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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

"Superimperialismo" anuncia catástrofes



Imagine um mundo governado por uma coalizão de algumas dezenas de megacorporações com poder para impor suas próprias regras sobre fluxos de bens, pessoas e capitais ao redor do planeta e definir as normas para a produção e exploração de produtos fundamentais à vida e às sociedades. Nesse mundo, fica vetada qualquer lei, aprovada por qualquer parlamento, que implique redução nos lucros das corporações (por exemplo: restrições ao uso de substâncias químicas para a exploração de matérias-primas; limitação da jornada de trabalho; medidas de proteção ao trabalhador no exercício de suas funções etc.).

É o “superimperialismo”, o mundo dos sonhos do capital. Não se trata, aqui, de uma “distopia”, de alguma obra de ficção sobre como funcionará o planeta, no futuro. Não. Esse mundo já é real, embora ainda não plenamente realizado. Está em processo acelerado de construção. Seus contornos são visíveis, e sua estrutura é anunciada por uma sopa de letrinhas: TPP, Tafta e Tisa, acordos de total liberalização de comércio e de serviços que, juntos, somam cerca de 80% das trocas mundiais. Comparado com aquilo que os acordos preconizam, a Alca – projeto que assombrou a América Latina na primeira década do século, mas derrotado pelo movimento hemisférico de resistência – soa mais como uma brincadeira de criança.

A péssima notícia é a de que a resistência está enfraquecida pela crise da própria esquerda. E, em contrapartida, o Brasil de Michel Temer e José Serra aderiu ao Tisa, em junho, embarcando com tudo rumo à catástrofe.


"Sopa de letrinhas" mortal

TPP é a sigla, em inglês, de Parceria Transpacífico. É uma expansão do Acordo de Parceria Econômica Estratégica Transpacífico, inicialmente assinado por Brunei, Chile, Nova Zelândia e Singapura, em 2005. A partir de 2008, Austrália, Canadá, Japão, Malásia, México, Peru, Estados Unidos e Vietnã também aderiram ao processo de negociações, cujo objetivo é extinguir todos os obstáculos ao comércio entre os signatários (traduzindo: trata-se de permitir que as corporações adotem práticas que aumentem ao máximo os seus lucros, sem qualquer inibição de natureza jurídica, institucional, social ou política). A etapa de formulação dos termos do acordo, que terão que ser submetidos aos parlamentos dos países-membros, para ratificação, foi concluída em 5 de outubro de 2015.

Tafta é a sigla de Acordo de Livre Comércio Transatlântico, arquitetado por bancos estadunidenses e europeus, as corporações vinculadas ao agronegócio e as maiores empresas dos dois lados do Atlântico. As negociações, secretas, foram iniciadas em julho de 2013.Como no caso do TPP, os bancos pressionam pela total desregulamentação de todas as práticas especulativas, incluindo aquelas que visam impedir que as instituições financeiras joguem com o dinheiro depositado por milhões de trabalhadores – práticas que estão na base da catástrofe que eclodiu em 2007.

"Os capitães da indústria querem a abolição de leis trabalhistas e de quaisquer garantias para os trabalhadores e jovens. Querem a regressão para níveis de exploração do trabalho verificados durante a Revolução Industrial e denunciados por Karl Marx e Friedrich Engels"

O agronegócio exige o fim das medidas de proteção ambiental e segurança alimentar, transformando o planeta num imenso campo de experimentos destinados a aumentar os lucros, mesmo que isso implique acelerar o desastre ambiental e aumentar a fome e a subnutrição no mundo. Finalmente, os capitães da indústria querem a abolição de leis trabalhistas e de quaisquer garantias para os trabalhadores e jovens. Querem a regressão para níveis de exploração do trabalho verificados durante a Revolução Industrial e denunciados por Karl Marx e Friedrich Engels.

O presidente estadunidense Barack Obama foi o maior impulsionador do processo de negociação dos acordos. Trata-se, para ele – e para sua fiel escudeira Hillary Clinton – de criar a moldura estrutural de um ultrabaliberalismo capaz de garantir às megacorporações a capacidade de redefinir a nova “cara” do capital após a catástrofe de 2007, da qual o sistema não se recuperou e não dá sinais de que algum dia possa fazê-lo. Para as megacorporações, torna-se, mais do que nunca, imperioso derrubar quaisquer obstáculos legais, jurídicos e políticos à lógica da acumulação desenfreada – a mesma que faz com que as 62 famílias mais ricas do planeta tenham tanto dinheiro quanto a metade mais pobre da humanidade.
Desse ponto de vista, há pelo menos uma grande diferença entre o TPP e o Tafta: no primeiro caso, as negociações são feitas entre os Estados Unidos e países que estão na periferia do sistema, exceto pelo Japão, ao passo que no segundo as cartas são jogadas por economias centrais, incluindo Alemanha, França e Grã-Bretanha (agora como potência separada da União Europeia). O maior equilíbrio entre as forças faz com que a conclusão de acordos seja muito mais trabalhosa e difícil no caso do Tafta, como mostra, por exemplo, o conflito de interesses entre os produtores rurais alemães e franceses, de um lado, e os estadunidenses, de outro.

