Acreditar...sonho meu
Enfrentando
o machismo reinante no universo do samba carioca, e muitas vezes tendo que
apresentar sambas de sua autoria como se fossem composições de seu primo Mestre
Fuleiro, nossa dama do samba, Dona Ivone Lara, se tornou a primeira mulher a
ingressar na ala de compositores de uma escola, a Império Serrano, em 1947.
Ao destacar o pioneirismo da nossa
sambista, o pesquisador Ricardo Cravo Albin escreveu: Ivone Lara – eu diria sem medo de errar – foi
tão pioneira com esse evento extraordinário
quanto
Chiquinha Gonzaga o fora menos de cem anos antes ao abraçar e praticar, com
fúria e volúpia, a música carioca, também exclusiva dos Adões”.
Apesar de iniciar a sua carreira
profissional em 1947, Dona Ivone deu prioridade ao seu trabalho de enfermeira
plantonista na Colônia Juliano Moreira, e posteriormente como assistente social
no Centro Psiquiátrico Pedro II, até a sua aposentadoria em 1977, quando passou
a se dedicar exclusivamente à carreira artística.
Dona Ivone teve uma formação musical
erudita no internato que frequentou dos 10 aos 18 anos, tendo aulas com a
maestrina Lucília, mulher de Villa Lobos, e com Zaíra, esposa de Donga e cantora
lírica que acompanhava Bidu Saião. Nos finais de semana ao ir para casa em
Madureira, no Morro da Serrinha, ela convivia com o samba, pois ali era um
lugar onde todo mundo sabia sambar, todo mundo falava e pensava no carnaval.
Outra grande influência na sua formação
musical foi o jongo, dança com fundamentos religiosos, uma dança das almas. Ao
se referir ao jongo, Dona Ivone disse: Tia
Tereza me ensinou o jongo e a respeitar as tradições dos mais velhos, costumes
que nossos ancestrais traziam com eles. O jongo é místico, é como uma religião.
A filosofia de nossa sambista é a de que
cada indivíduo constrói o próprio futuro, sendo capaz de mudá-lo a qualquer
instante, e que o talento é uma dádiva, nasce com a pessoa, é um dom. Quando
indagada sobre como compunha suas músicas, ela respondeu: não gosto de letra, deixo isso para os meus parceiros e só faço se não
tiver jeito. Meu negócio é mesmo a melodia, e ela pode aparecer de repente, até
dormindo.
Seu primeiro grande parceiro foi Silas de
Oliveira, e o samba que teve grande sucesso no carnaval de 1965, composto por
eles foi “Os cinco bailes da história do Rio”. A história desse samba é
pitoresca, e foi contada da seguinte forma pela sambista: fui me encontrar com Silas e Bacalhau que estavam fazendo a música,
mas que já haviam bebido muito e faltava uma parte do samba. Sem condições de
terminarem a música, eu fiz a última parte e assinei o samba ao lado dos dois
homens, o que se tornou uma grande novidade na época.
Essa música se tornou um dos sambas mais
tocados e cantados na história dos carnavais cariocas.
A parceria com Silas durou até o dia 20 de
maio de 1972, quando ele teve um infarto fulminante no momento em que tocava “Os
cinco bailes da história do Rio” em uma roda de samba, ganhando um dinheiro
para pagar a taxa de inscrição do vestibular para a filha.
Após a morte de Silas, seu Oscar, marido
da sambista, procurou Délcio Carvalho e pediu para que ele frequentasse mais a
sua casa e colocasse as letras nos sambas de sua mulher. Délcio cumpriu
fielmente os pedidos do amigo, e dessa longa parceria surgiram vários sambas
maravilhosos, dentre os quais podemos destacar “Minha verdade”, “Sonho meu”, “Acreditar”,
“Sorriso de criança” e o mais melodioso, “Alvorecer”, que tem a seguinte letra:
Olha como a flor se acende, quando o dia
amanhece, minha mágoa se esconde, a esperança aparece. O que me restou da
noite, o cansaço e a incerteza, lá se vão, na beleza, deste lindo alvorecer. E este mar em revolta que canta na areia, tal
a tristeza que trago e minhalma canteia, quero solução sim... pois quero
cantar, desfrutar desta alegria, que só me faz despertar do meu penar. E este
canto bonito que vem da alvorada, não é meu grito aflito pela madrugada. Tudo
tão suave...
liberdade em cor, o refúgio da alma
vencida pelo desamor.
A
parceria de Dona Ivone com Délcio Carvalho é tão afinada, que ao ser indagado
sobre ela, o sambista diz: ela faz a
melodia primeiro e eu com a melodia na cabeça, faço a letra. Ela diz que eu
descubro o que ela pensou.
Dona Ivone conseguiu uma proeza que nenhum outro sambista conseguiu, ser
compositora, intérprete de suas músicas e ter parcerias com a maioria dos
grandes compositores de samba do país, tais como Silas de Oliveira, Mano Décio
da Viola, Délcio Carvalho, Hermínio Bello de Carvalho, Caetano Veloso, Paulo
César Pinheiro, Jorge Aragão, Bruno Castro, Mestre Fuleiro, Luís Carlos da
Vila, Bacalhau, Rildo Hora, Dalmo Castelo, Sombrinha, Nei Lopes e Paulinho
Mocidade.
Com mais de 90 anos de idade, Dona Ivone
continua compondo e se apresentando ao lado de seu mais recente parceiro, o
neto André, que além de compositor, é músico e acompanha a sambista em suas
apresentações pelo país.
Sandro Cunha é professor de história e de samba
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