"É mentira que 70 mil famílias foram assentadas. Isso não existe", afirmou Imagem: Fundação Perseu Abramo |
Integrante do MST critica hegemonia do agronegócio, denuncia papel do capital financeiro no campo e propõe a valorização da agricultura familiar como alternativa viável e sustentável para o futuro do Brasil
Nesta
segunda-feira (16) a Fundação Perseu Abramo, em parceria com a Unicamp,
promoveu a aula aberta “Desenvolvimento, política agrária e agricultura
familiar”, ministrada pelo economista e dirigente do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile. Realizado
presencialmente no auditório Antônio Cândido, em São Paulo, o encontro contou
com transmissão ao vivo pelo YouTube e participação virtual por meio do Zoom,
integrando o curso de extensão “Desenvolvimento, trabalho e políticas públicas”. Durante a atividade, Stédile percorreu os principais dilemas da
questão agrária brasileira e os rumos possíveis para um projeto nacional de
desenvolvimento.
Logo no início da
aula, Stédile situou a questão agrária como um campo fundamental do
conhecimento para entender as estruturas sociais e econômicas do Brasil. De
acordo com João, trata-se de uma área que busca compreender a relação entre
uso, posse e propriedade da terra, sendo equivocada sua redução a conflitos
pontuais ou à simples luta por reforma agrária. A fim de ilustrar esse
argumento, o dirigente do MST apresentou uma leitura histórica da formação
territorial brasileira, desde os povos originários até os dias atuais. Stédile
lembrou que o território nacional foi ocupado ao longo de mais de 50 mil anos
por povos que organizavam sua produção com base no comunismo primitivo, ou
seja, em práticas coletivas de uso da terra, sem propriedade privada.
De acordo com o
membro da Coordenação Nacional do MST, a chegada dos capitalistas mercantis
europeus, em 1500, marca, o início da ruptura com essa forma de vida. A
introdução do modelo de plantation,
baseado em grandes propriedades monocultoras voltadas para a exportação e
sustentadas pelo trabalho escravo, consolidou um regime fundiário altamente
concentrado. Para João Pedro, esse processo histórico encontra um ponto de
inflexão com a promulgação da Lei
de Terras de 1850, que institucionalizou pela primeira vez no país a
propriedade privada da terra.
“Até então, toda a terra pertencia à Coroa. A partir
dessa lei, a terra só podia ser obtida mediante compra, excluindo a imensa
maioria da população do acesso a esse bem fundamental”
Essa estrutura de
exclusão, segundo o economista e integrante do MST, perdurou durante o ciclo de
industrialização iniciado na década de 1930, quando a burguesia industrial
assumiu o controle do Estado. Nesse novo cenário, a agricultura passou a
cumprir funções subordinadas ao projeto urbano-industrial: fornecimento de mão
de obra barata para as cidades, produção de alimentos a preços controlados para
manter baixos os salários e abastecimento das nascentes agroindústrias. Para
Stédile, esse modelo estimulou a formação do campesinato brasileiro, composto
por três principais segmentos: caboclos e mestiços expulsos das áreas centrais,
quilombolas que se fixaram em territórios mais ermos e imigrantes pobres vindos
da Europa e do Oriente Médio. A esses camponeses foi atribuída a tarefa de
sustentar o abastecimento alimentar interno, embora submetidos a preços
aviltados e à negação de políticas estruturantes.
João Pedro Stédile
destacou que a partir da década de 1990, com a ascensão do neoliberalismo e a
hegemonia do capital financeiro, uma nova reconfiguração produtiva passou a
dominar o campo e argumentou que as grandes corporações passaram a controlar o
ciclo produtivo agrícola, desde os insumos até a comercialização, substituindo
o trabalho humano por agrotóxicos e mecanização, ao mesmo tempo em que
reforçavam a lógica exportadora. Nesse contexto, JPS afirmou que hoje coexistem
no Brasil três modelos em disputa: o latifúndio extrativista, focado na
apropriação de bens naturais como terra, água e madeira; o agronegócio
corporativo, estruturado sobre grandes propriedades monocultoras, altamente
tecnologizadas e voltadas à exportação de commodities; e a agricultura familiar,
baseada no trabalho familiar, na policultura e no abastecimento interno com
alimentos saudáveis.
