Eleições brasileiras, tentativa de homicídio à vice-presidenta argentina e guerras
híbridas: o que tem a ver?
Isabela da Silva
2022 pode ser considerado um ano ímpar na história do Brasil, mas também no mundo.
Vivemos uma janela histórica sem precedentes. O clima de tensão em âmbito internacional
tornou-se mais evidente a partir de guerras declaradas, como ocorre na Ucrânia, mas
também em Taiwan.
De súbito, é possível reconhecer estarmos diante da reconfiguração da hegemonia mundial:
de um lado, observados os Estados Unidos ávidos por deter o domínio russo sobre a
Ucrânia e ampliar influência sobre o território que concentra os principais gasodutos rumo ao
continente europeu e pela maior aproximação com Taiwan, maior produtor de chips do
mundo, alegando tratar-se de uma disputa por soberania por meio da autodeterminação dos
povos; e, de outro, a Rússia e a China, símbolos da resistência ao capitalismo, seja pelo
histórico da URSS, seja pelo desenvolvimento da potência comunista chinesa, que lutam
pela manutenção de suas influências regionais e realizam a defesa de zonas estratégicas
que contenham a contra-ofensiva neoliberal no oriente.
É notório que o crescimento econômico da China, aliada à expertise no desenvolvimento de
chips de Taiwan, assusta a hegemonia dos EUA, que já não detém o maior PIB do mundo e
que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, se consolidou em uma posição confortável
de influência sobre o mundo.
A globalização, no entanto, teve um custo. A nova ordem
multipolar, juntamente à Revolução Tecnológica e a Indústria 4.0, abriu margem à ascensão
de novos sujeitos ao tabuleiro internacional.
A China que, desde a Revolução Cultural, construía o “socialismo com características
chinesas”, por meio de uma plataforma econômica sólida com investimento em
infraestrutura, nas zonas econômicas especiais (ZEEs), aportes bilionários na educação e
também com pesquisa e desenvolvimento (P&D), além de trabalhar para a redução na
miséria (culminando na retirada de mais de 850 milhões de chineses da pobreza e, portanto,
ampliando a mobilidade social de forma inédita no país), hoje tem sido capaz de impactar o
comércio internacional e a estabilidade de quase um século. Ainda, tem sido crescente o
investimento em aeronaves e tecnologia espacial, além do investimento militar, posto que o
próprio Estado Chinês já admitiu ter tecnologia para fabricar bombas de nêutrons,
promovendo expansão de sua capacidade nuclear.
Um adversário que se coloca cada vez
mais à altura… e potencialmente à superação da correlação de forças atual.
É nesse contexto que a China vem realizando diversas movimentações, potencializando
relações multilaterais em todos os continentes: desde a “Chináfrica”, megatendência criada
para contrapor-se ao Vale do Silício e à Wall Street por meio da comercialização de recursos
minerais, contratação de mão-de-obra a baixo custo, mas também espaço onde pudesse
investir capital (em infraestrutura, manufatura, gestão de mão-de-obra e treinamento
técnico), além de investir na modernização e no comércio interno do continente africano; até
relações já conhecidas na América do Sul, como o banco BRICS (iniciativa que reúne Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul como forma de proporcionar alternativas ao FMI e a
negociação de dívidas a juros mais baixos, mais interessantes aos países que têm relação
com tais Estados), e também em investimentos em infraestrutura e aproximação com o
câmbio chinês, como observado em relação à Argentina em fevereiro de 2022.
É evidente que tais movimentações não ocorreriam sem resistências e embargos. Taiwan é
apenas uma delas. No entanto, mais recentemente, a América do Sul tem sofrido investidas
sorrateiras, as quais passarei a discutir.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que a América Latina como um todo mantém
consequências graves do violento processo de colonização e exploração sofrido por mais de
300 anos. Sentimos na pele o que é viver sob a dominação da epistemologia eurocêntrica e,
especialmente no Brasil, somos incapazes de reconhecer o racismo estrutural, a existência
de um Estado democrático de direito apenas liberal e a necessidade urgente de uma
revolução cultural, intelectual e política em nosso país. Mas em todo o continente
latino-americano sofremos com a falta de reconhecimento de nossas veias abertas, como
diria Eduardo Galeano, e também de nosso sangue latino capaz de nos tornar Pátria
Grande, como ensina Darcy Ribeiro.
Em segundo lugar, a experiência mais recente desta década nos revelou uma fissura de
esperança ao consolidar vitórias eleitorais importantes à esquerda e ao campo progressista.
Observamos na América Latina uma composição inédita com a simultaneidade dos
governos de Andrés López Obrador no México, Miguel Díaz-Canel em Cuba, Xiomara
Castro em Honduras, Daniel Ortega na Nicarágua, Luis Arce na Bolívia, Nicolás Maduro na
Venezuela, Pedro Castillo no Peru, Gustavo Petro na Colômbia (primeiro presidente de
esquerda eleito), Alberto Fernández na Argentina e Gabriel Boric no Chile.
Em terceiro lugar, o Brasil não poderia ficar de fora.
