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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Soy Latino Americano!



O gênio de Darcy Ribeiro se perguntava frequentemente: porque o Brasil não deu certo?

Ao buscar as respostas, Darcy se debruçou por décadas num estudo teórico que se transformou no clássico O Povo Brasileiro.

Ao final de sua vida, o grande antropólogo e educador dizia claramente que acreditava no Brasil, principalmente no seu povo, e que o país teria chances de se desenvolver de maneira autônoma quando um governo que mesclasse nacionalismo com apoio popular tomasse corpo e chegasse ao poder central.

A unidade étnica aliada às diferenças regionais eram, de acordo com o professor e tantos outros com tradição "Trabalhista" como ele, nossa maior qualidade como povo. Darcy, certamente, aliava seu conhecimento com sua visão crítica a respeito da história recente do Brasil, notadamente o embate entre nacionalismo e entreguismo, iniciado com Vargas e, depois do tempo de Darcy, retomado (de maneira tímida) por Lula.

Um embate duríssimo que produziu suicídio, golpe, ditadura e uma mídia monopolista que joga sempre na contramão do povo e dos interesses nacionais.

Penso eu que a mesma postura deveria ser adotada diante da América Latina.

Óbvio que este assunto não será sequer arranhado neste artigo (ou até mesmo em uma série de artigos), mas acredito que deveria haver um esforço intelectual para entender melhor esta parte da América, principalmente este período que vivemos após a crise da dívida dos anos 80 e o avanço neoliberal dos anos 90.

Dificilmente teremos um gênio como Darcy Ribeiro se dedicando à América Latina, mas com certeza um esforço coletivo de intelectuais e agentes políticos de movimentos populares em muito poderia contribuir.

Mas é preciso que os intelectuais, políticos do campo progressista, de centro esquerda e social democratas se debrucem nesse esforço de aproximar os movimentos do pensamento acadêmico.

Outro dia li um artigo do sociólogo e professor Ignácio Ramonet (ex-aluno de Roland Barthes e professor em Paris) sobre a Bolívia. Ramonet, em visita ao país, se viu impressionado com o desenvolvimento sem abrir mão da igualdade social e da conquista de direitos.

A melhora da Bolívia sob o comando de um índio socialista, do qual diziam impropérios, é, para mim, até mais impactante do que o avanço uruguaio sob o comando de Pepe Mujica.

Ambos os países avançaram nos últimos anos, mas Evo Morales não tinha a seu favor o fato de ser um velhinho fofo que vive uma vida modesta. Evo, um lutador franco e combativo e com a responsabilidade de assumir um país acostumado a obedecer à elite branca, tinha e tem muito mais dificuldade em afirmar seu discurso. E de onde todos esperavam o caos, brota o progresso.

Na altitude dos Andes, dois pequenos países caminham.

O Peru e o Equador.

O Peru enfrenta grandes dificuldades com o alto grau de pobreza da população, de concentração de renda e obstáculos para produzir um crescimento econômico viável para o futuro do país. Os 10 anos de Alberto Fujimori causaram grande retrocesso econômico, social e político. As opções pós-Fujimori (como Alejandro Toledo, Ollanta Humala e outros) se mostraram incapazes de construir um projeto nacional. Humala foi, inclusive, derrubado em um processo político-judicial que ronda a América Latina.

