Imagine um mundo governado
por uma coalizão de algumas dezenas de megacorporações com poder para impor
suas próprias regras sobre fluxos de bens, pessoas e capitais ao redor do
planeta e definir as normas para a produção e exploração de produtos fundamentais
à vida e às sociedades. Nesse mundo, fica vetada qualquer lei, aprovada por
qualquer parlamento, que implique redução nos lucros das corporações (por
exemplo: restrições ao uso de substâncias químicas para a exploração de
matérias-primas; limitação da jornada de trabalho; medidas de proteção ao
trabalhador no exercício de suas funções etc.).
É o “superimperialismo”, o
mundo dos sonhos do capital. Não se trata, aqui, de uma “distopia”, de alguma
obra de ficção sobre como funcionará o planeta, no futuro. Não. Esse mundo já é
real, embora ainda não plenamente realizado. Está em processo acelerado de
construção. Seus contornos são visíveis, e sua estrutura é anunciada por uma
sopa de letrinhas: TPP, Tafta e Tisa, acordos de total liberalização de
comércio e de serviços que, juntos, somam cerca de 80% das trocas mundiais.
Comparado com aquilo que os acordos preconizam, a Alca – projeto que assombrou
a América Latina na primeira década do século, mas derrotado pelo movimento
hemisférico de resistência – soa mais como uma brincadeira de criança.
A péssima notícia é a de
que a resistência está enfraquecida pela crise da própria esquerda. E, em
contrapartida, o Brasil de Michel Temer e José Serra aderiu ao Tisa, em junho,
embarcando com tudo rumo à catástrofe.
"Sopa de
letrinhas" mortal
TPP é a sigla, em inglês,
de Parceria Transpacífico. É uma expansão do Acordo de Parceria Econômica
Estratégica Transpacífico, inicialmente assinado por Brunei, Chile, Nova
Zelândia e Singapura, em 2005. A partir de 2008, Austrália, Canadá, Japão,
Malásia, México, Peru, Estados Unidos e Vietnã também aderiram ao processo de
negociações, cujo objetivo é extinguir todos os obstáculos ao comércio entre os
signatários (traduzindo: trata-se de permitir que as corporações adotem
práticas que aumentem ao máximo os seus lucros, sem qualquer inibição de
natureza jurídica, institucional, social ou política). A etapa de formulação
dos termos do acordo, que terão que ser submetidos aos parlamentos dos
países-membros, para ratificação, foi concluída em 5 de outubro de 2015.
Tafta é a sigla de Acordo
de Livre Comércio Transatlântico, arquitetado por bancos estadunidenses e
europeus, as corporações vinculadas ao agronegócio e as maiores empresas dos
dois lados do Atlântico. As negociações, secretas, foram iniciadas em julho de
2013.Como no caso do TPP, os bancos pressionam pela total desregulamentação de
todas as práticas especulativas, incluindo aquelas que visam impedir que as
instituições financeiras joguem com o dinheiro depositado por milhões de trabalhadores
– práticas que estão na base da catástrofe que eclodiu em 2007.
"Os capitães da
indústria querem a abolição de leis trabalhistas e de quaisquer garantias para
os trabalhadores e jovens. Querem a regressão para níveis de exploração do
trabalho verificados durante a Revolução Industrial e denunciados por Karl Marx
e Friedrich Engels"
O agronegócio exige o fim
das medidas de proteção ambiental e segurança alimentar, transformando o
planeta num imenso campo de experimentos destinados a aumentar os lucros, mesmo
que isso implique acelerar o desastre ambiental e aumentar a fome e a
subnutrição no mundo. Finalmente, os capitães da indústria querem a abolição de
leis trabalhistas e de quaisquer garantias para os trabalhadores e jovens.
Querem a regressão para níveis de exploração do trabalho verificados durante a
Revolução Industrial e denunciados por Karl Marx e Friedrich Engels.
O presidente estadunidense
Barack Obama foi o maior impulsionador do processo de negociação dos acordos.
