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Van Truck estacionada ao lado de escola municipal de Ribeirão Preto/SP Foto: Filipe Augusto Peres |
Como práticas abusivas de empresas patrocinadoras contrastam com os valores pedagógicos do programa voltado à educação financeira em escolas públicas paulistas
Por Filipe Augusto Peres
O projeto “Escola do Dinheiro”, implementado pelo Governo do
Estado de São Paulo em parceria com a Secretaria Estadual de Educação e
patrocinado por grandes empresas privadas, tem como objetivo ensinar educação
financeira para estudantes da rede pública. A proposta, que busca promover
autonomia e responsabilidade entre jovens de baixa renda, está sendo promovida
com apoio institucional da TV Cultura e de marcas como Agropalma, BR Partners,
Pernambucanas e Nubank.
Segundo o próprio site
oficial
do programa, o “Escola do Dinheiro” é apresentado como um programa itinerante
que busca “ensinar a comunidade, em
especial crianças e adolescentes, sobre a importância do dinheiro e o acúmulo
de recursos”, por meio de aulas interativas e gamificadas. A proposta
oferece educação financeira gratuita para jovens de 11 a 17 anos, professores e
familiares nas escolas públicas paulistas. Ao todo, entre abril e agosto,
sempre com permanência de uma semana com uma van truck estacionada ao lado da
escola, o projeto percorre 13 municípios do Estado de São Paulo.
Estruturado para fomentar a “cultura
de gerir e investir recursos de forma consciente e responsável”, o projeto
se vale de unidades móveis equipadas com notebooks, material inclusivo (em
braille e Libras) e ferramentas pedagógicas como simuladores, jogos e cartilhas
digitais. De acordo com o calendário divulgado, o projeto percorre diversas
cidades do estado entre abril e agosto de 2025, com o objetivo de apoiar
famílias a evitar o endividamento e planejar o futuro.
No entanto, algumas empresas patrocinadoras do projeto acumulam
históricos controversos que envolvem violações de direitos humanos, exploração
de mão de obra análoga à escravidão, grilagem de terras, precarização de
relações de trabalho, fraudes em programas de aprendizagem, promoção de
privatizações com impactos negativos sobre o emprego formal e, no caso do
Nubank, a negativação em massa de consumidores inadimplentes por valores
ínfimos. Ao examinar tais ações, revela-se um abismo entre o discurso educativo
do programa e a prática concreta de seus financiadores.
A BR Partners, por exemplo, banco de
investimento fundado por Ricardo Lacerda, atua com foco em fusões e aquisições,
reestruturação empresarial, emissões de dívida e assessoria em privatizações.
Em 2021, foi contratada para fazer a avaliação
econômico-financeira da Eletrobras no processo de capitalização que antecedeu
sua privatização. Também atuou com o BNDES e o governo do Rio Grande do Sul
na venda da distribuidora estadual para a Compass, no valor de R$ 928
milhões.
Em entrevista ao site Neofeed, site voltado aos “negócios e
empreendedorismo”, Lacerda declarou que “se
deveria privatizar tudo”, expondo sua adesão à lógica neoliberal que trata o Estado como
entrave e o mercado como solução universal. A atuação do banco prioriza o
retorno ao capital, mesmo que isso implique em demissões e precarização,
travestidas de “sinergias operacionais”.
A Agropalma, maior produtora de óleo
de palma da América Latina, está envolvida em graves denúncias de grilagem de terras
quilombolas e repressão armada a comunidades no Pará. O MP do estado e a Defensoria Pública
ajuizaram ações denunciando bloqueios de estradas, uso de seguranças armados e
instalação de cercas, drones e até contêineres para impedir o acesso das
populações tradicionais a seus territórios. A Justiça bloqueou as matrículas das
fazendas Roda de Fogo e Castanheira por indícios de falsificação de documentos.
Em 2024, o Fundo Soberano da Noruega
desinvestiu R$ 37 milhões por conta dessas violações.
