Por: Celso Correia da Silva Júnior
Lucas 4:18-19 “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor.”
No dia 01/01/2021 faleceu Antonio Luiz Marchioni, mais conhecido como Padre Ticão, sacerdote conhecido na Zona Leste de São Paulo, capital, pelas lutas populares por saúde, moradia, entre outras. Pe. Ticão ainda era o principal animador e articulador da Missa do Trabalhador realizada no dia 1º de Maio no largo que tem o nome do feriado. Momento de reflexão, à luz do evangelho, sobre a realidade da classe trabalhadora. Na década de setenta essa mesma comemoração era realizada sob tutela e participação dos representantes do exército em plena ditadura militar com um misto de ambiente festivo normal e ufanismo. A paróquia de trabalho do Pe. Ticão, São Francisco de Assis, no bairro de Ermelino Matarazzo, é o epicentro que irradia para aquela região a mensagem de Jesus e os projetos que a tornavam reais na vida das pessoas.
A
Zona Leste de São Paulo, assim como as grandes periferias urbanas,
caracteriza-se por renda média populacional baixa aliada relações de trabalho
caracterizadas pela informalidade e precariedade e, por consequência, alijadas,
em quase sua totalidade, das proteções previdenciárias. Densidade demográfica
alta, presença de muitas favelas/comunidades, carência de infra-estrutura
urbana cidadã (saneamento básico, escolas, centros culturais, etc) são outras
marcas dessa região. Apesar disso convive com pequenos nichos urbanos
privilegiados onde residem uma pequena classe média absorvida por setores
modernos/dinâmicos da economia que oferecem salários/rendimentos de maior
remuneração na área de serviços, comércio e da enfraquecida e remanescente
indústria. Alguns dados do ano 2000 apresentados pela própria Prefeitura de São
Paulo indicam tal situação. O analfabetismo nas favelas é mais que o dobro do
conjunto da cidade (15,33% contra 7,37%) e o número de chefes de família com
apenas três anos de estudo chegaram a 38,39%. A renda dos chefes de família
para o mesmo ano nesses mesmos locais de 0 a 1 salário mínimo era de 29,79% e
de 1 a 3 salários mínimos de 43,42%. Na cidade mais rica da América Latina
morar na periferia, no bairro Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo
resulta, segundo o Mapa da Desigualdade de 2018, ter expectativa de vida por
volta de 58 anos.
Nessa
região ocorre também a expansão territorial do movimento sócio-religioso neopentecostal
caracterizado por ser conservador nos costumes, ter um discurso teológico
simplificado e, ao seu modo, constituírem-se em espaços difusores do pensamento
neoliberal como chave de leitura da realidade econômica e de propositura de
soluções individuais-empreendedoras-meritócráticas como meio de superação das
dificuldades pessoais mais imediatas como falta de alimento, moradia, vestuário
outras consideradas também como individuais – transporte: ter um carro; saúde:
ter convênio médico; educação: pagar escola particular. Alguns estudiosos
consolidam o leque dos aspectos desse movimento na expressão Teologia da
Prosperidade. Paralelamente a essa expansão territorial esse movimento tem
buscado influenciar a política elegendo para os mais diversos cargos membros
que carreguem a bandeira do movimento para dentro dos espaços de formulação de
leis e políticas públicas, muitas vezes atropelando a laicidade do Estado.
É
nesse contexto social, político e religioso que trabalhava Pe. Ticão. O homem
certo no lugar certo, à luz da Teologia da Libertação. Uma poderosa maneira de
ser igreja de Jesus utilizando ferramentas de leitura da realidade social-política-econômica
dos dias atuais capazes de questionar e propor mudanças estruturais de vida em
sociedade capazes de cessar a exploração, a exclusão e devolver a dignidade
humana, sobretudo, aos mais pobres, aos aflitos, aos sem nada. Faz parte dessa
mesma linhagem de ser igreja do Pe. Ticão alguns religiosos e teólogos de peso
como Dom Oscar Romero, Jon Sobrino, Carlos Mesters, Ruben Alves, Hugo Assmann,
Leonardo Boff, Ivone Gebara, Enrique Dussel (elaborou também a Filosofia da
Libertação), Frei Betto, Gustavo Gutierrez, José Comblin, Dom Pedro Casaldáliga
e Dom Tomás Balduíno.
