Nascido em Campos dos Goytacazes e com o coração forjado na cidade maravilhosa, "entre o Encantado e a Piedade", o carioca Márcio Coelho se encontrou com Ribeirão Preto e trouxe para cá a sua arte repleta de serestas, choros, samba de raiz e a sua cidadania. Márcio usa a sua sensibilidade para encantar as crianças e os adultos e a partir do seu trabalho em parceria com Ana Favaretto, no universo cancional infantil, coleciona prêmios e reconhecimento nacional e internacional. Nesta entrevista ele fala de música, de cultura e de política. Márcio dignifica o debate nacional e municipal, um exemplo de profissional e cidadão. Confira.
O Calçadão - Conte-nos um pouco sobre a sua história de vida. Como foi o seu encontro
com a música?
Márcio Coelho- Paradoxalmente, sou
carioca, embora tenha nascido em Campos dos Goytacazes, onde vivia a família da
minha mãe. O que acontece é que apenas nasci lá e lá permaneci por apenas uma
semana. Minha infância e juventude foram passadas no Rio. Entretanto, muito da
minha formação musical vem de meus tios seresteiros, que viviam em Campos. No
Rio, bebi do choro e do samba. Paralelamente ao meu incipiente trabalho de
compositor de canções, mantinha um contato íntimo com o chorinho e com os
grandes chorões cariocas.
Como fui criado entre
o Encantado e a Piedade – subúrbio do Rio -, mais do que com outros
gêneros, convivi com o samba, que hoje
chamam “samba de raiz”. Fui iniciado nos estudos de música por ninguém menos
que o grande músico Claudionor Cruz, que, dentre outras atribuições, era
compositor e líder do regional que acompanhava Ataúlfo Alves.
A primeira vez que
subi ao palco para fazer uma apresentação profissional foi ao lado de
Clementina de Jesus e Xangô da mangueira, todos nós acompanhados pelo conjunto
Exporta Samba (“Se gritar pega ladrão/ Não fica um, meu irmão...). Me licenciei
em música e fiz mestrado e doutorado em linguística, na área de semiótica da
canção. Nesse mês vou assumir o cargo de professor da Universidade Federal de
São Carlos. Tenho doze livro publicados e oito CDs, sendo cinco deles dedicados
ao público infantil.
O Calçadão - Por falar em
encontros, como foi o seu com Ribeirão Preto? Onde o grupo "É Tudo Cena
Dela" entra nessa história?
Márcio Coelho- Quando ainda vivia no
Rio, escutei o LP “Às Próprias Custas S/A”, do Itamar Assumpção, na íntegra,
sem intervalos, na lendária Rádio Fluminense. Desde então procurei saber mais
sobre os artistas da Vanguarda Paulista. Mais tarde, tocando no litoral de São Paulo, conheci minha esposa e resolvi vir para São Paulo para ficar mais perto
dela e da Vanguarda. Cheguei em Ribeirão Preto e encontrei músicos que assumiram
meu projeto experimental. Em pouco tempo surgia a Banda É Tudo Cena Dela,
formada por mim, Carlito Rodrigues, Leandro Paccagnella, Jorge Nascimento, Ana
Favaretto e Di Carreira. Com a formação que incluía Fernando e Pat Pachioni,
Sudu Lisi, dentre outros, a Banda fez um relativo sucesso e ganhou prêmios. A É
Tudo Cena Dela foi uma grande escola para todos nós e inspirou várias bandas e
músicos. Tenho o maior orgulho de ter sido seu fundador.
O Calçadão - Continuando nos encontros, você tem um trabalho muito bonito, premiado e
reconhecido internacionalmente ao lado de Ana Favaretto. No
site www.marciocoelhoeanafavaretto.com.br encontramos muita coisa
bacana na forma de textos, vídeos, histórias e música. Conte-nos um pouco sobre
essa parceria e o seu trabalho.
Márcio Coelho- Como já citei, a Ana Favaretto fez parte da fundação da É Tudo Cena Dela.
Depois saiu e retornou quando a formação contava com Deva Mille, Débora Ieve e
Zé Gustavo. Nesse momento, eu comecei a fazer um trabalho voltado ao público
infantil. A banda se dissolveu e eu formei uma dupla com a Ana. Este ano completamos 22 anos de dedicação ao universo cancional infantil. Somos membro
do Comitê Permanente do Movimento da Canção Infantil Latino-Americana e Caribenha, fundamos
o Movimento Brasileiro da Canção Infantil e organizamos, periodicamente,
festivais nacionais e internacionais voltados ao público infantil.
Já tocamos, além do Brasil,
em vários países da América Latina, tais como: Argentina, Uruguai, Chile,
Colômbia e México. Temos muito orgulho do respeito que o Brasil e a América
Latina nutrem pelo nosso trabalho; e nos esforçamos para merecê-lo.