A rede varejista Pernambucanas, por sua vez, foi
condenada em 2024 pelo STF por trabalho escravo em oficinas terceirizadas que
exploravam migrantes andinos. Mesmo após ter sido punida anteriormente, em 2014, com multa
de R$ 2,5 milhões por práticas semelhantes, a empresa persistiu em
terceirizações precarizantes. Em 2025, foi novamente condenada por
contratação irregular de temporários para funções permanentes. Também foi responsabilizada por fraudes
no programa de aprendizes em 2013.
O Nubank, fintech amplamente associada à modernização financeira
e marketing digital inclusivo, negativou mais de 1 milhão de
brasileiros no SPC por dívidas de até R$ 100. Esse número representava, em 2022, 40% de
todas as pessoas inscritas em cadastros de inadimplência por pequenas dívidas.
A empresa só aderiu ao programa federal Desenrola após forte pressão pública,
buscando limpar parte desses registros sem oferecer contrapartidas estruturais.
Embora se apresente como startup de inclusão financeira, o Nubank opera com
mecanismos de cobrança agressivos e lucros elevados sobre a inadimplência de
sua base empobrecida.
Todos esses exemplos revelam como a pedagogia da
responsabilidade individual, central ao programa “Escola do Dinheiro”, esconde
a estrutura de desigualdades econômicas, repressão e precarização imposta pelos
mesmos agentes que o financiam.
Marx e
Engels
Tal estrutura se articula com fundamentos da crítica marxista,
especialmente no que se refere à função ideológica da educação e à reprodução
das relações de produção.
Segundo Marx e Engels, em A ideologia alemã, as ideias
dominantes em uma sociedade são aquelas da classe dominante, e por isso, a
pedagogia que ensina jovens a gerenciar escassez naturaliza a própria escassez
produzida. O programa, ao individualizar a responsabilidade pela pobreza e
ocultar as condições estruturais de exploração, contribui para o que Marx
chamou de falsa consciência.
“Ensinar” jovens a controlar seus miseráveis gastos e poupar na
miséria enquanto seus patrocinadores exploram trabalhadores, privatizam bens
públicos, grilam territórios e ampliam o endividamento da população esconde a estrutura
de desigualdades econômicas, repressão e precarização imposta pelos mesmos
agentes que o financiam.
A educação, nesse contexto, deixa de ser emancipadora e passa a
funcionar como um aparelho ideológico do Estado, promovendo a adaptação dos
sujeitos à lógica da precarização, do endividamento e da subordinação ao
capital. Mais: ao “ensinar” a juventude a consumir com consciência e a poupar,
sem revelar as estruturas que os impedem de acumular riqueza, o projeto reforça
a alienação dos sujeitos em relação à sua realidade material, operando como
instrumento de legitimação de um modelo econômico que explora, reprime e
marginaliza.
A contradição entre discurso e prática é própria do sistema
capitalista, que precisa parecer justo para manter sua capacidade de
exploração. Dessa forma, a proposta governamental, que se apresenta como
emancipadora, acaba servindo como plataforma de propaganda para corporações que
aprofundam a desigualdade que afirmam combater. Em vez de fomentar autonomia,
normaliza um modelo de educação submisso ao mercado, legitima práticas
predatórias e blinda o capital sob a linguagem da cidadania financeira.
Relatos
Alunos que não quiseram se identificar, relataram não terem tido
tempo de realizar o game durante as oficinas, tendo, apenas, ouvido as palestras
e preenchido o formulário no Google Forms. Ao final, receberam o calendário, a
cartilha e um cartão com um QR Code, o qual leva ao acesso ao game de educação
financeira. Durante a oficina, os mediadores declararam que o game não é cobrado
para alunos de escola pública. Entretanto, apesar do discurso didático sobre não gastar dinheiro e poupá-lo para realizações futuras, estudantes declararam que precisaram
baixar o aplicativo do game da Tamgram e que, ao fazê-lo, lhes era cobrado uma taxa de R$10,00,
o que os impossibilitou de realizarem a atividade.
Obs: Todas
as referências citadas estão com hiperlink, de modo que podem ser acessadas e
confirmadas pelo leitor.
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