Eu
nasci em Ermelino Matarazzo. Eu e minhas irmãs fomos batizados na igreja São
Francisco de Assis. Minha mãe é moradora no bairro e compareceu com minha irmã
caçula no velório do Pe. Ticão. Para encerrar essa homenagem póstuma do Blog o
Calçadão ao Pe. Ticão deixo as palavras de ambas a seguir. O nome da minha mãe
é Maria e da minha irmã é Cibelle.
Calçadão – Qual a idade da senhora?
Maria – 71
Calçadão – Qual é a sua história com a
Paróquia São Francisco de Assis?
Maria – Frequentava as missas desde
solteira, ainda na época do Pe. Inácio. Fiz primeira comunhão e crisma, lá. Casei
e batizei meus três filhos nessa igreja.
Calçadão – Quando a senhora ouve Pe.
Ticão, qual lembrança ocorre primeiro?
Maria – Ele celebrando a Missa do
Trabalhador no Largo Primeiro de Maio. Muita gente. Muito bonito. Às vezes
vinha políticos até de helicóptero para participar da missa. Era um padre muito
querido.
Calçadão – Quais trabalhos do Pe.
Ticão mais marcaram o povo?
Maria – Primeiro lugar, moradia, com
ocupação, construção. Ele lutou muito, com vários abaixo-assinados para a
construção da USP-Leste e do Hospital de Ermelino Matarazzo. Estava tentando
uma Fatec, mas não sei como está, se conseguiu.
Calçadão – A senhora sabe das
polêmicas sobre a maconha e o aborto?
Maria – Parte do povo “caiu matando”,
mas ninguém sabe explicar direito.
Calçadão – A senhora esteve no
velório. Como foi?
Maria – A igreja estava lotada. Ele
recebeu muitas homenagens. Tinha muita gente com a camiseta daquele movimento
de moradia (MTST).
Calçadão – A senhora já ouviu falar da
Teologia da Libertação?
Maria – Já, mas não sei explicar. Tem
uma colega que participa mais da paróquia que me falou e sabe mais sobre isso.
*********
Calçadão – Cibelle, você esteve com
sua mãe no velório do Pe. Ticão. O que você viu, presenciou, sentiu?
Cibelle – Então, eu não conheço o
trabalho dele e nós chegamos perto do final, mas eu fiquei super emocionada. Eu
chorei de emoção de ver a igreja cheia. Eles estavam fechando o caixão e um
senhor de idade, negro, começou a falar “Ticão, Ticão” e aí as pessoas
começaram a falar o nome dele, a aplaudir, muita gente chorando, então você vê que
ele era muito querido mesmo pela comunidade. Eu não vi, mas o pessoal disse que
o Suplicy foi até lá também. Então você vê que é um pessoal da militância, que
trabalha pelo povo mesmo. Eu fiquei emocionada também porque eu lembrei muito
da Lapa (Paróquia bom Jesus da Lapa no bairro Campos Elíseos em Ribeirão
Preto). Eu lembrei da minha formação, como a Lapa foi importante, da minha
participação, da sua, da Cilene (outra irmã). Eu cresci lá então eu lembrei
muito disso, do Pe. Chico, do Pe. Estevão (padres belgas responsáveis pelas
Paróquias Santa Terezinha e Bom Jesus da Lapa em Ribeirão Preto). Então foi
isso que me emocionou, essa igreja que milita pelo povo, essa igreja que é
ação.
Celso Correia - amigo do Blog o Calçadão.
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