Essa é a explicação que se ouve dentro dos muros do Vaticano sobre a convocação da reunião no próximo outubro em Roma, que vem fazendo barulho entre os cardeais
Em Roma, a explicação que
se ouve dentro dos muros da Cidade do Vaticano é bem mundana: trata-se de um
exemplo da sagacidade política do papa Francisco, que, responsável por pautar o
evento no final de 2017, desde o início de seu pontificado, há seis anos,
elencou a defesa do meio ambiente como ponto central de sua agenda.
No próximo mês, durante
três semanas, mais de 250 integrantes da Igreja Católica, além de indígenas,
ribeirinhos e cientistas de nove países que fazem parte da floresta, se
reunirão no Vaticano para o Sínodo da Amazônia, evento que consolidará a
liderança global do argentino Jorge Mario Bergoglio como porta-voz da causa
ecológica.
O
objetivo não é somente discutir novas formas de evangelização na região, que
tem cada vez menos influência católica, mas principalmente debater propostas e
estratégias para a preservação de sua biodiversidade, das comunidades
tradicionais e como desenvolver um modelo econômico sustentável.
Visto pelo governo
Bolsonaro como uma ameaça à soberania nacional, o evento será outro potente
fórum a chamar atenção da comunidade internacional para a prejudicial política
em curso na Amazônia, além de provocar descontentamento na ala conservadora do
Vaticano, que tachou o sínodo de “herético” por propor a discussão de temas
revolucionários para o catolicismo, como a ordenação de leigos para suprir a
falta de padres nas regiões isoladas.
O sínodo é uma espécie de
assembleia realizada em média a cada três anos, que muitos em Roma chamam de
“Parlamento dos Bispos”. Ele foi instituído após o Concílio Vaticano II, um
longo debate que, no início dos anos 1960, modernizou a estrutura da Igreja em
diversas frentes. A atual edição, dedicada à Amazônia, se encaixa na categoria
de sínodo especial, como já ocorreu antes em discussões específicas sobre
continentes como Europa e África. A novidade, agora, é o evento ser dedicado a
uma região geográfica.
Como observou
recentemente o jornal L’Osservatore
Romano, órgão oficial do Vaticano, a Igreja Católica não tem competência
para formular e promover novos modelos de desenvolvimento na Amazônia, mas o
que ela espera é denunciar os males provocados pelo atual modelo político e
econômico, posicionando-se simbolicamente contra uma situação que considera de
“caos ambiental e social” e coloca em risco a área com a maior biodiversidade
do mundo.
O documento preparatório
do sínodo, produzido após consultas a mais de 80 mil pessoas que vivem nas
comunidades amazônicas dos nove países e que servirá de guia das discussões,
antecipa o tom crítico que virá da Santa Sé nas próximas semanas. O texto
afirma que “a violência, o caos e a corrupção” reinam na Amazônia e não poupa
nem mesmo o passado da própria Igreja, reconhecendo que ela foi cúmplice de
crimes durante a ocupação da região.
“A destruição múltipla da
vida humana e ambiental, as enfermidades e a contaminação de rios e terras, o
abate e a queima de árvores, a perda maciça da biodiversidade, o
desaparecimento de espécies, constituem uma realidade crua que interpela todos
nós”, ressalta o “Instrumentum Laboris”, que, dividido em três partes, tem um
total de 147 tópicos.
Como reconhece o
Vaticano, há “muito em jogo” na Amazônia, onde vivem cerca de 30 milhões de
pessoas, por isso a necessidade de escutar as aspirações e os “gritos” das
comunidades locais, conforme ressaltaram nos últimos meses o papa e os muitos
bispos e padres envolvidos na organização.
Em maio de 2015, pouco
mais de dois anos depois de eleito, Bergoglio divulgou uma carta encíclica
(“Laudato Si”) em que deixava claro sua preocupação com o meio ambiente. Ali
ele lançou as bases do seu discurso contra as monoculturas e a ambição
empresarial que destrói florestas. Ele menciona a Amazônia na carta (como
também regiões da África) e pondera que há “propostas de internacionalização da
Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações
internacionais”.
