Era uma vez uma Oposição que achava que bastaria deixar Bolsonaro governar, tarefa para a qual é evidentemente desqualificado... e deixar sangrar até se demitir. Um ano depois, as coisas não estão bem assim: os números da pesquisa de opinião CNT-MDA deste mês revelaram um crescimento na aprovação a Bolsonaro. E que mais da metade dos entrevistados confia nas três grandes redes televisivas: Globo, Record e SBT. Bolsonaro continua um desqualificado (o início do apagão do serviço público começou com crises no INSS e Enem), mas a vitória, até aqui, na guerra da comunicação dá a vantagem da prestidigitação: a sua “guerra cultural”, na qual ganha de 7 X 1 de uma esquerda que caiu no alçapão deixado pela extrema-direita – a mídia progressista se esfalfa em denunciar que Bolsonaro é misógino, sexista, miliciano, pró-ditadura... e daí? Para a maioria silenciosa, sobrevivendo no cotidiano, tudo isso é abstrato, “politicagem”. A grande mídia cria o chamariz com a pauta da guerra cultural (identidade, gênero, raça, etnia, meio ambiente etc.), aprisionando a esquerda em seu tautismo (tautologia + autismo midiático) – abandona a comunicação direta com a maioria silenciosa e se desconecta do deserto do real: a economia.
Bolsonaro é machista, misógino, fascista, miliciano, intolerante, xenófobo, ofende mulheres, índios, é sexista, racista, pró-ditadura militar, negacionista das mudanças climáticas e indiferente às questões ambientais. Não só a esquerda, mas também a grande imprensa nacional e internacional, acusa o ex-capitão da reserva de tudo isso... e daí?
O que isso significa para o povão, imerso nos problemas do dia-a-dia entre o desemprego e o trabalho uberizado? Nada!
Pelo menos é o que sugere a Pesquisa CNT de Opinião, realizada em parceria com o Instituto MDA, de 15 a 18 de janeiro de 2020, mostrando os índices de popularidade do governo e pessoal do presidente Jair Bolsonaro.
Segundo a pesquisa encomendada pela Confederação Nacional do Transporte, a aprovação do desempenho pessoal do presidente Jair Bolsonaro registrou um salto significativo, de 41% para 48%; sua rejeição, por sua vez, caiu de 54% para 47%.
E isso num período que ocorreu o fato político mais significativo: a soltura do ex-presidente Lula, no início de novembro.
Também houve uma melhora expressiva na avaliação do governo: O percentual dos que acham o governo ótimo, passou de 8,0% para 9,5%; e os que acham o governo péssimo caíram de 27% para 21%. Somando as notas ótimo e bom, o governo registrou aprovação positiva de 34,5%, contra aprovação negativa (ruim e péssimo) de 31%. Na pesquisa anterior, de agosto, a aprovação positiva somava 29%, contra 39% de negativa.
Mais importante do que isso é a percepção e a confiança da população em relação à grande mídia. Mais da metade confia nos três grandes canais de mídia: Globo, SBT, Record.
A opinião pública não existe
Os resultados dessa pesquisa foram recebidos pelos blogs e sites progressistas, em sua maioria, entre o lacônico e a indiferença – entre a notícia sem análise ou simplesmente virando as costas e não falando nada sobre o assunto.
Uma dessas exceções foi “O Cafezinho”, do jornalista Miguel do Rosário, que não só deu a notícia como também analisou os números que, segundo ele, representam um desafio para as estratégias de comunicação da esquerda – clique aqui.
É claro que este Cinegnose partilha da tese do sociólogo Pierre Bourdieu: a opinião pública não existe! – nas pesquisas sempre a chamada “opinião” se confunde com “percepção” ou “sensação”. Ainda mais no contexto atual da pós-verdade: um grande arco que vai do menosprezo por fatos objetivos até a ignorância racional e o efeito “Dunnig-Kruger” – indivíduos acreditam saber mais do que especialistas por estarem abastecidos por clichês, sofismas e frases prontas transmitidas pela grande mídia e redes sociais.
