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sexta-feira, 8 de maio de 2020

Como o poder público tem atuado para a garantia do direito à moradia na pandemia em Ribeirão Preto?

Foto Ocupação Descalvado

Um dos municípios mais populosos do Estado de São Paulo, Ribeirão Preto, localizado à nordeste do Estado, tem uma população estimada de 703.293 habitantes dispersos por um território de aproximadamente 651 km, sendo que, desde o ano 2000, a população urbana supera a marca de 99%. Embora conhecida como a “capital do agronegócio” na região, é o setor de serviços responsável pela maior parte da economia local, com 84% do Produto Interno Bruto (PIB) do Município, que ocupa a 10ª posição no ranking dos municípios com maiores PIB’s no Estado de São Paulo.
Ribeirão Preto coleciona bons índices econômicos, mas também é uma cidade com extrema desigualdade social, o que é ainda mais visível quando se trata de moradia. Segundo dados do Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS), em 2019 a cidade atingiu um déficit habitacional de 30.423 domicílios, composto pela somatória do déficit quantitativo – situações que demandam a produção ou aquisição de novos domicílios – de 20.302 domicílios com o déficit qualitativo, ou seja, situações que demandam melhorias das condições de habitabilidade e/ou regularização fundiária, de 10.121 domicílios. Atualmente são 87 assentamentos urbanos informais no município, compostos por cerca de 9,7 mil famílias (PLHIS). A maioria desses assentamentos são precários (84%) e localizam-se em áreas públicas; destes, cerca de 74%  podem ser regularizados.

Partindo desse cenário, questiona-se como o poder público local tem lidado com a garantia do direito à moradia nesse contexto de pandemia do novo coronavírus, tendo em vista a necessidade do isolamento social e a possibilidade de um pico elevado de novos casos da doença em Ribeirão Preto. Para responder a esse questionamento, foram analisadas as providências tomadas pelos Poderes Executivo e Legislativos e casos referentes à atuação do Poder Judiciário no Município de Ribeirão Preto. Foram ainda levantadas algumas ações de comunidades de favela junto a entidades da sociedade civil para a tomada de medidas emergenciais neste momento de crise.
No âmbito do Poder Executivo, quase nada foi proposto em termos de garantia do direito à moradia. Pelo contrário; em pleno estado de calamidade pública, a Prefeitura, por ato do Departamento Geral de Fiscalização, promoveu na manhã do dia 14 de abril a derrubada de quinze barracos na Rua Porto Ferreira com uma retroescavadeira. Segundo os movimentos de moradia que atuam na região, no local ainda resistem mais de 20 famílias, com idosos e crianças em situação de vulnerabilidade.
O único ato voltado para a garantia do direito à moradia durante a pandemia foi a expedição, pela Secretaria de Planejamento e Gestão Pública (SEPLAN) de um ofício que pede à Secretaria de Negócios Jurídicos da Prefeitura a suspensão por no mínimo 60 dias de sete processos de reintegração de posse nos quais a Municipalidade é parte autora. Questionado sobre qual seria o critério utilizado na escolha dos sete processos indicados, o Secretário do Planejamento e Gestão Pública informou que estes núcleos não estão incluídos no Programa de Regularização Fundiária municipal. O fato de os processos judiciais estarem em fase mais avançada também serviu como critério de indicação. Os processos referentes aos núcleos objetos do programa de regularização fundiária já haviam sido suspensos tendo em vista a regularização. Contudo, até o dia desta publicação, a Municipalidade não se manifestou em nenhum dos processos indicados no ofício com o pedido de suspensão. Dessa lista, a reintegração de posse do núcleo Vila União/Ferro Velho, que, de acordo com dados do PLHIS, conta com 292 domicílios, encontra-se concluso para sentença – ou seja, pode ter a remoção como desfecho a qualquer momento. Já o processo de reintegração de posse contra os ocupantes do antigo prédio do Pronaica foi suspenso por decisão única da juíza responsável pelo caso até o término da suspensão dos prazos determinados pelo Conselho Superior da Magistratura.
A despeito das poucas providências tomadas para a garantia do direito à moradia, em uma completa inversão de valores, a Secretaria do Planejamento e Gestão Pública continuou trabalhando em atividades não essenciais de atendimento ao público, aprovação de projetos, liberação de alvarás, emissões de certidões de viabilidade e processos de parcelamento do solo, conforme declaração do Secretário da SEPLAN em reunião virtual sobre ações e reestruturações para Ribeirão Preto, ocorrida em 23 de abril. Esta atitude está em desconformidade com a regulamentação federal de medidas de enfrentamento à pandemia, que elenca como essenciais os serviços públicos e as atividades indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Outras atividades que continuaram ocorrendo sem alterações no calendário foram as discussões sobre a revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo e demais leis de regulamentação do Plano Diretor. Estas passaram a ser realizadas por meio de videoconferências, o que inviabiliza a participação da maior parte da população que, além de não ter condições técnicas (como acesso à internet), está ocupada em garantir, por vezes, a própria sobrevivência.
No âmbito do Poder Judiciário, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu os prazos processuais e atos de oficiais de justiça durante a emergência causada pelo novo coronavírus. Entretanto, a medida não foi suficiente para impedir o andamento de alguns processos de reintegração de posse, como o caso da  ocupação conhecida como Cidade Locomotiva. Importante ressaltar que a suspensão dos prazos processuais dos processos eletrônicos terminou em 04 de maio, e a dos processos físicos está prevista para terminar no dia 15 do mesmo mês, aumentando a insegurança quanto à permanência dos moradores nos núcleos informais durante o período do isolamento. O provimento prevê o adiamento dos prazos processuais cuja prática seja incompatível com o distanciamento social recomendado pelos órgãos de saúde e não puderem ser executados por meio eletrônico ou virtual, contudo, tal prática deve ser apontada e devidamente justificada para a apreciação do juízo. Tal fato requer atenção e a atuação da Defensoria, advogadas e advogados, bem como a provocação do Poder Judiciário pelas entidades comprometidas com a garantia do direito à moradia para a necessária permanência dos moradores em suas residências para que seja possível o isolamento social. Neste sentido, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas elaboraram nota conjunta com recomendações em defesa do direito à moradia da população de baixa renda durante a pandemia do novo coronavírus.