Ainda antes da ascensão
de políticos negacionistas do aquecimento global, o pontífice vaticinava:
“Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem
concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas,
procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas”.
O documento foi
considerado um importante divisor no mundo católico, conforme ressalta o
veterano vaticanista Marco Politi. Pela primeira vez, o Vaticano expressou que
a ecologia é fundamental na fé cristã e expôs diretrizes para os fiéis sobre a
proteção da natureza. “O papa deixou claro que há uma relação intrínseca entre
a degradação ambiental e a degradação social. O mesmo que destrói uma destrói a
outra”, ressalta Politi.
O subtítulo da carta
encíclica de 2015, “sobre o cuidado da casa comum”, dará o tom das discussões
em Roma no próximo mês.
Para o governo
brasileiro, envolto de fantasmas internos e externos, o evento – após toda a
repercussão internacional recente e o embate com o francês Emmanuel Macron –, é
mais um exemplo da conspiração internacional contra a soberania da Amazônia. O
tom conspiratório é compartilhado e alimentado pelo Exército brasileiro.
As primeiras notícias da
contrariedade do governo surgiram ainda no início do ano, quando se noticiou
que o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência estava
monitorando o evento. Recentemente, o órgão negou que tivesse infiltrado
agentes no sínodo, mas ressaltou que o acompanhava pela imprensa e nos sites da
Igreja – os arapongas não tiveram muito trabalho, já que a documentação do
evento está aberta na internet.
O governo brasileiro
solicitou ao Vaticano para acompanhar a assembleia por meio de um
representante, pedido que foi negado. O gesto irritou a cúpula da Igreja,
segundo auxiliares do papa, pois foi considerado uma tentativa de ingerência
nos assuntos internos. O sínodo é um evento realizado pela Igreja e para a
Igreja, conforme disseram.
Em março, o uruguaio
Guzmán Carriquiry Lecour, conselheiro de Francisco que cuidava da Pontifícia
Comissão para a América Latina, recém-aposentado, deixou o descontentamento
claro: “O papa respeita a autonomia política de cada país, assim como quer que
cada país respeite a autonomia da Igreja”.
O que parece inevitável é
o renascimento de uma nova polarização, acompanhada por animosidades mútuas,
entre a Igreja e o governo brasileiro, situação que se viu durante a ditadura
militar (1964-1985).
“Para o governo, o que
importa é abrir oportunidades de lucros para os grandes investimentos
interessados em ocupar as terras indígenas, ricas em minerais preciosos, em
explorar a indústria madeireira, expandir o plantio de soja e as pastagens de
gado”, afirma o frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto.
“Mais do que angariar adeptos para o catolicismo, o que a Igreja quer é
defender os povos originários e a preservação socioambiental.”
Dos nove países
amazônicos (Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana,
Suriname e Guiana Francesa), o Brasil – que detém a maior extensão da floresta
– tem a situação política mais delicada. Sobretudo pelas visões antagônicas
entre Brasília e Roma. O choque fica evidente ao se comparar a política
ambiental colocada em prática nos últimos meses, diametralmente oposta aos
pontos listados no documento que guiará o sínodo – que se chocaria também com a
política de governos precedentes, como, por exemplo, do PT, em especial nas
críticas à construção de usinas hidrelétricas na floresta.
“A Amazônia está sendo
disputada a partir de várias frentes”, afirma um trecho do “Instrumentum
Laboris”. “Uma responde aos grandes interesses econômicos ávidos de petróleo,
gás, madeira, ouro, monoculturas agroindustriais etc. Outra é a de um
conservacionismo ecológico que se preocupa com o bioma, porém ignora os povos
amazônicos.”
