Até
o inicio dos anos 80, as músicas tocadas pelos trios elétricos em Salvador eram
apenas instrumentais e geralmente na linha dos frevos pernambucanos. Quando as
músicas começam a ser cantadas, somente os homens podiam puxar os trios, ou
seja, serem os vocalistas.
Os
empresários, donos dos trios, achavam as vozes femininas muito agudas e
acreditavam que os associados não aprovariam cantoras. Nessa época, a música feita para o carnaval ficava
restrita apenas a Salvador, Bahia e, quando muito, a alguns estados do Nordeste.
Somente
em 1985 que um sucesso do carnaval soteropolitano sai da Bahia e se torna um hit
que toma conta das rádios de todo o país, tratava-se de Fricote, primeiro sucesso do cantor Luiz Caldas.
No
carnaval de 1987, a música Faraó, divindade
do Egito, do grupo Olodum, aparece como um grande sucesso local e se torna
um divisor de águas dentro da nova musica baiana. A letra fala sobre a criação
do mundo utilizando para isso a historia egípcia. Com letras mais críticas e
apenas instrumentos de percussão, o Olodum passa a influenciar os cantores de
trio e preparava o que viria a ser o maior fenômeno musical dos anos noventa no
Brasil, o Axé Music.
Dentro
de um projeto musical chamado musica ao
meio dia, em meados de 1992, um
show no vão livre do museu de arte de São Paulo (MASP) se torna um marco na
historia do Axé e da carreira da cantora que a partir daquele momento passa a
ser a maior porta voz do ritmo que embalaria o país, Daniela Mercury.
Os
shows desse projeto eram todos feitos por artistas iniciantes e que
invariavelmente não chegavam a reunir mais do que três ou quatro centenas de
pessoas. Ninguém sabe ao certo, mas o fato é que o show de Daniela Mercury no
vão livre do Masp reuniu mais de 20 mil pessoas e parou a avenida Paulista. Menos
de 40 minutos depois de iniciada a apresentação, a diretora do museu sobe ao
palco e puxa a cantora pelo braço exigindo que o show fosse interrompido, pois a
trepidação causada pelo grande aglomerado de pessoas pulando freneticamente
colocava em risco as obras de arte ali expostas.
No
outro dia todos os jornais da cidade estampavam em suas capas, ‘uma baiana para
São Paulo’. Não sabiam nem o nome da cantora.
O
show é transferido para o domingo na USP, onde reúne 30 mil pessoas e é
transmitido ao vivo para todo o país pela tv cultura dentro do programa Bem
Brasil. Nesse dia o programa bate recorde de público.
Manoel
Poladian, grande empresário da música, fica preso no engarrafamento causado
pelo show de Daniela e pede para que um ‘olheiro’ vá até o show da USP para se
informar melhor de quem se tratava a tal baiana que havia ‘parado a Paulista’.
Depois
disso, Daniela Mercury passa a ser empresariada por Poladian e assina contrato
com a poderosa Sony Music vindo no final
daquele ano a gravar o álbum O canto da
cidade , hoje considerado pelos
críticos especializados em música, como
o mais importante do Axé Music , passando a figurar também na lista dos cem melhores
discos do cancioneiro nacional de todos os tempos.
Mercury
lembra que depois de assinado o contrato, a gravadora não queria que ela
continuasse a cantar samba-reggae, uma vertente do Axé. Conta também que ao ouvirem
a musica O canto da Cidade, que tem como refrão os versos A cor dessa cidade sou eu, o canto dessa
cidade é meu, acharam arrogante demais e ficaram com medo de que o público
assim também pensasse. Mercury teve que explicar que ela não estava a falar de
si nos versos dessa canção e sim do povo de Salvador. Foi também com a
explicação de que ao contrário dos versos do rock Que país é esse ? que parece dizer ‘não quero esse país’ ou ‘que
droga de país...’, o Axé dizia, não diga
que não me quer, não diga que não quer mais, eu sou o primeiro que canta, eu
sou o carnaval, se tratava da autoafirmação
de um povo que tinha no carnaval o seu momento de ir para rua, de se manifestar
e fazer a sua revolução através da música, fazendo , por meio da arte, a sua
crítica social.
Vencida
essa batalha com a gravadora, o show O
canto da cidade ganha um especial de fim de ano na tv Globo e a partir daí
nasce o fenômeno Daniela Mercury. Nelson Mota, assim define a aparição da
cantora: “uma Iansã vingadora, uma
guerreira de espada na mão e pernas de fora, abrindo uma clareira de luz e
alegria no meio das trevas ‘colloridas’ (alusão ao então presidente)” .
Com
o álbum O canto da cidade, Mercury
vende mais de 2 milhões de cópias e abre as portas para uma série de artistas
baianos que na primeira metade dos anos 90 dominam o hit parade brasileiro.
Banda Mel, Cheiro de amor, Kassia, Zé Paulo, Olodum, Simone Moreno Margareth
Menezes, Timbalada, Banda Beijo e Netinho, entre outros artistas, a partir da vereda
aberta por Mercury multiplicam seus shows com o destaque dado pela mídia.
