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terça-feira, 17 de junho de 2025

Em aula aberta, João Pedro Stédile defende novo modelo de desenvolvimento rural sobre política agrária

 

"É mentira que 70 mil famílias foram assentadas. Isso não existe", afirmou
Imagem: Fundação Perseu Abramo

Integrante do MST critica hegemonia do agronegócio, denuncia papel do capital financeiro no campo e propõe a valorização da agricultura familiar como alternativa viável e sustentável para o futuro do Brasil

Nesta segunda-feira (16) a Fundação Perseu Abramo, em parceria com a Unicamp, promoveu a aula aberta “Desenvolvimento, política agrária e agricultura familiar”, ministrada pelo economista e dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile. Realizado presencialmente no auditório Antônio Cândido, em São Paulo, o encontro contou com transmissão ao vivo pelo YouTube e participação virtual por meio do Zoom, integrando o curso de extensão “Desenvolvimento, trabalho e políticas públicas”. Durante a atividade, Stédile percorreu os principais dilemas da questão agrária brasileira e os rumos possíveis para um projeto nacional de desenvolvimento.

Logo no início da aula, Stédile situou a questão agrária como um campo fundamental do conhecimento para entender as estruturas sociais e econômicas do Brasil. De acordo com João, trata-se de uma área que busca compreender a relação entre uso, posse e propriedade da terra, sendo equivocada sua redução a conflitos pontuais ou à simples luta por reforma agrária. A fim de ilustrar esse argumento, o dirigente do MST apresentou uma leitura histórica da formação territorial brasileira, desde os povos originários até os dias atuais. Stédile lembrou que o território nacional foi ocupado ao longo de mais de 50 mil anos por povos que organizavam sua produção com base no comunismo primitivo, ou seja, em práticas coletivas de uso da terra, sem propriedade privada.

De acordo com o membro da Coordenação Nacional do MST, a chegada dos capitalistas mercantis europeus, em 1500, marca, o início da ruptura com essa forma de vida. A introdução do modelo de plantation, baseado em grandes propriedades monocultoras voltadas para a exportação e sustentadas pelo trabalho escravo, consolidou um regime fundiário altamente concentrado. Para João Pedro, esse processo histórico encontra um ponto de inflexão com a promulgação da Lei de Terras de 1850, que institucionalizou pela primeira vez no país a propriedade privada da terra.

 “Até então, toda a terra pertencia à Coroa. A partir dessa lei, a terra só podia ser obtida mediante compra, excluindo a imensa maioria da população do acesso a esse bem fundamental”

Essa estrutura de exclusão, segundo o economista e integrante do MST, perdurou durante o ciclo de industrialização iniciado na década de 1930, quando a burguesia industrial assumiu o controle do Estado. Nesse novo cenário, a agricultura passou a cumprir funções subordinadas ao projeto urbano-industrial: fornecimento de mão de obra barata para as cidades, produção de alimentos a preços controlados para manter baixos os salários e abastecimento das nascentes agroindústrias. Para Stédile, esse modelo estimulou a formação do campesinato brasileiro, composto por três principais segmentos: caboclos e mestiços expulsos das áreas centrais, quilombolas que se fixaram em territórios mais ermos e imigrantes pobres vindos da Europa e do Oriente Médio. A esses camponeses foi atribuída a tarefa de sustentar o abastecimento alimentar interno, embora submetidos a preços aviltados e à negação de políticas estruturantes.

João Pedro Stédile destacou que a partir da década de 1990, com a ascensão do neoliberalismo e a hegemonia do capital financeiro, uma nova reconfiguração produtiva passou a dominar o campo e argumentou que as grandes corporações passaram a controlar o ciclo produtivo agrícola, desde os insumos até a comercialização, substituindo o trabalho humano por agrotóxicos e mecanização, ao mesmo tempo em que reforçavam a lógica exportadora. Nesse contexto, JPS afirmou que hoje coexistem no Brasil três modelos em disputa: o latifúndio extrativista, focado na apropriação de bens naturais como terra, água e madeira; o agronegócio corporativo, estruturado sobre grandes propriedades monocultoras, altamente tecnologizadas e voltadas à exportação de commodities; e a agricultura familiar, baseada no trabalho familiar, na policultura e no abastecimento interno com alimentos saudáveis.

Para sustentar sua análise, o economista apresentou dados que revelam a extrema concentração de renda e poder no setor. De acordo com ele, 50 empresas controlam a totalidade da produção agrícola comercial do país, apropriando-se da maior parte do valor gerado no campo.

“Essas empresas faturam mais de R$ 1 trilhão por ano, enquanto os produtores, mesmo os grandes, ficam com apenas 13% da renda. A maior parte do lucro vai para quem vende os insumos e controla os mercados. Isso é uma tragédia econômica e social.

A crítica à estrutura do agronegócio foi acompanhada da defesa da agricultura familiar como alternativa econômica, ambiental e socialmente viável. Stédile afirmou que esse modelo é o único capaz de produzir alimentos saudáveis com respeito à natureza e gerar trabalho no campo. O dirigente do MST lembrou que mais de 80% dos alimentos que abastecem os mercados internos são oriundos da agricultura familiar, embora o setor receba pouco incentivo estatal e enfrente condições adversas frente à concentração fundiária e ao domínio das transnacionais.

No debate que se seguiu à exposição, o dirigente do MST foi questionado sobre o papel do crédito fundiário como instrumento de acesso à terra. Respondendo à pesquisadora Luana, da USP, que destacou os altos índices de endividamento entre os beneficiários desse programa, Stédile foi categórico ao afirmar que o crédito fundiário é um “engodo”. Segundo ele, trata-se de uma política criada sob orientação do Banco Mundial para desmontar a luta por reforma agrária, transferindo a responsabilidade do Estado para o mercado financeiro.

“É um mecanismo perverso. O campesinato vira devedor do banco, sem resolver o problema estrutural do acesso à terra. Nós, do MST, somos contra”.

Outro ponto abordado foi a estagnação dos assentamentos rurais nos últimos anos. Em resposta a uma pergunta sobre o suposto inflacionamento de dados pelo governo federal, Stédile apresentou números do Dataluta, vinculados à Unesp, que mostram que apenas 3 mil famílias foram assentadas no governo Lula até o momento — número inferior ao registrado nos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula I.

“É mentira que 70 mil famílias foram assentadas. Isso não existe. O próprio presidente já disse ao ministro: ‘Pare de mentir’. Não adianta maquiar os dados”.

A discussão também tocou na importância da educação do campo e da pedagogia da alternância, destacada por um professor do Instituto Federal de Santa Catarina. Stédile defendeu os Institutos Federais em assentamentos e ressaltou o papel do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), criado ainda no governo FHC.

“A alternância permite que o jovem aprenda e volte para sua comunidade. Assim, o conhecimento circula e o estudante se mantém vinculado ao seu território. É isso que queremos: desenvolvimento com raízes no campo”.

Ao final da aula, Stédile reforçou sua convicção de que a disputa atual no campo brasileiro não se limita à posse da terra, mas diz respeito à escolha entre modelos de desenvolvimento. Para João Pedro, o agronegócio é insustentável do ponto de vista social, econômico e ambiental, enquanto a agricultura familiar representa um projeto de futuro.

“Essa é a verdadeira luta de classes no campo: entre um modelo que envenena, concentra renda e destrói a natureza, e outro que alimenta, preserva e respeita a vida. Eu não tenho dúvida de que vamos vencer, mesmo que leve uma geração. A história está ao nosso lado”, concluiu.


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