O cardeal brasileiro dom
Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo e próximo de Bergoglio, será o
relator do evento. Ele já deixou claro o que pensa sobre o tema. “Um dos
problemas cruciais para proteger a Amazônia surge do modelo de desenvolvimento
imposto pelas autoridades públicas e pelos interesses das empresas privadas”,
escreveu o cardeal no livro O
sínodo para a Amazônia, publicado recentemente pela Igreja.
Segundo disse Francisco a
jornalistas depois de ser eleito, dom Cláudio estava ao seu lado durante a
votação decisiva na Capela Sistina, em 2013, quando ele foi anunciado o novo
papa. O brasileiro o abraçou e disse: “Não se esqueça dos pobres!”. Este será o
espírito do sínodo: ouvir quem nunca teve voz, sejam eles indígenas,
ribeirinhos e os pobres das periferias amazônicas.
Além da questão
ambiental, haverá ênfase na necessidade de defender os direitos humanos (muitos
missionários católicos foram assassinados na região, caso da irmã americana
Dorothy Stang, executada no Pará em 2005) e a preservação das terras indígenas
(que o governo Bolsonaro quer abrir para a exploração mineral).
Na primeira semana, os
participantes farão uma radiografia da atual situação da Amazônia. O quadro
brasileiro é dramático: além da inoperância governamental diante do
desmatamento, que em agosto deste ano
cresceu 222% em relação ao mesmo mês do ano passado, há uma
acintosa desmobilização contra o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e secretarias de repressão a incêndios
antes existentes na estrutura do Ministério do Meio Ambiente.
Entre os cientistas
convidados para a exposição nos primeiros dias do evento, está o climatologista
brasileiro Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo (USP). “A grande questão é o modelo de desenvolvimento
na Amazônia, que é o mesmo desde a década de 1970. As pesquisas de opinião
mostram que o brasileiro não concorda com o desmatamento e toda a situação
atual. Se vivêssemos realmente numa democracia plena, já tínhamos encontrado um
caminho”, lamentou.
Ele explicará os três
vetores que contribuem para a atual situação da floresta: o aumento da
vulnerabilidade aos incêndios, o desmatamento e o aquecimento global, aspectos
negados pelo governo brasileiro. Nobre conta que as mudanças na Amazônia já são
perceptíveis, com o prolongamento da estação da seca e uma mudança nas espécies
de árvores. Algumas delas desenvolveram maior tolerância ao período de seca,
enquanto outras, típicas das regiões mais úmidas, registram taxa de mortalidade
maior.
“Estamos chegando perto
de um momento de não retorno. Já devastamos entre 15% e 17% de toda a Amazônia.
Se chegarmos a 25%, veremos uma desertificação irreversível, com o
desaparecimento de grande parte da floresta”, completa. “Pelo menos o papa
entendeu que não nos resta mais muito tempo.”
Para a Igreja, outro
ineditismo do sínodo aponta para o seu próprio futuro – e não somente dentro da
Amazônia. Pela primeira vez, o Vaticano discutirá a possibilidade de “ordenação
sacerdotal de pessoas idosas (homens ou mulheres), de preferência indígenas,
respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família
constituída e instável”.
A ideia, há muito
debatida internamente, poderá revolucionar a Igreja se aprovada pelos bispos,
afirma Marco Politi. “Esse é um tema de excepcional importância. Atualmente a
correlação interna é de 60% a favor de aprovar a medida”, disse. Politi observa
que o relator do sínodo, dom Cláudio Hummes, é favorável à ideia: “Começa-se
fazendo essa experiência na selva amazônica, mas depois, inevitavelmente, se
fará em outras áreas, como, por exemplo, na floresta de pedra que é Nova York.”
A ordenação de leigos
poderia suprir uma das principais carências da Igreja na Amazônia, a falta de
padres, problema que se verifica também em outras partes do mundo, em especial
nos países europeus onde há alta percentagem de idosos – numa cidade da Suíça,
uma mulher assumiu funções paroquiais diante da falta de um sacerdote.
