Qualquer desqualificação
do Conselho Tutelar pode derivar de um desconhecimento mínimo legal sobre o mesmo
e suas atribuições, mas pode, indiretamente, ser a expressão da continuação camuflada
do ataque aos direitos humanos e à democracia participativa.
Para
um melhor aproveitamento da reflexão aqui proposta é interessante se ter um
contato sobre a gênese histórica da expressão Direitos Humanos e a ligação que
a mesma tem com o dia a dia da vida. O Blog o Calçadão tem importantes
publicações sobre esse tema. Destacam-se duas que podem ser lidas aqui
e aqui.
A Lei Federal 8.069 de 13 de julho de 1990 que inaugura o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) prevê a existência do órgão denominado Conselho Tutelar para que zele pelos direitos previstos na própria lei (artigo 131). Composto por cinco membros escolhidos pela população local para um mandato de quatro anos, os Conselheiros Tutelares eleitos passam a fazer parte de um órgão integrante da administração pública local que trabalharão, pari passu, sobre diversos preceitos e exigências da lei com o Poder Executivo, o Judiciário e o Ministério Público.
O Conselho Tutelar faz
um trabalho cotidiano de atendimento à criança e ao adolescente, que se
desdobram em aplicação de medidas aos seus pais ou responsáveis legais como fornecimento
de orientação e encaminhamentos a serviços e programas de proteção à família e
atendimentos em saúde, mas também aplicando medidas mais severas como a
advertência ou suspensão ou destituição do poder familiar. (Art. 129). Adicionalmente
o Conselho Tutelar constitui-se como órgão de destinação obrigatória das
situações avessas aos direitos da criança e do adolescente de forma geral, como
os casos de suspeitas ou confirmação de castigo físico ou maus-tratos (Art.
13) e de forma específica, por exemplo, receber comunicação dos dirigentes
de estabelecimentos de ensino fundamental sobre situações de alunos com muitas
faltas injustificadas ou com alta repetência. (Art.56)
Uma visão mais sistêmica
de convivência e trabalho entre todos os atores envolvidos na garantia,
manutenção e expansão dos direitos das crianças e adolescentes também está
presente no ECA. Preceitua a lei que todos os entes da federação devem atuar de
forma articulada e integrada na elaboração e execução das políticas públicas entre
Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, Conselho Tutelar e
Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente e entidades não-governamentais
e promover espaços intersetoriais e multiprofissionais para elaboração de
planos de ação conjunta na proteção, promoção e defesa dos direitos da criança
e do adolescente.(Art. 70-A, incisos II e VI)
Até aqui nota-se como o
Conselho Tutelar atende e recebe a demanda e como auxilia na proposição de
modelos de atendimento. No entanto, como se verá a seguir, em nenhuma hipótese
se pode imputar ao Conselho Tutelar a ineficácia de atendimento à criança e ao
adolescente, tendo o mesmo cumprindo todas as suas obrigações. Entre as
atribuições do Conselho Tutelar a que mais se destaca por conta da demanda é a
promoção da execução de suas decisões através do requerimento de serviços
públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e
segurança.(Art. 136, inciso III, alínea a). O ECA, além de apresentar
linhas e diretrizes da política de atendimento, detalha a classificação do
regime de atendimento das entidades de maneira a cercar todas as possíveis
necessidades de atendimento à criança e ao adolescente. (Art. 90). É justamente
nesse ponto que reside o calcanhar de Aquiles do atendimento. Em diversos
municípios ou algum atendimento não existe, ou se existe não está adequadamente
dimensionado em recursos humanos e financeiros diante da demanda e/ou não está
integrado com outros programas que possam atender o leque de necessidades da
criança e do adolescente.
