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sexta-feira, 13 de junho de 2025

“Escola do Dinheiro”: projeto do Governo de SP ensina finanças com patrocinadores acusados de grilagem, trabalho escravo e corte de empregos

 

Van Truck estacionada ao lado de escola municipal de Ribeirão Preto/SP
Foto: Filipe Augusto Peres 

Como práticas abusivas de empresas patrocinadoras contrastam com os valores pedagógicos do programa voltado à educação financeira em escolas públicas paulistas

Por Filipe Augusto Peres

O projeto “Escola do Dinheiro”, implementado pelo Governo do Estado de São Paulo em parceria com a Secretaria Estadual de Educação e patrocinado por grandes empresas privadas, tem como objetivo ensinar educação financeira para estudantes da rede pública. A proposta, que busca promover autonomia e responsabilidade entre jovens de baixa renda, está sendo promovida com apoio institucional da TV Cultura e de marcas como Agropalma, BR Partners, Pernambucanas e Nubank.

Segundo o próprio site oficial do programa, o “Escola do Dinheiro” é apresentado como um programa itinerante que busca “ensinar a comunidade, em especial crianças e adolescentes, sobre a importância do dinheiro e o acúmulo de recursos”, por meio de aulas interativas e gamificadas. A proposta oferece educação financeira gratuita para jovens de 11 a 17 anos, professores e familiares nas escolas públicas paulistas. Ao todo, entre abril e agosto, sempre com permanência de uma semana com uma van truck estacionada ao lado da escola, o projeto percorre 13 municípios do Estado de São Paulo.

Estruturado para fomentar a “cultura de gerir e investir recursos de forma consciente e responsável”, o projeto se vale de unidades móveis equipadas com notebooks, material inclusivo (em braille e Libras) e ferramentas pedagógicas como simuladores, jogos e cartilhas digitais. De acordo com o calendário divulgado, o projeto percorre diversas cidades do estado entre abril e agosto de 2025, com o objetivo de apoiar famílias a evitar o endividamento e planejar o futuro.

No entanto, algumas empresas patrocinadoras do projeto acumulam históricos controversos que envolvem violações de direitos humanos, exploração de mão de obra análoga à escravidão, grilagem de terras, precarização de relações de trabalho, fraudes em programas de aprendizagem, promoção de privatizações com impactos negativos sobre o emprego formal e, no caso do Nubank, a negativação em massa de consumidores inadimplentes por valores ínfimos. Ao examinar tais ações, revela-se um abismo entre o discurso educativo do programa e a prática concreta de seus financiadores.

A BR Partners, por exemplo, banco de investimento fundado por Ricardo Lacerda, atua com foco em fusões e aquisições, reestruturação empresarial, emissões de dívida e assessoria em privatizações. Em 2021, foi contratada para fazer a avaliação econômico-financeira da Eletrobras no processo de capitalização que antecedeu sua privatização. Também atuou com o BNDES e o governo do Rio Grande do Sul na venda da distribuidora estadual para a Compass, no valor de R$ 928 milhões.

Em entrevista ao site Neofeed, site voltado aos “negócios e empreendedorismo”, Lacerda declarou que “se deveria privatizar tudo”, expondo sua adesão à lógica neoliberal que trata o Estado como entrave e o mercado como solução universal. A atuação do banco prioriza o retorno ao capital, mesmo que isso implique em demissões e precarização, travestidas de “sinergias operacionais”.

A Agropalma, maior produtora de óleo de palma da América Latina, está envolvida em graves denúncias de grilagem de terras quilombolas e repressão armada a comunidades no Pará. O MP do estado e a Defensoria Pública ajuizaram ações denunciando bloqueios de estradas, uso de seguranças armados e instalação de cercas, drones e até contêineres para impedir o acesso das populações tradicionais a seus territórios. A Justiça bloqueou as matrículas das fazendas Roda de Fogo e Castanheira por indícios de falsificação de documentos. Em 2024, o Fundo Soberano da Noruega desinvestiu R$ 37 milhões por conta dessas violações.