Mas o tema suscita forte
oposição da ala conservadora do Vaticano, que vem disparando ataques a
Francisco desde o Sínodo da Família, em 2015, quando o papa pregou maior
abertura para os fiéis separados e gays.
Outra relutância dos
opositores diz respeito ao que eles consideram uma “contaminação” do
cristianismo na sua relação com a espiritualidade dos povos indígenas (pagã,
segundo essa visão). Esse aspecto foi discutido e supostamente superado pelo
Concílio Vaticano II, que defendeu inserir a fé cristã na cultura indígena sem
imposição, como ocorreu durante a colonização das Américas. Mas a resistência
persiste.
Um dos mais conhecidos
críticos do Santo Padre, o cardeal alemão Walter Brandmüller classificou o
documento preparatório do sínodo de “herético” e contraditório ao “ensino
irrevogável da Igreja”. “É impossível esconder o fato de que esse sínodo é
particularmente adequado para implementar dois dos projetos mais ambicionados e
que nunca foram implementados até agora: a abolição do celibato e a introdução
do sacerdócio feminino, a começar por mulheres diaconisas”, escreveu.
A Amazônia, como de resto
todo o Brasil, ainda registra o “vertiginoso crescimento das recentes igrejas
evangélicas de origem pentecostal”, conforme observa o Vaticano. Na segunda
metade do século passado, a Igreja foi uma importante aliada das comunidades
indígenas, sendo a sustentação para a sobrevivência de muitas etnias, como se
viu, por exemplo, no caso dos xavantes em Mato Grosso durante a ditadura,
expulsos de suas terras originárias e protegidos graças ao trabalho de
religiosos. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é um dos principais
legados nesse sentido, mas seu peso e influência já não são os mesmos.
“A Igreja que está na
Amazônia sempre teve deficiência de missionários e de recursos, vamos expor ao
mundo a precariedade e o quanto é importante buscar novos caminhos para a
evangelização e para estar mais presente”, afirma dom Edson Damian, bispo de
São Gabriel da Cachoeira (AM), a diocese mais indígena do Brasil (90% da
população, de 23 etnias e 18 línguas diferentes) e uma das maiores da Amazônia.
Ele conta que sua diocese tem apenas 21 padres, que conseguem visitar no máximo
quatro vezes por ano as comunidades ribeirinhas espalhadas pela região. “É
preciso passar de uma pastoral de visita para uma pastoral de presença”,
defendeu. O bispo apoia a ordenação de leigos como sacerdotes – “acredito que o
sínodo vai assumir a proposta de ordenar homens casados” – e ressalta que a
Igreja precisa definir com urgência o tipo de função que as mulheres poderão
assumir.
Para Frei Betto, a Igreja
Católica ainda exerce na Amazônia uma função exógena, de “defender a
preservação da floresta e os povos que a habitam”, e outra endógena, “de
fortalecer a cultura dos povos amazônicos, inclusive suas tradições espirituais
e religiosas, sem querer importar uma versão colonialista do cristianismo”,
como no passado, hoje adotada abertamente por igrejas evangélicas
neopentecostais, aliadas do bolsonarismo.
O papa Francisco afirmou
na última semana, numa rara ocasião em que rebateu seus críticos internos, que
não teme um “cisma” no Vaticano, como já ocorreu no passado. Ele diz que está
aberto às críticas, mas condenou a deslealdade dos opositores que agem nas
sombras, “atiram pedras e depois escondem as mãos”. “Hoje temos muitas escolas
de rigidez dentro da Igreja, que não são cismas, mas maneiras cristãs
pseudocismáticas, que terminarão mal. Quando você vê cristãos, bispos, padres
rígidos, há problemas por trás disso, eles não têm a santidade do evangelho.
Por isso devemos ser brandos com as pessoas que são tentadas por esses ataques,
elas estão passando por um problema.”
A resposta do pontífice,
um crítico do populismo em ascensão no mundo, também poderia ser aplicada aos
políticos rígidos e com “problemas por trás”, como o presidente brasileiro.
*Publicado originalmente
na Agência Pública
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