Trata-se, para ele – e para sua fiel escudeira Hillary Clinton – de criar a
moldura estrutural de um ultrabaliberalismo capaz de garantir às
megacorporações a capacidade de redefinir a nova “cara” do capital após a
catástrofe de 2007, da qual o sistema não se recuperou e não dá sinais de que
algum dia possa fazê-lo. Para as megacorporações, torna-se, mais do que nunca,
imperioso derrubar quaisquer obstáculos legais, jurídicos e políticos à lógica
da acumulação desenfreada – a mesma que faz com que as 62 famílias mais ricas
do planeta tenham tanto dinheiro quanto a metade mais pobre da humanidade.
Desse ponto de vista, há
pelo menos uma grande diferença entre o TPP e o Tafta: no primeiro caso, as
negociações são feitas entre os Estados Unidos e países que estão na periferia
do sistema, exceto pelo Japão, ao passo que no segundo as cartas são jogadas
por economias centrais, incluindo Alemanha, França e Grã-Bretanha (agora como
potência separada da União Europeia). O maior equilíbrio entre as forças faz
com que a conclusão de acordos seja muito mais trabalhosa e difícil no caso do
Tafta, como mostra, por exemplo, o conflito de interesses entre os produtores
rurais alemães e franceses, de um lado, e os estadunidenses, de outro.
Capítulo Onze
Apesar de as negociações
do TPP e Tafta transcorrerem em ambientes secretos – o que, por si só, já é um
absurdo –, os “vazamentos” via WikiLeaks e a prática no âmbito de outros
acordos já dão uma boa ideia do que se pode esperar. Apenas a título de mero
exemplo, basta considerar os efeitos do sinistro Capítulo onze do Nafta (Acordo
de Livre Comércio da América do Norte, lançado em 1994, agregando Estados
Unidos, Canadá e México), analisado pela ativista canadense Maude Barlow:
“É um capítulo que permite
a uma corporação processar um governo de outro país. O Canadá, por exemplo,
proibiu a Esso (estadunidense) de usar determinada toxina na gasolina, com o
argumento de que era tóxica para as crianças. Se a gasolina fosse feita por
empresa canadense, a proibição teria valido. Mas, pelo acordo do Nafta, a Esso,
uma empresa estrangeira, pode processar o país e pedir indenização, sob a
alegação de que os seus lucros foram afetados por mudanças na lei. A Esso
processou o Canadá. O governo não só voltou atrás como deu US$ 20 milhões para
a empresa e escreveu uma carta pedindo desculpas.”
O caso do México, também
integrante do Nafta, onde o recurso ao Capítulo onze tornou-se rotina, é ainda
muito mais trágico. Duas décadas após a adesão à aliança, todos os resultados
são desastrosos para os trabalhadores. De acordo com os dados coligidos pelo
CEPR (Center for Economic and Policy Research), o México ocupava o 18º lugar,
entre vinte países da América Latina no que tange ao crescimento do PIB real
per capita (PPC). Nas duas décadas, entre 1994 e 2014, o crescimento do PPC foi
de 18,6%, isto é, cerca de metade da taxa de crescimento médio alcançada pelo
resto da América Latina. A taxa de pobreza do México, em 2012, de 52,3%, era
quase idêntica a de 1994, ao passo que o salário real (ajustado pela inflação)
aumentou apenas 2,3%, ao longo de dezoito anos.
O Nafta destruiu o emprego
agrícola e a agricultura familiar mexicana, graças à política de importação do
milho e de produtos subsidiados dos Estados Unidos. Entre 1991-2007, houve uma
perda líquida de 1,9 milhão de postos de trabalho no campo. Como consequência,
aumentou em 79% a taxa de emigração para os Estados Unidos. O número de filhos
de mexicanos nascidos no país vizinho mais do que duplicou, passando de 4,5
milhões em 1990 para 9,4 milhões em 2000, atingindo um pico de 12,6 milhões em
2009. Esta é a origem da atual “crise migratória”.
A cereja do bolo
A concretização do TPP e
do Tafta transformaria a União Europeia e boa parte da Ásia num “imenso Nafta”,
tendo os Estados Unidos como polo central de poder.