A rede varejista Pernambucanas, por sua vez, foi condenada em 2024 pelo STF por trabalho escravo em oficinas terceirizadas que exploravam migrantes andinos. Mesmo após ter sido punida anteriormente, em 2014, com multa de R$ 2,5 milhões por práticas semelhantes, a empresa persistiu em terceirizações precarizantes. Em 2025, foi novamente condenada por contratação irregular de temporários para funções permanentes. Também foi responsabilizada por fraudes no programa de aprendizes em 2013.

O Nubank, fintech amplamente associada à modernização financeira e marketing digital inclusivo, negativou mais de 1 milhão de brasileiros no SPC por dívidas de até R$ 100. Esse número representava, em 2022, 40% de todas as pessoas inscritas em cadastros de inadimplência por pequenas dívidas. A empresa só aderiu ao programa federal Desenrola após forte pressão pública, buscando limpar parte desses registros sem oferecer contrapartidas estruturais. Embora se apresente como startup de inclusão financeira, o Nubank opera com mecanismos de cobrança agressivos e lucros elevados sobre a inadimplência de sua base empobrecida.

Todos esses exemplos revelam como a pedagogia da responsabilidade individual, central ao programa “Escola do Dinheiro”, esconde a estrutura de desigualdades econômicas, repressão e precarização imposta pelos mesmos agentes que o financiam.

Marx e Engels

Tal estrutura se articula com fundamentos da crítica marxista, especialmente no que se refere à função ideológica da educação e à reprodução das relações de produção.

Segundo Marx e Engels, em A ideologia alemã, as ideias dominantes em uma sociedade são aquelas da classe dominante, e por isso, a pedagogia que ensina jovens a gerenciar escassez naturaliza a própria escassez produzida. O programa, ao individualizar a responsabilidade pela pobreza e ocultar as condições estruturais de exploração, contribui para o que Marx chamou de falsa consciência.

“Ensinar” jovens a controlar seus miseráveis gastos e poupar na miséria enquanto seus patrocinadores exploram trabalhadores, privatizam bens públicos, grilam territórios e ampliam o endividamento da população esconde a estrutura de desigualdades econômicas, repressão e precarização imposta pelos mesmos agentes que o financiam.

A educação, nesse contexto, deixa de ser emancipadora e passa a funcionar como um aparelho ideológico do Estado, promovendo a adaptação dos sujeitos à lógica da precarização, do endividamento e da subordinação ao capital. Mais: ao “ensinar” a juventude a consumir com consciência e a poupar, sem revelar as estruturas que os impedem de acumular riqueza, o projeto reforça a alienação dos sujeitos em relação à sua realidade material, operando como instrumento de legitimação de um modelo econômico que explora, reprime e marginaliza.

A contradição entre discurso e prática é própria do sistema capitalista, que precisa parecer justo para manter sua capacidade de exploração. Dessa forma, a proposta governamental, que se apresenta como emancipadora, acaba servindo como plataforma de propaganda para corporações que aprofundam a desigualdade que afirmam combater. Em vez de fomentar autonomia, normaliza um modelo de educação submisso ao mercado, legitima práticas predatórias e blinda o capital sob a linguagem da cidadania financeira.

Relatos

Alunos que não quiseram se identificar, relataram não terem tido tempo de realizar o game durante as oficinas, tendo, apenas, ouvido as palestras e preenchido o formulário no Google Forms. Ao final, receberam o calendário, a cartilha e um cartão com um QR Code, o qual leva ao acesso ao game de educação financeira. Durante a oficina, os mediadores declararam que o game não é cobrado para alunos de escola pública. Entretanto, apesar do discurso didático sobre não gastar dinheiro e poupá-lo para realizações futuras, estudantes declararam que precisaram baixar o aplicativo do game da Tamgram e que, ao fazê-lo, lhes era cobrado uma taxa de R$10,00, o que os impossibilitou de realizarem a atividade.

Obs: Todas as referências citadas estão com hiperlink, de modo que podem ser acessadas e confirmadas pelo leitor.


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