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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Sobre o artigo defendendo "Racismo Reverso", algumas constatações da minha pesquisa - Leonardo Sacramento

"A ascensão dos movimentos sociais negros (...)
instaurou a crise do mulatismo" - Leonardo Sacramento


1) Risério faz parte de movimentos identitários brancos que fomentam a miscigenação. A miscigenação é entendida para esses grupos como o meio da formação do brasileiro médio, que seria branco porque teria passado por um amplo processo de embranquecimento ao longo de gerações.

2) Esse grupo se reestrutura entre 2007 e 2008, quando foi aprovada a Lei de Cotas e a Lei 10.639 (História da África e dos afro-brasileiros). Esse grupo promoveu o lançamento de alguns livros. Destacam-se uma coletânea de textos em Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo e Cidadania no Brasil: o longo caminho, esse de José Murilo de Carvalho. Nos dois livros cria-se, como reação branca da classe dominante, o mito de Palmares escravagista, popularizado depois por Narloch (outro articulista da Folha e isso não é uma coincidência). Não há um dado sequer, absolutamente nada, mas o mito foi criado como reação às políticas afirmativas e à ascensão de movimentos sociais negros vinculados à africanidade.

3) A questão é que se tolera o negro, desde que aponte para o embranquecimento cultural. A africanidade passou a ser considerado por esses grupos como uma cultura exógena à formação do brasileiro. Da mesma forma, a luta política fincada no rompimento da ideia de miscigenação passou a ser considerada estrangeirismo. Destacam-se nesse grupo os defensores do legado dos bandeirantes, inclusive dentro da esquerda.

4) Nesse momento também é publicado Não Somos Racistas, de Ali Kamel, o árabe que se embranqueceu – o “somos” indica que ele se vê como um branco não racista. Chamo esse processo de mulatismo, a emulação sistêmica de ascensão social por meio do embranquecimento e da assunção da cultura europeizante. Nele, Kamel defende a miscigenação como legado brasileiro. 

5) A miscigenação como “legado” é defendida por tropicalistas, como Caetano Veloso, que em 2006 lançou uma música chamada “O Herói”, que se posicionava contra a assunção da negritude em detrimento do mulatismo. Assim como Risério, seu conterrâneo baiano, dizia que o movimento negro da época era um estrangeirismo indevido à nacionalidade brasileira. Dizia Caetano: “Já fui mulato, eu sou uma legião de ex-mulatos, quero ser negro 100%, americano, Sul-africano, tudo menos o santo que a brisa do brasil briga e balança”. Em entrevista à Folha para publicidade do disco novo, Caetano defendeu: “Eu acho que, no fim das contas, esse movimento, quando chegar à sua plenitude, se não houver um desvio alienante, vai reencontrar esses conteúdos brasileiros, por causa de nossa muito profunda miscigenação e da tradição de não manifestar o ódio racial”. No último Roda Vida, em dezembro de 2021, ele reproduziu essa besteira. 

6) O medo do “ódio racial” basicamente é o medo branco diante da onda negra, como lembrou Célia Marinho de Sampaio em seu brilhante Onda Negra, Medo Branco. Sempre houve tolerância sadia com a Guerra contra as Drogas e a emergência de grupos supremacistas ao longo da história. O problema é outro! Em Cartas de Erasmo, sobre a emancipação, José de Alencar discorre sobre o “ódio da raça”, devendo a escravidão continuar até que os brancos fossem maioria, o que deveria ser conseguida por meio da imigração europeia. Portanto, a sistematização do “medo do branco ao ódio racial” data de 1867, sem entrar no mérito do “medo haitiano” que percorreu todo o século XIX. 

7) Risério representa um “incômodo” generalizado entre os brancos da classe dominante e da classe média, sobretudo a autoproclamada intelectual. Daí o seu incrível espaço, com direito à representação gráfica, no jornal. Por ironia, um dia depois de seu texto, descobre-se a existência de centenas de células neonazistas no Brasil. O dado não foi repercutido na Folha, que agora ganha com um falso debate terraplanista.  