A palavra direitos
recomeçou a ganhar notoriedade junto ao processo de transição política da
ditadura civil-militar para o regime democrático nas décadas de setenta e
oitenta, tendo seu significado atrelado, num primeiro momento, aos direitos
individuais, a saber, os direitos políticos. Concomitantemente, a palavra foi alargando
seu significado através de reivindicações por creche, habitação, transporte etc
demarcando o processo de concretização de direitos sociais através da mobilização
e participação política. A Constituição do Brasil de 1988 e o ECA, em 1990 são
produtos históricos sociais-legais que colocaram em forma de lei os direitos
humanos em novo e mais alto patamar na esteira desse forte período de
movimentação política popular.
A elite nacional e seus
representantes políticos, atentos a esse desenrolar de fatos, logo
diagnosticaram duas situações intimamente ligadas e caras a esse grupo: o aparecimento
da democracia participativa na gestão do Estado e, consequentemente, a alocação
de recursos públicos com amarras legais (carimbados) destinados à políticas
públicas voltadas, principalmente, para a camada mais pobre da população em
detrimento dos destinos outrora privilegiados e quase nada republicanos. No
final dos anos oitenta e início dos noventa as ideias neoliberais já pairavam
nos discursos dessa elite que o utilizou como contra-ataque a expansão de
direitos. O presidente José Sarney já em 1987 declarava para a imprensa que a
Constituição de 1988, como estava sendo redigida, tornaria o país ingovernável.
Essa foi a retórica pelo flanco da disputa orçamentária. No flanco da disputa
de corações e mentes da população em geral surgiu a associação da expressão
direitos humanos à defesa de privilégios para bandidos e as mobilizações e
articulações por direitos sociais à desordem social. Transformar direitos
humanos propositadamente numa celeuma foi e é um mecanismo de conseguir junto à
população frear os avanços que poderiam se constituir em benefícios de
cidadania para essa mesma população.
O Brasil é um dos países
mais desiguais do mundo e nesse contexto sócio-econômico é comum que o
atendimento do Conselho Tutelar seja majoritariamente marcado pela presença de
crianças e adolescentes advindos de núcleos familiares empobrecidos e desassistidos.
Apesar da saúde e educação públicas
terem se estruturado e facilitado o acesso nas últimas décadas existe um
contingente considerável de pessoas que ficam nas rebarbas das políticas
públicas de atacado, por assim dizer, e necessitam de programas e serviços mais
específicos para terem oportunidade de se restabelecerem. Sendo assim, um
requerimento de atendimento especializado para essa camada da população
realizado pelo Conselho Tutelar configura-se em boa medida num acinte aos
monopolistas sociais. Para muitos, oferecer atendimento psicopedagógico para
uma criança e adolescente pobre da periferia é quase análogo ao oferecimento de
atendimento médico especializado para detento. Um luxo, um desperdício de
recursos públicos, pois os primeiros sujeitos são considerados os potenciais
futuros frequentadores do sistema carcerário (com probabilidade muito aumentada
se for negro) e os segundos ou não têm recuperação ou já deveriam ter sido
sentenciados com a pena capital.
Há quem advogue pelo
preenchimento dos cargos ao Conselho Tutelar exclusivamente por concurso. No
entanto, os direitos humanos de maneira geral e os direitos da criança e do
adolescente de maneira específica necessitam para se desenvolverem e se
aperfeiçoarem da vitalidade, da atualidade, e da presença democrática
caracterizada pela alternância de ocupação dos espaços instituídos pela sociedade
civil organizada ou pelas lideranças comunitárias que as representam.
Dessa maneira o Conselho
Tutelar configura-se como espaço democrático legalmente previsto que ainda tem
um papel importante a cumprir no aprimoramento da legislação, dos serviços e
programas que atendam a infância e a juventude brasileira. A democracia não é
um valor em si e se só se constitui como real se for capaz de promover justiça
social e distribuição de maneira mais equânime dos frutos do trabalho social
gerado. Sendo assim o Brasil ainda é um país com processo de redemocratização
em curso e o Conselho Tutelar é espaço fundamental a ser valorizado por outros
atores e instituições.
*Celso Correia da Silva Júnior é amigo e colaborador do Blog O Calçadão
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