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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Prostituta sim, professora não! Por Celso Correia

     
Ilustração / Geni e o Zepelim
       Dias atrás ganhou grande repercussão em algumas redes sociais o fato de, em se pesquisar o significado da palavra professora no dicionário da empresa Google ter como resultado, além do significado daquelas que exercem o magistério, o das mulheres que iniciam alguém na vida sexual.

        O emprego da palavra professora, dentro do significado questionado, não é dirigido para maldizer a categoria profissional que trabalha com educação, mas sim aproveitar da característica principal - alguém que ensina - para fazer a ponte com a situação daquele que esta diante de alguém que lhe iniciará na vida sexual. O que dará o tom jocoso ou ofensivo não será a palavra por si própria e seu significado estanque de outras frases e ideias, mas o contexto na qual a mesma será empregada. Vamos exemplificar um pouco com a realidade da juventude preta e pobre das periferias urbanas. Cidadão. Que palavra bonita, não é? Mas proferida pelo policial ao jovem preto e pobre da periferia numa truculenta blitz, vira o quê? Disciplina. Não é o conteúdo de determinada área do conhecimento a ser ministrado pela professora, mas sim o responsável, dentro da hierarquia do crime em coibir violentamente aqueles que ferem as regras da organização. E o pirriu. Essa nem muitos dicionários apresentam. Antigamente, vigilante, guarda noturno. Atualmente é como adolescentes e jovens detidos no sistema prisional brasileiro chamam os que trabalham na vigilância dos próprios detentos. Agora, por favor, levante a mão quem conhecia uma dessas palavras. Agora duas. As três. Pessoalmente  confesso com vergonha que aprendi a última há semanas atrás, uma vez que moro no país com a terceira população carcerária do planeta. Eu e vários da minha família já trabalhamos como faxineiro. Devo denunciar os roteiristas dos seriados policiais da Netflix por usar a palavra em suas tramas quando o faxineiro, cúmplice de um grande e violento criminoso, os chama para se livrar dos corpos e limpar toda a cena do crime? Fico preocupado com esses roupantes puristas que podem roubar a riqueza de significados e infinitas combinações das palavras e expressões. Denunciar o Google ou a Netflix é fácil. Empresa global de tecnologia da informação e entretenimento, respectivamente, são muito conhecidas e bem capitalizadas. Pode dar visibilidade e até um dinheirinho. No mínimo uma lacração em rede social. Coragem mesmo seria denunciar, no caso do falso dilema da palavra professora, Mário de Andrade, poeta, escritor e um dos principais responsáveis pela Semana de Arte Moderna no Brasil, em seu livro “Amar verbo intransitivo”. Do fundo do seu coração, responda. Conhecendo a biografia de Mário de Andrade e esse livro aqui indicado, o autor quis ofender a categoria profissional dedicada ao magistério, majoritariamente composta por mulheres? Pelo amor de Deus, não, nunca! Pode-se extrair várias interpretações de uma obra, mas nessa, Mário de Andrade põe o dedo na ferida ao expor a hipocrisia de uma sociedade machista, patriarcal, composta por famílias com pessoas, ditas, de bem (Opa! Parece que tenho ouvido isso nos dias atuais.) e que insere uma personagem prostituta no seio da família certinha, como instrumento alegórico literário que faz a ponte daquilo que realmente acontecia dentro das famílias de bem – a prostituta disfarçada como  elo entre o profano e o sagrado. Se Mário de Andrade, esse morto tão vivo graças a literatura estivesse presente no nosso dia-dia, assim como se fala de futebol nos bares da esquina essa polêmica nem existiria. Lembrei-me agora de Jorge Amado. Deve estar se revirando no túmulo também.

        É estranho que pessoas das mais variadas matizes ideológicas defensoras das liberdades individuais e direitos sociais tenham se apegado a essa questiúncula com tanta força. Como diria um amigo meu em relação aos liberais que se curvam ao corporativismo imediatista que mama nas tetas do Estado ou ao conservadorismo nos costumes, são liberais até a página dois. É estranho porque nós precisaremos também das prostitutas para melhorar esse pais. Para conversar sobre aborto, rede de atenção à saúde da mulher, exploração sexual e violência contra a mulher. E no campo do pensamento imaginário auxiliar na desconstrução de tanta preocupação e discurso moralista com o que cada um faz com seus orifícios. Ressalva. Exploração sexual e pedofilia é crime.  É estranho porque essa caça às bruxas percorrendo nosso vernáculo - isso pode, isso não pode  - é típico de posições autoritárias em relação ao expressar-se. De quem flerta com a censura. Hoje em dia isso é protagonismo da direita bolsanarista-olavista. É estranho porque a educação pública e gratuita, em todos os níveis, está sob ataque de viés neoliberal-mercantilizador (terceirização de professor e de equipe gestora, extinção de direitos trabalhistas, fomento ao EAD – educação à distância de baixa qualidade, arroxo salarial, cortes nas verbas orçamentárias). A reforma da previdência empobrecedora do povo e engordadora do sistema financeiro nacional e internacional foi aprovada no senado. Essas são a prioridade da luta. Desmascarar as falsas benesses desses modelos junto à sociedade. Assim posto, nós, prostitutas e professoras estamos no mesmo barco, porém sem as mãos no leme. O título do artigo é um jogo de palavras com o título de um escrito famoso do educador Paulo Freire - “Professora sim, tia não” para lembrarmos que quem já tem voz e grita muito, as vezes não ouve e se esquece daquelas que tem pouca voz em nossa sociedade.

                 Curiosamente antes de escrever esse artigo o significado que gerou polêmica da palavra professora constava no dicionário Michaelis on line. Hoje, não mais. Ao que parece o politicamente correto continua a fazer estragos. Coitada da semântica.

*Celso Correia da Silva Júnior é amigo e colaborador do Blog O Calçadão

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