Na
segunda metade dos anos 90 ganham espaço na mídia novos artistas vindos da
Bahia e com eles músicas de duplo sentido passam a dominar as rádios nacionais,
o maior representante desse estilo é o grupo Gera Samba. Os refroes: E diga yes, diga yes, sou negão/ minha
jangada vai sair pra o mar, vou trabalhar, meu bem querer/ minha pele de ébano é minha alma nua/ Não me
pegue não, me deixe a vontade, deixe eu curtir o Ilê, o charme da liberdade/A
gente não pode comer arroz, a gente não pode comer feijão, ainda tem que andar
descalço sem ter que pisar no chão... foram substituídos por segure o tcham, amarre o tcham, segure o
tcham , tcham , tcham, tcham, tcham/ e vai descendo na boquinha da garrafa/ é a
dança do maxixe, é um homem no meio com duas mulheres fazendo sanduiche/ bota a
mão no joelho, dá uma impinadinha, vai descendo gostoso balançando a bundinha.
Apesar
do grande sucesso, esses cantores de axé surgidos a partir da segunda metade dos
anos 90 se tornam alvo de crítica pelo conteúdo fraco de suas letras e pela
sexualidade exacerbada através de suas danças. Quem não se lembra de Carla
Peres?
Em
1996 o som dos tambores do Olodum ecoa pelo mundo através do vídeo clipe que o
cantor Michael Jackson vem gravar com o grupo no Brasil. Trata-se da música
They don’t care about us.
E quem pensa que essa é a primeira vez que os
tambores do Axé fazem a cabeça de ícones do pop internacional está errado, pois,
em 1990, Paul Simon já havia gravado uma música e um clip com o Olodum no
Pelourinho, trata-se da música the
obvious child.
É
importante frisar que o Olodum não é apenas uma banda, mas também um bloco afro
e uma organização não governamental que nasceu no
final dos anos 70 em Salvador. O grupo tem como objetivo o combate à
discriminação racial, a preservação da cultura afro-baiana e o ensino de
percussão para crianças e adolescentes, tirando-os das ruas. A primeira vez que
o bloco desfila foi no carnaval de 1980. A ideia era que as pessoas das
comunidades pobres também pudessem brincar o carnaval, para isso utilizaram
como instrumentos musicais os tambores das fanfarras disponíveis nas escolas
públicas. Como em Salvador existem centenas de terreiros de candomblé e como
todos sabem que para se realizar os rituais dessa religião os instrumentos de
percussão são imprescindíveis, já se tinha na comunidade um considerável número
de músicos para o desfile.
O que se fez com o passar do tempo foi aperfeiçoar a
batida. A inovação veio com a utilização de baquetas de bambu ao invés das
tradicionais, essas, mais tarde foram substituídas por baquetas plásticas, o
que veio a gerar um som característico que, sob a regência do maestro Neguinho
do Samba, deu vida ao que foi batizado como samba-reggae.
Em
1997 um disco gravado ao vivo pela Banda Eva, que tem Ivete Sangalo como
vocalista, começa a ganhar as rádios de todo o país e em poucos meses salpica o
verão de 97 e 98 de hits como Vem meu
amor, Pequena Eva, Arerê e Beleza rara. Ivete Sangalo passa a disputar com
Daniela Mercury o titulo de rainha do Axé, assim como foi no passado a disputa
entre Emilinha Borba e Marlene pelo titulo de rainha do rádio.
Obviamente que a
disputa não se dá entre Mercury e Sangalo, mas sim entre os fãs que eram e são
alimentados pela mídia para enxergar uma disputa e até mesmo rivalidade que não
existe entre as duas cantoras. No ano de 1999 Sangalo deixa a banda Eva e segue
carreira solo, emplacando o hit daquele verão, Canibal, música que lembra muito o estilo da paraibana Elba Ramalho
no inicio da carreira.
Os
anos 2000 chegam e uma nova cantora de Axé surge no cenário musical, Claudia
Leite, ainda à frente da banda Babado Novo. Como era de se esperar, após alguns
sucessos radiofônicos a cantora deixa a banda e segue carreira solo. A partir
daí a disputa passa a ser entre Leite e Sangalo. Mercury dá outro rumo a seu
trabalho e passa flertar com a MPB e com a música eletrônica. Em seu álbum
intitulado Sol da liberdade, gravado
em 2000, faz parceria com Milton Nascimento, Lenine, Vanessa da Mata, Dudu
Falcão e Caetano Veloso. A regravação de Como
vai você , de Antonio Marcos, entra na trilha sonora da novela Laços de
Família e se torna a música mais executada no Brasil naquele ano.
Os
anos se passaram e outros gêneros musicais foram ganhando destaque na mídia e o
Axé encolhendo. No entanto, sabemos que isso é natural e ocorreu com todos os
ritmos, a mídia precisa de novidades. O fato é que os artistas que tinham talento
e que apareceram para o país e para o mundo através desse gênero se
estabeleceram e consolidaram suas carreiras. Prova disso são as musicas do
filme americano Rio, que foi composta por Sergio Mendes e Carlinhos Brown que
chegou a concorrer ao Oscar como melhor trilha sonora, ou o convite feito à
Daniela Mercury para participar do álbum em tributo a Ênio Moricone, compositor
de trilhas sonoras de diversos clássicos hollywoodianos.
Segundo
Motta, hoje ninguém sabe a fronteira entre o axé e a música baiana de festa,
mas todos concordam que o estilo está em transformação permanente e que fundou
um novo mercado para a música da Bahia, que produz grandes músicos e grandes
marqueteiros.
Rilton
Nogueira é professor e responsável pela parte cultural do blog O Calçadão
Um comentário:
Parabéns pela riqueza de detalhes e pela profundidade na pesquisa, incluindo as nuances do Axé Music e sua cronologia. Muito bom!
Ass: O Eldoradense
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