O Calçadão - O ensino de música
nas redes educacionais é obrigatório desde 2008, abrindo um amplo campo de
trabalho para os educadores musicais, mas até hoje não foi implementado. Você
tem uma rica experiência na utilização da música como instrumento pedagógico no
seu trabalho com as crianças. Como o ensino de música pode enriquecer o
currículo escolar, considerando a possibilidade de integração com outras artes?
Qual a importância da música para as crianças? E qual sua opinião sobre o por
que a lei de 2008 ainda não foi implementada?
Márcio Coelho- A lei ainda não foi implementada porque ainda não há, no meio
educacional, a consciência de que a música é uma importante área do
conhecimento humano. Por outro lado, a sociedade também não tem essa
consciência. Sendo assim, os órgãos educacionais não cumprem a lei e não são
cobrados pela sociedade. O que tem acontecido é que algumas prefeituras fingem que
estão dando conteúdo musical, isto é, apenas proporcionam algumas atividades
recreativas que contém música em seu conteúdo.
Mas também é verdade que algumas prefeituras estão levando a sério e
implantando a educação musical, como é o caso de Paulista, um pequeno
município, em Pernambuco, ao lado de Olinda.
Uma ilustração: A prefeitura de Ribeirão Preto pediu à Ed. Saraiva para
que nós (Eu e a Ana) déssemos oito horas de demonstração da nossa coleção
Batuque Batuta, pois estava interessada em comprar 5.000 livros para fazer um
projeto piloto.
Trabalhamos as oito horas,
a Prefeitura recebeu uma coleção do livro do Professor para cada escola e não
comprou um exemplar sequer! Hoje, utilizam os livros “recebidos” gratuitamente para
fazer planejamento das aulas, mas os alunos continuam sem ter o direito de ter os seus exemplares.
O Calçadão - Por falar em música,
ensino e cultura, você também teve uma rica experiência com relação à
construção do projeto cultural implementado no primeiro governo Palocci
(1993-1996), considerado por muitos o melhor governo dos últimos 25 anos. Como
foi aquela experiência?
Márcio Coelho- Eu fiz parte da equipe da Secretaria da Cultura no primeiro governo do
Palocci. Fui responsável pela área de música e, juntamente com alguns membros
da equipe, por abrir as portas da Casa da Cultura pois, quando lá chegamos, a
entrada era pela lateral (entrada de serviço) e a telefonista que ali ficava
era a responsável pela triagem. Então, colocamos a telefonista em sua sala e
abrimos as portas da frente do prédio. Esse gesto, do meu ponto de vista, é
emblemático, pois, dessa maneira, democratizamos o acesso à Casa da Cultura e à
cultura. No que diz respeito à minha área, criamos o projeto “Café da Manhã”
(no Museu do café, hoje conhecido como café com chorinho); “Concertando”
(apresentações dentro do Theatro Pedro II durante sua reforma), “Projeto
Pé-de-Moleque” (Que deu origem ao “Toque da Lata”), dentre outros.
No segundo governo do Palocci, tive 12.500 crianças fazendo música sob
meu comando, no Programa Ribeirão Criança, coordenado por Paulo Ramos e
Fernando Dezerto. Os projetos Curuminzada,
Banda na Praça, Oficina de Música das Tecnologias, Clínica Experimental de
Musicoterapia, Toque da Lata, foram alguns de nossos projetos mais bem
sucedidos.
O Calçadão - Um dos assuntos que mais interessam a nós do blog O Calçadão é a questão
cultural. Ribeirão Preto tem teatros municipais importantes, tem centros
culturais nos bairros, tem quase uma centena de praças públicas, tem pessoas
qualificadas para pensar cultura e tem escolas espalhadas por todos os bairros.
Mesmo assim não consegue produzir uma política cultural que realmente integre a
população, que busque dar oportunidade para os talentos escondidos e que tenha
reflexos também no currículo escolar. Como você enxerga a cultura em
Ribeirão Preto hoje? Ribeirão Preto ainda pode dar uma boa melodia nesse
sentido, é possível desenvolver uma política cultural integrada e inclusiva em
Ribeirão Preto?
Márcio Coelho- Graças ao Facebook vejo a trajetória de meninos que passaram pelos
nossos projetos no Programa Ribeirão criança. Muitos fizeram faculdade de
música, outros foram para o Conservatório de Tatuí, mas o importante mesmo é
que vários desses jovens se profissionalizaram na música, mesmo não sendo essa
nossa intenção principal.