As eleições de 2022 selarão uma importantíssima configuração à disputa inserida na nova
ordem mundial. De um lado, observamos Bolsonaro, candidato à reeleição, representante do
modelo neoliberal: privatista, responsável por mais de 650 mil mortes no Brasil durante a
Covid-19 e articular do fim dos programas “Bolsa Família” e “Minha Casa Minha Vida” para
substituí-los pelo Auxílio Brasil e Casa Verde e Amarela, além de ser um disputador de
símbolos e mentes, utilizando-se do mote nazista “Deus, pátria e família” e que, perto das
eleições, vem reduzindo a inflação, o desemprego para cerca de 9,1% no segundo semestre
de 2022, além do preço dos alimentos e do combustível.
De outro lado, observamos Lula,
ex-presidente com maior aprovação da história do Brasil, responsável por dezenas de
programas como Fome Zero, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Luz Para Todos,
Cisternas, SiSU, Fies sem fiador, Reuni, SAMU, Lei Maria da Penha, Primeiro Emprego,
Farmácia Popular, Brasil Sorridente, entre outros. Candidato alinhado com o campo
progressista e que vem com uma única promessa de campanha: retomar o Brasil para os
brasileiros. E, com isso, quer dizer trazer a dignidade para o povo, que apenas um governo
sério, articulado com os maiores programas sociais deste país já viu: “seu jardineiro viu, sua
empregada doméstica viu”, e é isso que importa.
Entretanto, a dificuldade de Lula de assumir uma postura que não seja apenas a segurança
de se manter como primeiro colocado e disputar o segundo turno tem sido uma
oportunidade aos reacionários de fortalecer a campanha de Bolsonaro.
Um segundo turno
no Brasil será perigoso: pelas fake news, pela dificuldade de convencimento dos mais
pobres (especialmente os que recebem 600 reais de auxílio), pelo fisiologismo do centrão e
do empresariado (que embora parte tenha acenado para Lula com a aliança com Alckmin,
sempre pode voltar atrás e pender para o lado que estiver com mais chance de vitória), além
da falta de energia demonstrada especialmente no último debate presidencial da Band, em
que foi escolhida a manutenção de uma postura equilibrada, porém recuada.
Desnecessário dizer que não existe terceira via: os que ainda pensam em votar em Ciro
Gomes, Simone Tebet, ou qualquer outro candidato (ainda que de esquerda, como Sofia
Manzano, Leonardo Péricles e Vera Lúcia) terá apenas a função de permitir que Bolsonaro
chegue mais forte para o segundo turno. Isso porque, se os votos desde já se
concentrassem em Lula, este teria vitória já em primeiro turno. Ciro é linha auxiliar de
Bolsonaro, foi em 2018 e continua sendo em 2022: é o cara que se coloca como “anti-Lula”
e “anti-PT”, mas deslancha dos programas de governo realizados no nordeste; que se
coloca como centro, mas faz questão de falar para empresários que não governo para
pobre. Simone é a feminista liberal que “fala bonito” e vota contra o povo, pelo
desmatamento, contra indígenas, pelo golpe contra Dilma e contra as mulheres.
E o que tudo isso tem a ver com a tentativa de homicídio sofrida por Cristina Kirchner na
Argentina no dia de ontem?
Cristina é a maior líder peronista da Argentina, atual vice-presidenta juntamente com Alberto
Fernández, ex-presidenta do país (de 2007 a 2015) e companheira de Néstor Kirchner
(ex-presidente argentino de 2003 a 2007). Liderança política que carrega o legado do
“kirchnerismo”, no qual, durante seus governos, o país foi marcado pelo crescimento
econômico, aumento de gastos públicos e investidas em mecanismos de distribuição de
renda.
Há algumas semanas, o país tem sido atravessado pelas investidas neoliberais: Cristina tem
sido perseguida politicamente com denúncias de corrupção e táticas de lawfare (esquema
conhecido no Brasil, pois já vimos de perto com a prisão ilegal do presidente Lula em 2018).
Além de haver ameaças sobre a abertura de um processo de impeachment, numa tentativa
de desestabilizar o governo de dentro e fora das instituições.
A tentativa de homicídio ocorrida na última semana, realizada por um brasileiro, reflete uma ação irracional de
ódio a um governo de esquerda. Um atentado contra a democracia por parte de alguém que
sabe as implicações de um golpe! A escalada da extrema-direita, da intolerância e da
violência é tática política utilizada para causar comoção irracional em parcela mais
extremista de um eleitorado ignorante, mas que tem consequências gravíssimas para o
resto da população - e também do mundo.
Não querem matar Cristina, querem matar a maior líder de esquerda da Argentina. Não
querem derrotar Lula, querem apagar o maior líder progressista da história do Brasil!
Por isso, não basta amor para enfrentar o ódio! Precisamos eleger Lula porque a política
exige projetos de enfrentamento! Porque essas eleições, após um ciclo inédito de vitórias de
esquerda e do campo progressista na América Latina podem selar o futuro da
extrema-direita e seu avanço. Porque a janela histórica na qual vivemos hoje poderá não
resistir por mais muito tempo.
O momento é agora!