Portanto, toda “pesquisa de opinião” deve ser recebida com um pé bem atrás. Porém, se ficarmos no campo das percepções e sensações os números da pesquisa MDA são importantes, principalmente porque a chamada Guerra Híbrida busca exatamente esse resultado – não se trata mais de propaganda política no sentido clássico (como inculcação político-ideológica ou doutrinária), mas de gerar atmosferas, sensações e dissuasão não mais numa opinião pública. Mas agora, num contínuo midiático atmosférico.
A dupla agenda
Nesse momento o contínuo midiático está ocupado por uma dupla agenda: de um lado, a guerra cultural que a grande mídia trava contra Bolsonaro (de ilações sobre as conexões do presidente com milícias e o assassinato de Marielle às pautas identitárias, étnicas, gênero e meio ambiente que ocupam o jornalismo corporativo); e do outro o clima de “agora vai” do crescimento econômico – das histórias motivacionais de desempregados numa enorme fila que acham emprego à maquiagem do desemprego através de contos igualmente motivacionais sobre empreendedores, que na verdade não passam de autônomos ou precarizados.
Essa é a agenda tautista (Tautologia + autismo midiático) que cria um fechamento operacional que isola o sistema midiático da realidade. O problema é que a esquerda é apenas reativa a esse contínuo midiático: vive, respira e reage à pauta definida pelas polêmicas criadas pela grande mídia e repercutida nas redes sociais.
A esquerda tautista é capturada por essa guerra já perdida por antecipação: a chamada “guerra cultural”, locus privilegiado da extrema-direita porque tira o foco da missão para qual ela chegou ao poder – cumprir à risca a agenda econômica neoliberal.
Bolsonaro apoia o feminicida goleiro Bruno? Roberto Alvim fez um vídeo nazi-fascista? Bolsonaro humilha Moro? Bolsonaro quer devastar a Amazônia? Um ministro tem sobre a sua mesa um livro enaltecendo o torturador Brilhante Ustra? A ministra quer abstinência sexual no Carnaval? A esquerda vive esse debate em looping, tautológico, reagindo com o fígado. O Ministro da Educação xinga Paulo Freire?
Vive por procuração o mesmo tautismo midiático.
Guerra híbrida, guerra criptografada
O significa tudo isso para a maioria silenciosa? O que significa essa pauta para o brasileiro comum que corre, pedala ou dirige contra o tempo com uma mochila do Uber Eats nas costas? O que representam as denúncias de feminicídio, misoginia, racismo, intolerância para uma desempregada que vive na informalidade vendendo brigadeiros e café numa térmica num ponto de ônibus? Ou então para aquele estudante universitário que luta para pagar a mensalidade vendendo doces veganos para os colegas nos intervalos?
A resposta a essas perguntas está expressa nos números da pesquisa CNT-MDA.
A chamada “guerra ciptografada” é uma mutação da guerra híbrida após o impeachment de 2016. A linha de passes combinada entre Governo e jornalismo corporativo cria dissonâncias, ataques, provocações propositais, sempre no âmbito das batalhas “culturais” – finge conflitos e produz conflitos artificiais.
Por exemplo: Bolsonaro cortou verba publicitária da Globo? Ora, a Globo já há algum tempo é rentista – basta ver seu intervalo publicitário ocupado por bancos, empresas de crédito pessoal e corretoras de investimentos, valores e títulos.
Denunciar Bolsonaro e sua trupe familiar e de ministros de fascistas e ditadores nada quer dizer para as massas. Para o cidadão comum imerso nos problemas cotidianos não passa de “politicagem”, um bate-boca particular entre a esquerda e seu malvado favorito.
O problema mais profundo é que essa guerra criptografada é confortável para a esquerda porque realiza seu pressuposto: o kantismo (relativa ao filósofo Emmanuel Kant) – a crença na boa vontade e no senso de obrigação moral em relação aos direitos universais.
O “nazista” Roberto Alvim: inside job?
A esquerda cai no alçapão da guerra cultural porque as provocações calam fundo e escandalizam – atingem os valores kantianos universais da dignidade, cidadania e liberdade.
Um vídeo tão canastrão quanto o de Roberto Alvim (emulando Goebbles através da roupa, corte de cabelo, fisionomia e gestual, disposição cenográfica – bandeira, foto e a cruz – e ainda com trilha musical de Wagner ao fundo... bem, Alvim foi diretor de teatro) arranca indignação da esquerda e linhas de postagens e minutos com vídeos de denúncias indignadas.
