Camus, publicado em 1947, e o Ensaio sobre
a cegueira, de José Saramago, que veio a público (ou a lume, como costumam
dizer os portugueses) em 1995 – junto com o ebola no Congo.
Um
parêntese: depois que estourou a epidemia do novo coronavírus, esses dois
livros entraram para a lista dos mais vendidos na Europa. Na França, Itália e
Reino Unido o livro de Camus dobrou em vendas; Saramago vem logo a seguir –
dois clássicos virando best-sellers, caindo (ou subindo) no gosto da massa.
A história
contada por Saramago diz respeito a uma epidemia virulenta de cegueira, que se
alastra por toda a cidade. As pessoas se contaminam umas às outras e vão
ficando cegas. Uma “cegueira branca” em que veem a luz mas não enxergam nada.
Essa “treva branca” seria uma metáfora para a “crise do nosso tempo” – ao mesmo
tempo uma crise da razão, ética e espiritual.
Os dois
romances, embora tratando de epidemias, têm mensagens diferentes. Enquanto o
livro de Camus, refletindo sobre a precariedade e o absurdo da condição humana,
suscita a ideia de que a solidariedade é a única coisa que poderia dar algum
sentido à nossa existência; Saramago não vê sentido nenhum e vislumbra um
mergulho no caos – a humanidade estaria caminhando para a barbárie, para o
apocalipse, inclusive moral.
Embora
diversas, e aparentemente opostas, no fundo, são duas mensagens que não se
excluem mutuamente – em meio ao caos saramaguiano pode ser que haja espaço para
a solidariedade camusiana; e isso, por si só, já seria suficiente para dar
algum sentido ao absurdo do fracasso humano.
No geral,
os ficcionistas têm um certo talento (ou dom) para enxergar o futuro – senão
não seriam ficcionistas. É curioso como eles veem mais à frente (vejam o livro
do George Orwell, 1984 – uma impressionante antevisão do futuro). Mas não é exatamente
esse teor profético que me chama a atenção nesses livros; prefiro mais as
lições, os ensinamentos que se podem tirar dessas obras apocalípticas.
Por exemplo,
uma leitura cruzada de A peste e Ensaio sobre a cegueira permite entender um pouco
de muita coisa.
Dá pra
ver o quão frágil é a vida e quão absurda é a condição humana (Camus). Mas, em
meio à fragilidade e ao absurdo camusiano, pode ser que haja algum sentido – ou
seja, alguma lógica solidária no caos de Saramago. Se, por um lado, estamos
cegos (“Cegos que, vendo, não veem”), como diz Saramago; por outro, no caos da
cegueira podemos enxergar ao menos a solidariedade – que talvez seja o que nos
restará, como diz Camus.
E pode ser
também que o absurdo e o caos das pandemias nos façam enxergar mais coisas
ainda. Talvez agora enxerguemos o ebola, que matou muita gente na África e a
gente nem ligou. Talvez o absurdo de uma crise sanitária e econômica nos faça
ver que não basta ser solidário na morte, tem que viver na solidariedade.
Parados por causa do vírus, talvez enxerguemos que a correria não leva a nada.
Enfim, talvez tudo isso nos faça enxergar a nossa própria cegueira. Talvez!
Nenhum comentário:
Postar um comentário