Então, eu creio que com um pouco de boa vontade e um pequeno apoio
financeiro, seria fácil promover cultura na cidade. No entanto, o que
presenciamos é o total descaso com a Cultura. Todos os projetos citados acima
não existem mais e todos custavam muito pouco aos cofres públicos. O PIC, que
teve como embrião o 1º Premio Incentivo de Música, que criei na década de 1990,
foi retomado e ampliado pela secretária Adriana Silva e, agora, não existe
mais. Mas, independentemente da ação dos órgão púbicos, as pessoas continuam produzindo cultura e, embora tenhamos dados vários
passos para trás, com muito pouco poderíamos retomar os avanços. No entanto,
cumpre destacar que não podemos esperar iniciativas do poder público para
produzir cultura. Do meu ponto de vista, a função da Secretaria da Cultura é
incentivar a produção e, não, produzir cultura.
O Calçadão - Falando um pouco sobre política. Nós estamos vivendo um momento
complicado no Brasil e no mundo. Observamos a crise humanitária dos refugiados
na Europa e o acirramento da crise política no Brasil. Permeando essas duas
coisas, está a questão da intolerância, do discurso intolerante. Você é uma das
vozes que tem se levantado contra isso, às vezes remando contra a corrente. O
que te motiva a enfrentar esse discurso? Como, na sua opinião, podemos
enfrentar essa situação e colaborarmos para retomar um debate sadio sobre os
rumos do país?
Márcio Coelho- Penso que o problema dos refugiados está no âmbito da compaixão. Há
muito venho batendo na tecla da solidariedade, palavra que tem como sinônimo
principal o termo “interdependência”. Se nós tivermos a consciência de que vivemos numa rede de interdependência, colocaremos o “outro” sempre
na nossa perspectiva. O exemplo que sempre uso é o do lixeiro, cuja profissão
certamente é a de menos prestígio na sociedade. No entanto, se ele falta, nossa
comunidade torna-se um caos. Penso que a consciência da interdependência é o
primeiro passo para uma sociedade mais justa.
No caso da crise política do Brasil, o que está acontecendo é que, com a
falta da nociva prática do mensalão, o congresso busca desestabilizar o
governo. Temos um congresso formado por representantes de alguns setores da
sociedade, tais como os ruralistas, religiosos, militares e policiais, industriais
e empresários, e temos muito pouco representante do povo. Desse modo, as
questões fundamentais cedem sempre o lugar para questões corporativistas.
Acho que o PT merece um bom castigo por nos ter colocado nessa
enrascada, isto é, por ter aceitado fazer a mesma política dos maus políticos e
aderir à corrupção. No entanto, o momento é de lutar contra recrudescimento de
forças retrógradas para, depois, dar ao PT o castigo que ele merece por
destruir nossos sonhos.
De qualquer forma, estou otimista, acho que o Brasil será um país melhor
depois de tudo o que está acontecendo.
O Calçadão - Qual a sua opinião sobre o governo da Presidente Dilma e sobre os
movimentos políticos que não aceitam a derrota em 2014?
Márcio Coelho- Acho que o governo da Dilma, e do PT, em geral, tem pontos muito
positivos, mas vejo a presidente com uma inabilidade muito grande para atuar no
campo político. O Ulisses Guimarães já dizia: “A política é a arte do
possível”. Então, a presidente, do meu ponto de vista, tem de saber negociar,
ceder, encarar e, principalmente, dar satisfação ao povo.
Creio piamente na sua honestidade, embora também tenha certeza de que as
acusações de recebimento de propina por parte do PT não sejam falsas.
Acredito e torço pela redenção da Dilma, acho que ela não merece nosso
abandono, mas ela também precisa, urgentemente, de um curso de oratória. Parece
uma opinião simplória, mas o ethos
talvez seja um dos elementos que um político deva dar mais importância.
Quanto aos derrotados inconformados, não passam de maus perdedores, que
representam as forças retrógradas brasileiras e, depois do caos que
instauraram, estão com medo do que pode acontecer em decorrência disso. O pior
é que o estrago já está feito. Eles trabalham como as indústrias que programam
o envelhecimento precoce de seus produtos, a tal da obsolescência programada,
com o fim de que o consumidor troque-o no menor prazo possível. O povo
necessitado não interessa pra eles, diferentemente do governo Dilma.
O Calçadão - Para terminar, vamos falar de sonhos, de projetos. Nós aqui do blog
gostamos de falar de sonhos. Quais são seus sonhos?
Márcio Coelho- Meu principal sonho é viver numa sociedade que proporcione uma
verdadeira igualdade de oportunidades. Não posso me declarar um homem feliz,
enquanto houver gente morrendo de fome no mundo; enquanto houver trabalho
escravo; enquanto houver preconceito de todos os tipos e enquanto a educação
das crianças não for de absoluta prioridade.
Sonho é sonho, não é?
Sim, vamos sonhar, Márcio...
Sim, vamos sonhar, Márcio...
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