Passados 6 meses
desde o início da pandemia do COVID-19, a situação nos Estados Unidos e no
Brasil, os dois países mais afetados, continua a deteriorar-se. Frente a
incapacidade de gerir a crise, Trump e Bolsonaro investem pesadamente na
desinformação. Minimizam o perigo da epidemia (gripezinha), propagam
medicamentos sem embasamento científico (cloroquina) e criam a falsa dicotomia
de que ou se restaura a normalidade, ou as consequências para a economia serão
pior que a epidemia, ignorando os prejuízos econômicos do abre/fecha que o fim
prematuro do isolamento social causou e causará. Essa desinformação cuidadosamente
planejada cria ambiente propício para o aparecimentos de mitos que encontram
terreno fértil em uma sociedade exausta e descrente. Vejamos alguns deles.
Mito: A
mortalidade relacionada ao COVID tem diminuído
Tem-se espalhado
na internet o conceito de que o vírus teria mutado para uma forma mais
contagiosa e menos agressiva, o que explicaria maior número de casos com menor
número de mortes. Embora saibamos que o material genético do COVID mute
frequentemente, não há evidência alguma de que ele tenha se tornado menos
perigoso. O senso de diminuição da mortalidade vem dos Estados Unidos, onde os
casos aumentam há mais de um mês mas a mortalidade vinha mantendo-se ao redor
de 400-600 mortes por dia. Dois fatos explicam isso. Em primeiro lugar, ao
quebrar-se o isolamento social os jovens ocuparam as ruas muito mais que os mais velhos A mortalidade em
jovens é menor, mas eles transmitem para os mais velhos. Portanto precisou-se
de dois ciclos de transmissão (jovem para jovem e depois jovem para outros) com
período “dobrado” entre aumento de casos e aumento de mortes (dois periodos
contagiosos). Segundo, o primeiro grande pico de mortalidade atingiu poucos
estados (Nova York, Nova Jersey) que ficaram rapidamente sobrecarregados. O
atual pico atinge ao redor de 20 estados americanos, que somente agoram tem
suas UTIs sobrecarregadas. Fenômeno semelhante verifica-se no Brasil.
Fato: a mortalidade nos EUA voltou a
subir, como esperado, e aproxima-se novamente de 1000 por dia, com projeção
para que, ao final de julho, aumente para cerca de 100 mil casos novos diários.
O vírus continua tão mortal como no começo da epidemia.
Mito: Vale
a pena assumir o risco, pois a mortalidade é de apenas 1-2%.
A infecção pelo
COVID é erroneamente compreendida como doença pulmonar. É na verdade uma doença
sistêmica, com profundo comprometimento vascular (tromboses, isquemia) e também
pulmonar. É uma falácia e profundamente enganosa enxergarmos o resultado final
apenas como morrer ou sobreviver (2% de chance de morrer e 98% de sobreviver).
Muitos dos que não morrem, incluindo os jovens, desenvolvem sequelas. Perdas
pulmonares possivelmente irreversíveis mas as vezes não detectadas, ataques
isquêmicos e amputações, entre outros, acontecem mais frequentemente que a
morte, e não são capturadas ou temidas quando olhamos apenas a mortalidade. A síndrome
da fadiga crônica pós COVID tem sido muito reportada, especialmente em jovens.
Indivíduos sentem-se como tendo uma gripe que não passa ou melhora, e descrevem
embotamento de sentidos, ou “ neblina mental” que persiste após meses. Ainda, muitos
sobrevivem após semanas na UTI e em ventiladores, com consequencias emocionais.
Transplantes duplo de pulmão e técnicas heróicas tem salvado outros. Não
morrem, mas ficam com as marcas.
Fato: Devemos temer não apenas a
morte, mas as sequelas e complicações crônicas.
Mito: Melhor
pegar logo e ficar imune.
E quem garante
que a imunidade será duradoura? Como a pandemia só tem 4-5 meses, ninguém está
curado por mais que esses mesmo meses. Anthony Fauci, grande imunologista americano
que, por demais sensato é consistentemente ignorado por Trump, ao rever os
dados declarou: “Podemos dizer que aqueles que se recuperam da infecção por
COVID tem grande chance de estar protegido por reinfecção por um período de
tempo finito, que pode variar de pessoa para pessoa. Nós não sabemos
quão longo será esse período finito, um ano, muitos anos, ou alguns meses apenas.”