8) A emulação à miscigenação é um legado do romantismo brasileiro e do cientificismo neocolonial dos séculos XIX e XX, em que no Brasil surgiria um novo povo. Esse novo povo seria acelerado pela miscigenação e pela imigração europeia, pois esse povo seria branco, mas mantenedor de elementos considerados positivos das outras raças, como a “força dos africanos” - até por isso que justificaria, do ponto de vista evolucionista, a escravidão. A Democracia Racial é uma consequência dessa construção, em que Gilberto Freyre, assim como Kamel, escreve na primeira pessoa a relevância “da mulata que nos tirou o primeiro bicho-do-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem”. É o que chamo de “estupro civilizatório” para a formação do brasileiro. 

9) O supremacismo branco foi plenamente aplicado no século XX, com a criação de medidas segregacionistas, sobretudo no estado de São Paulo (objeto da minha pesquisa), como proibição de matrícula escolar, colônias agrícolas para trabalhos forçados, vedação de emprego e cotas para brancos e imigrantes europeus, proibição de entrada em clubes e praças etc. No interior do estado de São Paulo, posso garantir e provar que havia espaços racialmente segregados até 1980, pelo menos. 

10) José de Alencar foi um grande promotor da ideia do novo brasileiro branco, que envolveu Humboldt, para quem na América surgiria uma nova língua, e José de Vasconcelos, fascista mexicano que se radicaria na Argentina no século XX, que defendeu a criação de uma nova raça “cósmica”. Esse filósofo foi o filósofo de cabeceira de Minotti Del Pecchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Todos eles assinaram um manifesto chamado Verde-Amarelo (Nhengaçu), uma cisão da Semana de Arte Moderna de 1922 – que estava esquecida até o Tropicalismo, que a recuperou como forma de legitimação de um legado brasileiro que possuiria e levaria adiante. Essa cisão depois criaria outra, entre Bandeirantistas e Integralistas. O que havia em comum entre ambos? A formação do brasileiro branco que, segundo projeções apresentadas pelo Brasil em 1911 no Congresso Mundial das Raças, em Londres, ocorreria plenamente em 2012 quando desapareciam todos os negros.

11) A ascensão dos movimentos sociais negros a partir de 2000 criou uma das maiores crises identitárias na classe dominante e na classe média tradicional: a crise do mulatismo e do apadrinhamento. A crise da ascensão por meio do embranquecimento e do apadrinhamento de um branco rico sobre um negro pobre. Essa crise se expressou no Censo da década de 2000, em que negros cresceram aproximadamente 27%. Nasceram muito mais negros do que brancos em 10 anos? Não! Negros de pele clara passaram a se posicionar como negros, e não mais como brancos ou coloração intermediária apontada para a branquitude. Essa é a crise identitária branca, que acomete inclusive a esquerda, como se viu no caso de Borba Gato, ou os proclamados “progressistas”. A mera crítica ao “identitarismo negro” abraça a pauta da extrema-direita. 

12) Risério representa uma vertente radicalizada desse segmento incomodado, sem chão, em crise com os instrumentos simbólicos e sociais de controle construídos historicamente. Seus livros são imprestáveis, cientificamente falando. Escreve-os como escreveu o artigo. A Bahia é o estado que mata mais pretos (100% de pretos mortos pela polícia), mas o problema para ele são os brancos nos EUA que seriam atacados por milicias negras. 

13) A Folha também representa esse segmento. Por isso dá espaço. Eu era conselheiro universitário da USP em 2007 e acompanhei manifestos de professores e jornalistas do jornal contra cotas na universidade, o bastião do conservadorismo da classe dominante paulista. Lembro de o Departamento de Antropologia ter uma posição radicalmente contrária às cotas – deveríamos estudar o que acontece com a Antropologia para arrebanhar tantos conservadores. Querem entender o que está acontecendo? Mirem-se nos anos de 2007 e 2008, momento que Risério, junto com os outros que citei no início do texto, iniciou a sua cruzada contra os movimentos “identitários negros” importados com o seu livro A utopia brasileira e os movimentos negros, uma defesa da mestiçagem como legado brasileiro. É essa perda dos mecanismos tradicionais de controle ideológico e social sobre os trabalhadores negros, sobretudo no estado de São Paulo, que mais preocupa a classe dominante e a classe média tradicional, que se entregaram ao bolsonarismo como forma de reaver o que consideram ter perdido.


Por Leonardo Sacramento (Professor, Pesquisador e colaborador de O Calçadão)

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