Diários de uma Feminista |
Giovanna Wrubel
(Doutora em Letras – FFLCH/USP, membro do GEPALLE -
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento da USP e
da UBM – União Brasileira de Mulheres, filiada à Federação Democrática
Internacional de Mulheres)
O discurso não é simplesmente aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas é aquilo pelo qual e com
o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos
assenhorear-nos.
Michel Foucault[1]
Nos estudos da linguagem podemos
observar, a partir da década de 1960, o interesse pelo estudo da língua situada
na interação social, ou seja, pela Sociolinguística Interacional.
Gumperz e Cook-Gumperz (1982)[2]
salientam que o modelo da Sociolinguística Interacional visa a analisar a
conversação contextualmente situada, associando construtos sociais, sociocognitivos
e linguísticos, e concentrando-se em estratégias discursivas.
O
sociólogo norte-americano Erving Goffman é considerado um dos precursores mais
influentes de tal corrente e, dentre suas inúmeras obras sobre o estudo da ação
social na interação conversacional (e em diferentes contextos situacionais),
destacamos o estudo de 1970 (original americano: 1967), no qual verificamos a
conceituação de face elaborada pelo autor, bem como os modos pelos quais
as pessoas, em uma interação conversacional, tendem a preservar a sua face e
evitar ameaças à face do interlocutor. Para Goffman (1970)[3], a face é a autoimagem
pública que todos nós nos preocupamos em preservar, ou seja, a imagem que
desejamos manter socialmente:
Pode-se
definir o termo face como o valor social positivo que uma pessoa reclama
efetivamente para si por meio da linha que os outros supõem que ela seguiu
durante determinado contato. A face é a imagem da pessoa delineada em termos de
atributos sociais aprovados, ainda que se trate de uma imagem que outros possam
compartilhar, como quando uma pessoa enaltece sua profissão ou sua religião
graças a seus méritos (GOFFMAN, 1970, p.13).
Nas interações conversacionais, o
indivíduo espera que os seus interlocutores respeitem sua autoimagem, assim
como ele respeita a dos demais. Goffman compreende, assim, dois aspectos que
são complementares: respeito à própria face e consideração pela do outro. Vale
mencionar que tal noção de face seria posteriormente retomada e ampliada por
Brown e Levinson (1987)[4] para uma
teoria sobre a polidez linguística (ou cortesia verbal).
Assim, para que haja de fato uma interação
bem-sucedida, há estratégias bem definidas a serem seguidas pelos
interactantes, que podem ser conscientes ou não, mas são sempre adotadas;
seguem um acordo institucionalizado a partir do status social de cada
participante e auxiliam no acordo tácito da relação interpessoal.
Em relação ao conflict talk,
ou seja, aos conflitos que podem surgir nas interações conversacionais, Leung
(2002)[5] salienta
que variáveis sociais como poder, gênero dos interactantes e o grau de
influência que caracteriza as relações entre os interlocutores podem ser
determinantes nesse processo. Nessa direção, Grimshaw (1990)[6]
considera que quanto maior a discrepância de poder entre os participantes da
conversação, menor é a possibilidade de que o participante de maior poder seja
desafiado. Ainda que o desafio ocorra, é mais provável que, nesse caso, ele
seja mais indireto e de menor intensidade.
A
diferença de gênero dos interactantes constitui uma variável social
considerável quando falamos em conversações que envolvem conflitos. Preti
(2003, p.55-58)[7]
lembra que o diálogo entre homem e mulher, bem como a provável influência do
gênero no discurso de cada um, é uma questão amplamente estudada pela
Sociolinguística Interacional, e pensa que, apesar das grandes transformações
socioculturais das últimas décadas do século XX, que permitiram importantes
alterações da posição subordinada em que, na maioria das vezes, encontrava-se a
mulher, é possível que, ainda hoje, notemos uma atuação mais ativa do homem nas
interações conversacionais.
O autor ressalta a necessidade de
analisarmos os diversos fatores envolvidos em um diálogo, que constitui uma
produção linguística articulada. Assim, no diálogo homem-mulher analisado por
Preti no trabalho citado, o grande número de frases incompletas e sobreposições
que ocorrem nesta interação, em virtude dos constantes assaltos ao turno
conversacional promovidos pelo locutor do sexo masculino, leva-nos a pensar num
diálogo assimétrico, o que poderia representar um indício da dominância/poder
exercido pelo locutor mencionado nesta interação. Ao mesmo tempo, o linguista
considera que a sobreposição ou interrupção do discurso pode decorrer, também,
do estilo dos falantes, do maior conhecimento do assunto tratado, da intenção
de contribuir com o discurso do interlocutor, visando a uma continuidade
natural do diálogo, e cita Tannen (1996, p.72)[8], ao afirmar que as
sobreposições de tal diálogo podem ser vistas como casos de sobreposições
cooperativas, isto é, que têm como objetivo mais o apoio que a obstrução e,
assim, não seriam indício de poder ou de dominação, mas sim de solidariedade na
interação conversacional.
Tal questão é particularmente
significante para a pesquisa sobre linguagem e gênero, já que grande parte dessas
investigações têm se dedicado a descrever os meios linguísticos pelos quais
homens dominam mulheres numa interação. Assim, a autora citada examina, por
exemplo, o paradigma teórico da questão poder/solidariedade em uma interação
homem/mulher, mostrando que as estratégias linguísticas são potencialmente
ambíguas (elas podem significar tanto o poder de um indivíduo sobre o outro,
quanto a sua solidariedade) e polissêmicas (elas podem significar ambos,
simultaneamente).