Para sustentar sua
análise, o economista apresentou dados que revelam a extrema concentração de
renda e poder no setor. De acordo com ele, 50 empresas controlam a totalidade
da produção agrícola comercial do país, apropriando-se da maior parte do valor
gerado no campo.
“Essas empresas
faturam mais de R$ 1 trilhão por ano, enquanto os produtores, mesmo os grandes,
ficam com apenas 13% da renda. A maior parte do lucro vai para quem vende os
insumos e controla os mercados. Isso é uma tragédia econômica e social.
A
crítica à estrutura do agronegócio foi acompanhada da defesa da agricultura
familiar como alternativa econômica, ambiental e socialmente viável. Stédile
afirmou que esse modelo é o único capaz de produzir alimentos saudáveis com
respeito à natureza e gerar trabalho no campo. O dirigente do MST lembrou que
mais de 80% dos alimentos que abastecem os mercados internos são oriundos da
agricultura familiar, embora o setor receba pouco incentivo estatal e enfrente
condições adversas frente à concentração fundiária e ao domínio das
transnacionais.
No debate que se
seguiu à exposição, o dirigente do MST foi questionado sobre o papel do crédito
fundiário como instrumento de acesso à terra. Respondendo à pesquisadora Luana,
da USP, que destacou os altos índices de endividamento entre os beneficiários
desse programa, Stédile foi categórico ao afirmar que o crédito fundiário é um
“engodo”. Segundo ele, trata-se de uma política criada sob orientação do Banco
Mundial para desmontar a luta por reforma agrária, transferindo a
responsabilidade do Estado para o mercado financeiro.
“É um mecanismo
perverso. O campesinato vira devedor do banco, sem resolver o problema estrutural
do acesso à terra. Nós, do MST, somos contra”.
Outro ponto
abordado foi a estagnação dos assentamentos rurais nos últimos anos. Em
resposta a uma pergunta sobre o suposto inflacionamento de dados pelo governo
federal, Stédile apresentou números do Dataluta, vinculados à Unesp, que
mostram que apenas 3 mil famílias foram assentadas no governo Lula até o
momento — número inferior ao registrado nos governos Fernando Henrique Cardoso
e Lula I.
“É mentira que 70
mil famílias foram assentadas. Isso não existe. O próprio presidente já disse
ao ministro: ‘Pare de mentir’. Não adianta maquiar os dados”.
A discussão também
tocou na importância da educação do campo e da pedagogia da alternância,
destacada por um professor do Instituto Federal de Santa Catarina. Stédile
defendeu os Institutos Federais em assentamentos e ressaltou o papel do Pronera
(Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), criado ainda no governo
FHC.
“A alternância
permite que o jovem aprenda e volte para sua comunidade. Assim, o conhecimento
circula e o estudante se mantém vinculado ao seu território. É isso que
queremos: desenvolvimento com raízes no campo”.
Ao final da aula,
Stédile reforçou sua convicção de que a disputa atual no campo brasileiro não
se limita à posse da terra, mas diz respeito à escolha entre modelos de
desenvolvimento. Para João Pedro, o agronegócio é insustentável do ponto de
vista social, econômico e ambiental, enquanto a agricultura familiar representa
um projeto de futuro.
“Essa é a verdadeira
luta de classes no campo: entre um modelo que envenena, concentra renda e
destrói a natureza, e outro que alimenta, preserva e respeita a vida. Eu não
tenho dúvida de que vamos vencer, mesmo que leve uma geração. A história está
ao nosso lado”,
concluiu.
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