Fotos: divulgação Ocupação Descalvado

No âmbito do Poder Legislativo também foram poucas as iniciativas voltadas à proteção da moradia, o que pode estar ligado ao fato de que, apesar de Ribeirão Preto contar com 27 vereadores, a minoria se articula com o setor das comunidades de favelas. Destacam-se três medidas do Poder Legislativo frente à pandemia: a aprovação de projeto de lei que obriga o município a garantir cesta básica de alimentos, materiais de limpeza e produtos de higiene pessoal para cada família carente do município enquanto durar o decreto de calamidade pública; a recomendação ao Poder Executivo para que publique decreto proibindo o corte de serviços essenciais, como energia elétrica e abastecimento de água durante a pandemia; e a aprovação de projeto de lei que autoriza o Poder Executivo a instituir Programa Emergencial de Combate à Covid-19, com utilização dos recursos recuperados por uma recente operação da Polícia Federal, denominada “Operação Sevandija”.
Contrapondo-se às poucas medidas adotadas pelo poder público, nas favelas e periferias surgiram exemplos de auto-organização e mobilização para mitigar os efeitos da crise sanitária e econômica-social. Algumas comunidades mais organizadas, com lideranças ativas, agiram promovendo campanhas de arrecadação de alimentos, bem como pressionaram o poder público através da imprensa local. As comunidades que possuem vínculos com movimentos de moradia consolidados, como a União dos Movimentos de Moradia (UMM) têm mais organização para estruturar o funcionamento de captação e repasse de doações, além de mais poder de comunicação. Em grande parte, essa vantagem de estar vinculado a movimentos de moradia tradicionais se deve pela capacitação das lideranças, além das atividades no espaço público institucional, como a participação em conselhos públicos municipais. Um ponto fundamental dessas campanhas de arrecadação diz respeito às relações das comunidades de favelas com entidades da sociedade civil, como ONGs, institutos, movimentos sociais e empresas, relações preexistentes ou que se formam durante a crise.
No caso específico da Cidade Locomotiva, a existência de uma rede de apoio com diversas entidades aliadas e organizações não governamentais facilitou a mobilização durante o início da crise sanitária, principalmente por meio das redes sociais.
A imprensa também tem sido importante aliada das comunidades, tanto para denunciar as violações ao direito à moradia quanto para informar a progressão da contaminação e cobrar medidas emergenciais do Poder Público. Notícias e reportagens sobre mortes suspeitas de Covid-19 nas comunidades, denúncias à Prefeitura devido à falta de infraestrutura urbana e ingerência na crise e divulgação de ações solidárias são algumas das pautas. A comunicação e publicação da realidade social dos moradores de comunidades de favelas é uma frente importante que ocorre em Ribeirão Preto. Contudo, novamente as comunidades de favelas mais aptas a acionar a imprensa são aquelas que têm algum tipo de estrutura interna organizacional ligadas a movimentos de moradia e, mesmo essas, têm alcance à imprensa limitado. Por outro lado, a falta de uma coerência da comunicação oficial do Poder Público é fator que gera grandes problemas nas comunidades de favelas: em uma pandemia na qual o Presidente da República transmite informações contrárias às recomendadas pelo Poder Estadual e Municipal, a população não sabe em quem acreditar.
**Advogada, Mestra em Direito e Desenvolvimento pela FDRP/USP, vice-presidente da Comissão de Direito Urbanístico da 12a. Subseção da OAB SP;
Advogado, Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FDRP/USP, presidente da Comissão de Direito Urbanístico da 12a. Subseção da OAB SP;
Advogada, Mestra em Direito e Desenvolvimento pela FDRP/USP;
Cientista Social, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo IAU/USP;
Advogado, Mestrando em Planejamento Urbano e Regional pela FAU/USP



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