A “cereja do bolo” desse
processo é o Tisa, sigla de Acordo sobre o Comércio de Serviços, cujas negociações,
também secretas, foram iniciadas em 2013, agregando inicialmente 51 países:
Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, União Europeia (representando
seus 28 países-membros, entre os quais a Grã-Bretanha), Hong Kong, Islândia,
Israel, Japão, Liechtenstein, Ilhas Maurício, México, Nova Zelândia, Noruega,
Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Coreia do Sul, Suíça, Taiwan, Turquia e
Estados Unidos, com a posterior adesão do Brasil (em junho) e, aparentemente,
também da Argentina (oficialmente desmentida por sua chancelaria, em julho).
Novamente: as negociações
eram e ainda são secretas. Só se tornaram conhecidas porque, em junho de 2015,
houve um vazamento, via WikiLeaks, de dezessete documentos centrais, incluindo
onze capítulos ainda em debate. Os signatários se comprometem a manter os
termos secretos durante cinco anos, mesmo após a conclusão dos acordos. Do que
se conhece até agora, o Tisa, à semelhança do previsto pelo TPP e Tafta,
implicará a completa liberalização (isto é, abertura total ao processo de
privatizações e entrada do capital estrangeiro) de todos os serviços, o que
inclui saúde, educação, transporte aéreo e marítimo, comércio pela Internet,
investimentos financeiros, fornecimento de projetos de engenharia e planos
arquitetônicos, abastecimento de água e infraestrutura básica etc.
O conjunto dos itens negociados no âmbito do Tisa
engloba cerca de 80% do PIB dos Estados Unidos. Também como no caso dos outros
acordos, a adesão ao Tisa implica a renúncia, pelos países-membros, aos
mecanismos de controle da economia nacional, com a adoção de normas inspiradas
pelo Capítulo onze do Nafta, porém ainda mais draconianas. O acordo prevê, por
exemplo, que se determinado setor da economia nacional for privatizado, nunca
mais poderá ser reestatizado, mesmo nos casos em que o capital privado mostrar-se
incapaz de substituir com eficácia o serviço público.
Claro que a adesão ao acordo terá que ser aprovada
pelos parlamentos nacionais, e isso não será um processo tranquilo. Claro que
haverá resistência, como ocorreu no caso da Alca. Exatamente por essa razão, a
proposta de adesão não será apresentada de forma abrupta, como um raio no céu
azul: os governos nacionais, até como resultado da derrota que sofreram no caso
da Alca, irão gradualmente adequando suas legislações, com a adoção de
“pacotes”, “planos econômicos” e medidas administrativas às concepções
ultraliberalizantes que inspiram os acordos. No final do processo, o defunto já
estará devidamente embalado, antes mesmo do atestado de óbito ser lavrado.
O governo Temer oferece um bom exemplo dessa
estratégia. Pouco antes de proclamar a adesão do Brasil ao processo de
negociações do Tisa, o governo decretou a Medida Provisória 727 (Programa de
Parceria de Investimentos), que abre uma imensa avenida para um programa de
privatizações sem limites, redigido em total consonância com os termos
previstos pelo acordo. As propostas subsequentes de reformas da Justiça
Trabalhista, da Previdência, das leis que regulamentam as ações da Petrobrás e
outras, bem como a perspectiva de esvaziamento do Mercosul, agora visto como
entrave ao comércio brasileiro, fazem pleno sentido quando analisadas à luz do
Tisa. E mais ainda, quando se considera que a adesão do Brasil enfraquece os
Brics, que, até agora, se apresenta como um polo alternativo de alianças
estratégicas entre governos não submetidos ao garrote vil de Washington.
Há resistêcias, pero...