O Equador teve Rafael Correa. A proximidade de Correa com o campo nacionalista de esquerda do Brasil, Venezuela, Uruguai e Bolívia ter enfrentado até uma tentativa de golpe (quando enfrentou a mídia local no processo de construção de uma Ley de Medios), seu avanço no Equador é mais fácil do que o de Humala no Peru, pois o Peru conta com 10 anos sob Alberto Fujimori, num verdadeiro processo de desmonte não só econômico, mas social e da auto-estima do povo. Espero que os ventos da simpatia que Michelle Bachelet nutre pelo Brasil saiam do Chile e cheguem ao Peru e ao Equador e que todos eles se aproximem da porção leste do sub-continente e se distanciem da opção mexicana: para não afundar no narcotráfico e nas maquiladoras.
Aliás, o Chile de Bachelet também é um ponto estratégico para os próximos anos. Após duas décadas da ditadura mais dura da região, a de Pinochet, o Chile vem aos solavancos, ora pisca para a esquerda, ora da marcha à ré e volta para a direita. É uma luta complicada, pois o Chile foi um cadinho onde o neoliberalismo fez experimentos. Do endeusamento ao thatcherismo à contratação dos "chicago boys" (grupo de economistas ultra-liberais americanos), o Chile construiu uma sociedade voltada para o livre mercado, que criou empresas e elevou o PIB, mas produziu uma sociedade extremamente desigual onde até a água é privatizada. Uma mudança de postura no Chile seria essencial para equilibrar os discursos.
No Caribe, essa disputa política sempre foi tensa, pois lá encontra-se a ilha de Cuba. Por décadas a Costa Rica e Honduras foram os escolhidos dos ianques para contra-atacar o país de Fidel. Hoje, o símbolo do liberalismo é o Panamá, um verdadeiro paraíso fiscal com grandes edifícios como a dizer: "olha como o liberalismo é bom". Não por acaso a Globo fez um Globo Repórter inteiro no Panamá. É esperar para ver o que esta reaproximação inicial entre Cuba e EUA e a construção do novo canal da Nicarágua (e o porto de Mariel) trarão de novidade na região.
Ainda não deixando o Caribe de lado, temos a Colômbia, um país tradicionalmente ligado aos EUA e governado recentemente pelo ultra-direitista Álvaro Uribe. O Plano Colômbia e as rusgas com a Venezuela são heranças nada palatáveis para o bom Juan Manoel Santos. A tentativa de paz com a guerrilha e a aproximação com a UNASUL são passos importantes.
Agora, tirando o Brasil (que só o seu tamanho já o torna especial), são Argentina e Venezuela que mais importam. A Venezuela porque foi por lá que o modelo neoliberal tomou o primeiro choque por essas bandas. Quando Fujimori, FHC e Menem faziam o serviço sujo, foi lá que em 1998 era eleito Hugo Chávez. Chávez deu voz ao povo e botou fogo no circo. Levou um país mestiço dominado pela minoria branca, dependente do cartel do petróleo e pobre aos holofotes da mídia mundial dizendo: "al carajo, nosotros somos bolivarianos!". Chávez, mesmo com estilo truculento, levantou uma bandeira, deu o primeiro passo. A Venezuela se transformou num palco em disputa, uma disputa violenta, mas onde o povo tem ganho importantes batalhas. O sucesso da Venezuela é fundamental para a América Latina.
E a Argentina?
Bom, a Argentina é um país especial, e não só no futebol. Durante toda a sua história, até mesmo nos processos de independência, eles eram Buenos Aires e o resto. O poder porteño não cedeu nem no peronismo e se concentrou na cruel ditadura e no período Carlos Menem/Domingos Cavallo, talvez o maior exemplo de desmonte de Estado, corrupção e de produção de miséria da história recente do continente. Quando a crise parecia que levaria a Argentina ao esfacelamento, eis que surge o patagônio Néstor Kirchner: rompe e peita o modelo neoliberal, enfrenta os rentistas internacionais, une o "resto" da Argentina num programa de reconstrução que gerou emprego, recuperou a economia e botou na cadeia generais e torturadores. A Argentina virou o monstrinho malhado dia e noite pela mídia mundial (e brasileira) e o principal parceiro político e econômico do Brasil, além da voz mais forte e dissonante do modelo neoliberal predominante. É fundamental ter esse processo continuado na Argentina e a sucessão de Cristina (grande presidenta) é uma jogada de extrema importância no xadrez do continente.
Retomando Darcy Ribeiro e a necessidade de produção teórica sobre tudo isso, vemos que a América Latina está em disputa e tem sido um contraponto à Europa, totalmente dominada pelo neoliberalismo e que só agora reage. Mas a disputa não pode se dar apenas no âmbito prático, da chamada realpolitik, ela tem que se dar no âmbito teórico. Há 50 anos a CEPAL (Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe) fazia esse trabalho teórico (com gênios como Celso Furtado e Raúl Presbisch). É hora de retomá-lo, dando um aparato teórico aos esforços como a constituição da UNASUL, um feito cujo mérito cabe a Kirchner, Lula e Chávez.
Poderia ser pensado por aqui uma espécie de Fórum anual, tal qual o Fórum Social Mundial. O povo latinoamericano. o mais interessado nisso tudo, agradeceria. Pois: hay que caminar!

Ricardo Jimenez, professor, químico e latinoamericano (sem dinheiro no bolso).


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