Capítulo Onze

Apesar de as negociações do TPP e Tafta transcorrerem em ambientes secretos – o que, por si só, já é um absurdo –, os “vazamentos” via WikiLeaks e a prática no âmbito de outros acordos já dão uma boa ideia do que se pode esperar. Apenas a título de mero exemplo, basta considerar os efeitos do sinistro Capítulo onze do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, lançado em 1994, agregando Estados Unidos, Canadá e México), analisado pela ativista canadense Maude Barlow:

“É um capítulo que permite a uma corporação processar um governo de outro país. O Canadá, por exemplo, proibiu a Esso (estadunidense) de usar determinada toxina na gasolina, com o argumento de que era tóxica para as crianças. Se a gasolina fosse feita por empresa canadense, a proibição teria valido. Mas, pelo acordo do Nafta, a Esso, uma empresa estrangeira, pode processar o país e pedir indenização, sob a alegação de que os seus lucros foram afetados por mudanças na lei. A Esso processou o Canadá. O governo não só voltou atrás como deu US$ 20 milhões para a empresa e escreveu uma carta pedindo desculpas.”

O caso do México, também integrante do Nafta, onde o recurso ao Capítulo onze tornou-se rotina, é ainda muito mais trágico. Duas décadas após a adesão à aliança, todos os resultados são desastrosos para os trabalhadores. De acordo com os dados coligidos pelo CEPR (Center for Economic and Policy Research), o México ocupava o 18º lugar, entre vinte países da América Latina no que tange ao crescimento do PIB real per capita (PPC). Nas duas décadas, entre 1994 e 2014, o crescimento do PPC foi de 18,6%, isto é, cerca de metade da taxa de crescimento médio alcançada pelo resto da América Latina. A taxa de pobreza do México, em 2012, de 52,3%, era quase idêntica a de 1994, ao passo que o salário real (ajustado pela inflação) aumentou apenas 2,3%, ao longo de dezoito anos.

Nafta destruiu o emprego agrícola e a agricultura familiar mexicana, graças à política de importação do milho e de produtos subsidiados dos Estados Unidos. Entre 1991-2007, houve uma perda líquida de 1,9 milhão de postos de trabalho no campo. Como consequência, aumentou em 79% a taxa de emigração para os Estados Unidos. O número de filhos de mexicanos nascidos no país vizinho mais do que duplicou, passando de 4,5 milhões em 1990 para 9,4 milhões em 2000, atingindo um pico de 12,6 milhões em 2009. Esta é a origem da atual “crise migratória”.

A cereja do bolo

A concretização do TPP e do Tafta transformaria a União Europeia e boa parte da Ásia num “imenso Nafta”, tendo os Estados Unidos como polo central de poder. 
A “cereja do bolo” desse processo é o Tisa, sigla de Acordo sobre o Comércio de Serviços, cujas negociações, também secretas, foram iniciadas em 2013, agregando inicialmente 51 países: Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, União Europeia (representando seus 28 países-membros, entre os quais a Grã-Bretanha), Hong Kong, Islândia, Israel, Japão, Liechtenstein, Ilhas Maurício, México, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Coreia do Sul, Suíça, Taiwan, Turquia e Estados Unidos, com a posterior adesão do Brasil (em junho) e, aparentemente, também da Argentina (oficialmente desmentida por sua chancelaria, em julho).


Novamente: as negociações eram e ainda são secretas. Só se tornaram conhecidas porque, em junho de 2015, houve um vazamento, via WikiLeaks, de dezessete documentos centrais, incluindo onze capítulos ainda em debate. Os signatários se comprometem a manter os termos secretos durante cinco anos, mesmo após a conclusão dos acordos. Do que se conhece até agora, o Tisa, à semelhança do previsto pelo TPP e Tafta, implicará a completa liberalização (isto é, abertura total ao processo de privatizações e entrada do capital estrangeiro) de todos os serviços, o que inclui saúde, educação, transporte aéreo e marítimo, comércio pela Internet, investimentos financeiros, fornecimento de projetos de engenharia e planos arquitetônicos, abastecimento de água e infraestrutura básica etc.

O conjunto dos itens negociados no âmbito do Tisa engloba cerca de 80% do PIB dos Estados Unidos. Também como no caso dos outros acordos, a adesão ao Tisa implica a renúncia, pelos países-membros, aos mecanismos de controle da economia nacional, com a adoção de normas inspiradas pelo Capítulo onze do Nafta, porém ainda mais draconianas. O acordo prevê, por exemplo, que se determinado setor da economia nacional for privatizado, nunca mais poderá ser reestatizado, mesmo nos casos em que o capital privado mostrar-se incapaz de substituir com eficácia o serviço público.

Claro que a adesão ao acordo terá que ser aprovada pelos parlamentos nacionais, e isso não será um processo tranquilo. Claro que haverá resistência, como ocorreu no caso da Alca. Exatamente por essa razão, a proposta de adesão não será apresentada de forma abrupta, como um raio no céu azul: os governos nacionais, até como resultado da derrota que sofreram no caso da Alca, irão gradualmente adequando suas legislações, com a adoção de “pacotes”, “planos econômicos” e medidas administrativas às concepções ultraliberalizantes que inspiram os acordos. No final do processo, o defunto já estará devidamente embalado, antes mesmo do atestado de óbito ser lavrado.