Tão canastrão, overacting e estereotipado que até parece planejado – um esquete tão hilário quanto aqueles do programa de TV “Monty Python Flying Circus” da trupe inglesa de humor. Teria sido um “inside job” para manter a esquerda ocupada nesse loop interminável?
Para a maioria silenciosa, tudo não passa de politicagem e por isso se apega “no pensamento positivo, a alguma esperança de que as coisas vão melhorar”, como aponta o jornalista Miguel do Rosário. E acrescenta:
O que fazer?
A esquerda ainda não percebeu os sintomas de uma espécie de “refeudalização da esfera pública”, muito próximo daquilo que Habermas (“Mudança Estrutural da Esfera Pública”) e Umberto Eco (“A Nova Idade Média”) antecipavam como movimento histórico regressivo: absorvidas pelos seus problemas cotidianos e amedrontadas, as pessoas escondem-se nas suas vidas privadas, alheias ao que se passa lá fora – na Idade Média, o poder político da Igreja e as Cruzadas. Hoje, escondem-se alheias às ameaças aos direitos e a vida cada vez mais difícil.
O que fazer? Sair dessa bolha tautista da guerra cultural com um discurso propositivo. O incipiente apagão do serviço público (represamento dos benefícios do INSS e os graves problemas dos gabaritos do Enem) que promete se agravar ao longo do ano é o desgaste anunciado do governo junto às questões cotidianas dos brasileiros.
É um tema que a esquerda até aqui não explorou, enquanto está hipnotizada por coisas como a canastrice do ministro da cultura demitido.
As pitonisas e oráculos midiáticos da pauta econômica falam diariamente que a economia “pegou tração” e que a recuperação é “lenta”, mas “constante” e que até o final de 2020 tudo melhorará.
Então é o caso de cobrar, propositivamente, as melhorias – mostrar para os brasileiros se alguma coisa está mudando no seu cotidiano.
Mais do que falar em “frentes amplas” contra o fascismo e a escalada do autoritarismo (“fascistas não passarão!”), coisa abstratamente incompreensível para a maioria silenciosa imersa nos problemas do dia-a-dia, é necessário mergulhar na economia cotidiana – de forma didática, pedagógica.
Como abordamos em postagem anterior, na verdade há, por assim dizer, uma “sabedoria” nessas maiorias silenciosas – clique aqui.
Por exemplo, desde que Lula foi condenado e preso, acreditava-se em lutas monumentais, resistências em trincheiras. Esperava-se um país paralisado e mobilizado, tornando a nação ingovernável para os usurpadores. Mas tudo o que viu foi silêncio das ruas, das favelas e periferias.
E que sabedoria há nesse silêncio? Até aqui, absorvida pelas guerras culturais impulsionadas pelas bravatas, provocações e escatologias de Bolsonaro e seus indefectíveis ministros, a esquerda não teve até aqui a menor intenção de conquistar corações e mentes dessa maioria silenciosa.
Em nenhum momento teve a iniciativa de explicar didática e pedagogicamente para o brasileiro comum das ruas no que as reformas e privatizações prejudicam e prejudicarão ainda mais o seu dia-a-dia no presente e no futuro.
Seja através de formas físicas como folders, cartilhas ou a construção de sites, newsletters ou quaisquer formas de mídias alternativas à superficialidade das redes sociais. Aproveitar a estrutura partidária ou a máquina sindical para produzir veículos de comunicação que não falem somente para os convertidos.
A sabedoria dessa apatia das maiorias silenciosas reflete a própria desistência da esquerda pela conquista dos corações e mentes das massas – a busca de formas didáticas e pedagógicas que ajude a explicar nexos e relações de causa e efeito para o brasileiro que afunda a cara no aplicativo achando que um dia sua força de trabalho magicamente vai se transformar em capital.
Wilson Ferreira é Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som). Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Linguagem Audiovisual. Pesquisador e escritor, co-autor do "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e autor dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose – a recorrência de elementos gnósticos na produção cinematográfica" pela Editora Livrus.
Wilson Ferreira é Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som). Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Linguagem Audiovisual. Pesquisador e escritor, co-autor do "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e autor dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose – a recorrência de elementos gnósticos na produção cinematográfica" pela Editora Livrus.
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