Estudo publicado na prestigiosa revista Nature sugere que 50% dos indivíduos
portadores assintomáticos perderam a imunidade em 3 meses apenas! Um segundo
estudo mostro que, embora entre 83% e
93% dos novaiorquinos que se recuperaram do COVID tinham anticorpos
neutralizantes contra o vírus, a imunidade era modesta em 56% deles. Ainda
pior: não sabemos as consequencias de uma segunda infeção no mesmo indivíduo.
Continuaria modesta? Ou seria mais grave, como numa segunda infecção por dengue?
Fato: A epidemia é ainda muito
recente para sabermos sobre a imunização prolongada e consequencias de
multiplas infecções.
Mito: Após
a aprovação de uma vacina, volta-se a normalidade
Com 120 vacinas
em desenvolvimento e algumas claramente demonstrando potencial, há razão para
otimismo. Portanto, aonde está o mito? Em primeiro lugar, não há garantia
alguma que a promessa da vacina se concretizará. Quantos artigos científicos
mostraram o progresso para o desenvolvimento de uma vacina para a AIDS, outra
virose, que nunca se concretizou? Quantas décadas foram necessárias para o
desenvolvimento da imperfeita vacina contra a gripe? Ainda, se a imunidade
secundária ao COVID for transiente, qual a duração da imunidade gerada pela
vacina? Meses? Anos? Sou otimista quanto ao sucesso desse desenvolvimento, o
mito consiste em achar que acontecerá por certo, e que será efetivo com
certeza.
Fato: As chances de uma vacina
eficaz e que provê proteção temporária são boas mas não constituem uma certeza.
Mito: É
seguro frequentar ambientes fechados desde que mantenhamos distância uns dos
outros
Originalmente
achava-se que o COVID liberado pela saliva, por exemplo ao falarmos, não ficava
em suspensão aérea (aerossol), mas rapidamente depositava-se, por gravidade, no
chão ou em objetos. Já sabemos que não é assim, e que o vírus, em ambientes
fechados, pode permanecer em suspensão aérea por mais de 15 minutos. Imagine um
bar, com muitas pessoas falando e se movendo. Essa micropulverização da saliva fica
aerossolizada no ar, e as pessoas, ao se moverem, entram em contato com essas
pequenas gotículas de saliva de várias outras pessoas, o que cria oportunidade
para os super-transmissores. Não coincidentemente eles foram identificados em
bares, igrejas, casamentos e funerais. Não em eventos ao céu aberto.
Fato: O distanciamento social é
protetor em ambientes abertos, mas não em ambientes fechados. Em ambiente
aberto o vento impede os microaerossois, e a distância proteje. Em ambientes
fechados a distância não protege. Acabamos invadindo o “espaço aéreo salivar”
de muitas pessoas.
Mito: Como
crianças não desenvolvem a doença, é seguro abrir as escolas
É fato que
crianças pré-adolescentes tem chance muito menor de adquirir a doença, portanto
há um argumento a ser feito de que devemos reabrir as escolas elementares. Mas
essas crianças ainda podem transmitir a doença por contato (mãos), ou serem
assintomáticas e transmiti-la por saliva. E desde quando escolas tem apenas
crianças? E os pais, que as transportam?
Professores, funcionários, motoristas, guardas? Não entram na equação? Ainda,
cerca de 100 crianças em Nova Iorque desenvolveram a grave sindrome
inflamatória multissistêmica apos COVID, ou seja, existe risco para crianças
também.
Fato: Muito embora as crianças sejam
mais protegidas, não o são totalmente e os adultos que interagem com elas estão
sob risco. Precisa-se pensar com mais profundidade no melhor curso de ação que
atenda as necessidades da criança, mas não simplifique o problema.
Mito: Se
tomar ivermectina, nitazoxamida, hidroxicloroquina, estarei protegido
Boa sorte. Mais
uma vez o Brasil descobre a quadratura da roda. E pensar que o mundo inteiro perdeu essa
oportunidade...
Mito: Com
tanta informação, não sabemos quem escutar
Hora de pararmos
de fingir. Não precisa muita força para ver quem é mal intencionado nessa
história. Ou fazemos nossa parte, nos informando, não repassando má informação,
ficando em casa, usando máscara, mantendo isolamento social, ou devemos ser
considerados parte do problema. A epidemia é grave, será longa, demandará
esforços e resistência.
Marcelo
Eduardo Bigal
Dr. Marcelo
Bigal é neurologista, com doutorado em neurosciências pela USP. Possui 320
artigos publicados em revistas científicas internacionais, e publicou 5 livros
médicos. É CEO Cia de Biotecnologia, com sede em Boston, dedicada
ao desenvolvimento médico na área de imunologia.