O governo Temer oferece um bom exemplo dessa estratégia. Pouco antes de proclamar a adesão do Brasil ao processo de negociações do Tisa, o governo decretou a Medida Provisória 727 (Programa de Parceria de Investimentos), que abre uma imensa avenida para um programa de privatizações sem limites, redigido em total consonância com os termos previstos pelo acordo. As propostas subsequentes de reformas da Justiça Trabalhista, da Previdência, das leis que regulamentam as ações da Petrobrás e outras, bem como a perspectiva de esvaziamento do Mercosul, agora visto como entrave ao comércio brasileiro, fazem pleno sentido quando analisadas à luz do Tisa. E mais ainda, quando se considera que a adesão do Brasil enfraquece os Brics, que, até agora, se apresenta como um polo alternativo de alianças estratégicas entre governos não submetidos ao garrote vil de Washington.

Há resistêcias, pero...

A grande marcha rumo ao superimperialismo enfrenta resistências, é claro. Nos Estados Unidos, a candidatura do senador democrata Bernie Sanders à presidência, fortemente marcada pela denúncia ao TPP, angariou o apoio militante de 8 milhões de ativistas, principalmente jovens, basicamente, os mesmos que participam dos movimentos contra a globalização do capital, como o Occupy Wall Street. Para os trabalhadores e a juventude estadunidense, a conclusão dos acordos significará mais desemprego e miséria, pois as corporações, em busca da maximização dos lucros, simplesmente deixarão o país para explorar mão de obra muito mais barata nas periferias do sistema, além de contarem com uma legislação totalmente hostil aos sindicatos e aos direitos trabalhistas.

Na atual disputa presidencial estadunidense, a aprovação ou não do TPP pelo Congresso é um dos principais divisores de águas entre os vários candidatos. É frontalmente atacado pelo candidato republicano Donald Trump, e envergonhadamente criticado até pela democrata Hillary Clinton, que desde sempre defendeu o plano como um “padrão-ouro” entre os acordos comerciais. Denunciada por Sanders como uma das arquitetas do TPP, Hillary agora faz “críticas”, em busca dos votos de milhões de trabalhadores.

Movimentos como o Podemos (Espanha) e Syriza (Grécia), ou, ainda, a resistência oferecida pelos movimentos sociais e pela grande base do Partido dos Trabalhadores no Brasil também são exemplos de articulações que, com graus distintos de combatividade, capacidade de organização e consciência de classe, expressam a vontade política de derrotar o capital.

"Os maiores obstáculos ao superimperialismo não são oriundos da esquerda, mas sim da direita xenófoba, racista e ultranacionalista. O Brexit, ruptura de Londres com a União Europeia, é apenas a parte mais visível desse processo"
Entretanto, os maiores obstáculos ao superimperialismo não são oriundos da esquerda, mas sim da direita xenófoba, racista e ultranacionalista. O Brexit, ruptura de Londres com a União Europeia, é apenas a parte mais visível desse processo, que também se manifesta com força na França (Frente Nacional de Le Pen, o partido que mais cresce nas pesquisas), na Áustria (onde o Partido da Liberdade, neonazista, perdeu a presidência do país, em maio, por uma diferença de apenas 0,6% dos votos, e conseguiu anular o pleito), na Polônia (Lei e Justiça), na Suécia (Partido Democrata), na Hungria (Fidesz e Jobbik), na Bulgária (Ataka), na Ucrânia (Svoboda).

São movimentos que refletem, de forma distorcida, o medo, os ódios e frustrações do trabalhador demitido ou o que viu o seu salário ser drasticamente reduzido, o produtor rural cuja renda mal dá para alimentar a família, o aposentado que recebe os benefícios cada vez mais tarde na vida e tem que continuar trabalhando para pagar as contas no final do mês, o provinciano que vê com desconfiança a chegada dos estrangeiros, imigrantes e refugiados “que vêm ao nosso país roubar o nosso emprego”. São os mesmos sentimentos que também produziram o “efeito Trump”, com suas promessas de deportar 11 milhões de mexicanos, construir um muro entre os dois países e banir a entrada de islâmicos.

O estado de confusão, perplexidade e paralisação que hoje afeta a esquerda mundial – claro que em situações diferenciadas em cada país – agrava a sensação de impotência e falta de perspectivas para uma humanidade dividida entre duas perspectivas desastrosas: a do superimperialismo, de um lado, e o esgarçamento do que ainda resta da comunidade das nações, com as multiplicações de grandes e pequenos Adolfs, de outro. Em síntese, o prognóstico feito por Marx, socialismo ou barbárie, torna-se um diagnóstico. No Brasil, o governo golpista de Temer soma-se, alegremente, aos protagonistas do desastre, ao passo que a esquerda, apeada do Planalto, parece não se ter ainda dado conta da gravidade da crise. Os ataques aos trabalhadores e jovens, já anunciados, estão apenas no começo.

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