O que Deborah Tannen procura
problematizar, em suma, é a fonte da dominação e os seus mecanismos
linguísticos, além de outras intenções e seus efeitos. Em outro estudo (TANNEN,
1990, p.16)[9],
a autora afirma que não há como negarmos que os homens, como classe, exerçam um
papel dominador em nossa sociedade, bem como que muitos, individualmente,
dominem as mulheres em sua vida; contudo, para a autora, a dominação masculina
não é o único fato suficiente para explicar tudo aquilo que pode ocorrer em uma
interação conversacional entre homens e mulheres, já que o efeito da dominação
nem sempre é o resultado de uma intenção de dominar:
A
abordagem sociolinguística que adoto neste livro mostra que muitos atritos
aparecem porque meninos e meninas são criados em culturas essencialmente
diferentes; assim, a conversa entre homens e mulheres torna-se uma comunicação
de culturas opostas. (TANNEN, 1990, p.16)
Além disso, a autora explica que há
interrupções não intencionais, provenientes do estilo de conversação de cada
indivíduo. Dentre os diferentes estilos, Tannen salienta o estilo de alta
consideração, que dá prioridade à consideração com o interlocutor, permitindo
que ele fale e aguardando pausas para falar, e o estilo de alto envolvimento,
em que se dá mais valor à demonstração de um entusiástico envolvimento na
interação — o que pode culminar em algumas interrupções não intencionais.
Outros estudos demonstram a
evidência de uma maior utilização dos recursos/estratégias da polidez
linguística pelas mulheres, em diferentes contextos culturais. Assim, Brown e
Levinson (op.cit.) consideram relevante para a pesquisa da correlação
gênero-polidez a linha de estudos que realiza tentativas de descrição dos
estilos comunicativos que diferenciam os gêneros — chamados de genderlects, ou dialetos de gênero — tal
como a de Lakoff (1975, 1977a, 1979), que sinaliza que as mulheres são, em
geral, linguisticamente mais polidas que os homens, efetuando mais movimentos
discursivos de preservação das faces dos seus interlocutores do sexo masculino,
enquanto os homens tendem a realizar mais ameaças às faces de suas
interlocutoras. Dessa forma, para os autores, continua válido o argumento de
que homens e mulheres têm um estilo de conversação distinto, em virtude de sua
distinta posição na sociedade.
A prática de “manterrupting” (interrupções
sistemáticas masculinas à fala de uma mulher), por exemplo, pode ser observada
em vários contextos sociais, desde o meio empresarial, passando pelas
interações discursivas em meio acadêmico, discursos políticos, etc. Para
citarmos apenas um exemplo recente e emblemático, no primeiro debate ocorrido
entre os candidatos à presidência dos Estados Unidos, em 2016, Donald Trump
interrompeu 26 vezes a fala de Hillary Clinton, apenas nos primeiros 26 minutos
de debate, e 51 vezes ao longo de toda a interação, de acordo com o levantamento
realizado pelo Vox[10]. Assim, nesse exemplo, é
possível observar que o sexismo é linguisticamente marcado nas interações
conversacionais, nas quais as ameaças intencionais à face de Hillary Clinton refletem a postura linguisticamente não
cortês de Trump, na tentativa de manter seu poder discursivo ao longo de todo o
debate.
Finalmente, consideramos serem necessárias
pesquisas linguísticas, apoiadas pelo arcabouço teórico e metodológico da
Sociolinguística Interacional, da Análise do Discurso e de outras áreas de
estudo que analisam consistente e cientificamente os fenômenos da linguagem
situados em seus contextos sócio-históricos de produção, a fim de que se faça
uma reflexão em profundidade sobre os estilos comunicativos e estratégias
discursivas que contribuem com a perpetuação de interações conversacionais
conflituosas e reprodutoras de violências simbólicas, e, em última análise, com
a desigualdade de gênero em nossa sociedade.
[1]
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. (L’Ordre du
discours, Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 déc. 1970,
Paris: Gallimard, 1971.) Trad. Edmundo Cordeiro e António Bento. Disponível em:
http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/Foucault_OrdemDoDiscurso.pdf Acesso em: 22 jun. 2017.
[2] GUMPERZ, J. & COOK-GUMPERZ, J.
(1982). In: GUMPERZ, J. (Ed.) Language and social identity. Cambridge:
Cambridge University Press, p. 1-21.
[4] BROWN, P. & LEVINSON, S.
(1987). Politeness: some universals in language usage. Cambridge:
Cambridge University Press.
[5] LEUNG, S. (2002). Conflict talk: A
Discourse Analytical Perspective. Working papers in TESOL & Applied
Linguistics, v. 2, n. 3.
[6] GRIMSHAW, A.D. (1990) Conflict
talk: Sociolinguistic investigations in conversations. Cambridge: Cambridge
University Press.
[7] PRETI, D. (2003). Alguns problemas
interacionais da conversação. In: PRETI, D. (Org.) Interação na fala e na
escrita. São Paulo: Humanitas. p. 45-66.
[9] TANNEN, D. (1990) You just
don’t understand: Women and men in conversation. New York: William Morrow.
[10] Disponível em: https://www.vox.com/policy-and-politics/2016/9/26/13068010/presidential-debate-2016-trump-clinton-interruptions Acesso em: 22 jun 2017.
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