A grande marcha rumo ao superimperialismo enfrenta
resistências, é claro. Nos Estados Unidos, a candidatura do senador democrata
Bernie Sanders à presidência, fortemente marcada pela denúncia ao TPP, angariou
o apoio militante de 8 milhões de ativistas, principalmente jovens,
basicamente, os mesmos que participam dos movimentos contra a globalização do
capital, como o Occupy Wall Street. Para os trabalhadores e a juventude estadunidense,
a conclusão dos acordos significará mais desemprego e miséria, pois as
corporações, em busca da maximização dos lucros, simplesmente deixarão o país
para explorar mão de obra muito mais barata nas periferias do sistema, além de
contarem com uma legislação totalmente hostil aos sindicatos e aos direitos
trabalhistas.
Na atual disputa presidencial estadunidense, a
aprovação ou não do TPP pelo Congresso é um dos principais divisores de águas
entre os vários candidatos. É frontalmente atacado pelo candidato republicano
Donald Trump, e envergonhadamente criticado até pela democrata Hillary Clinton,
que desde sempre defendeu o plano como um “padrão-ouro” entre os acordos
comerciais. Denunciada por Sanders como uma das arquitetas do TPP, Hillary agora
faz “críticas”, em busca dos votos de milhões de trabalhadores.
Movimentos como o Podemos (Espanha) e Syriza (Grécia),
ou, ainda, a resistência oferecida pelos movimentos sociais e pela grande base
do Partido dos Trabalhadores no Brasil também são exemplos de articulações que,
com graus distintos de combatividade, capacidade de organização e consciência
de classe, expressam a vontade política de derrotar o capital.
"Os maiores obstáculos ao superimperialismo não
são oriundos da esquerda, mas sim da direita xenófoba, racista e
ultranacionalista. O Brexit, ruptura de Londres com a União Europeia, é apenas
a parte mais visível desse processo"
Entretanto, os maiores obstáculos ao superimperialismo
não são oriundos da esquerda, mas sim da direita xenófoba, racista e
ultranacionalista. O Brexit, ruptura de Londres com a União Europeia, é apenas
a parte mais visível desse processo, que também se manifesta com força na
França (Frente Nacional de Le Pen, o partido que mais cresce nas pesquisas), na
Áustria (onde o Partido da Liberdade, neonazista, perdeu a presidência do país,
em maio, por uma diferença de apenas 0,6% dos votos, e conseguiu anular o
pleito), na Polônia (Lei e Justiça), na Suécia (Partido Democrata), na Hungria
(Fidesz e Jobbik), na Bulgária (Ataka), na Ucrânia (Svoboda).
São movimentos que refletem, de forma distorcida, o
medo, os ódios e frustrações do trabalhador demitido ou o que viu o seu salário
ser drasticamente reduzido, o produtor rural cuja renda mal dá para alimentar a
família, o aposentado que recebe os benefícios cada vez mais tarde na vida e
tem que continuar trabalhando para pagar as contas no final do mês, o
provinciano que vê com desconfiança a chegada dos estrangeiros, imigrantes e
refugiados “que vêm ao nosso país roubar o nosso emprego”. São os mesmos
sentimentos que também produziram o “efeito Trump”, com suas promessas de
deportar 11 milhões de mexicanos, construir um muro entre os dois países e
banir a entrada de islâmicos.
O estado de confusão, perplexidade e paralisação que
hoje afeta a esquerda mundial – claro que em situações diferenciadas em cada
país – agrava a sensação de impotência e falta de perspectivas para uma
humanidade dividida entre duas perspectivas desastrosas: a do
superimperialismo, de um lado, e o esgarçamento do que ainda resta da
comunidade das nações, com as multiplicações de grandes e pequenos Adolfs, de
outro. Em síntese, o prognóstico feito por Marx, socialismo ou barbárie,
torna-se um diagnóstico. No Brasil, o governo golpista de Temer soma-se,
alegremente, aos protagonistas do desastre, ao passo que a esquerda, apeada do
Planalto, parece não se ter ainda dado conta da gravidade da crise. Os ataques
aos trabalhadores e jovens, já anunciados, estão apenas no começo.
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