Foto: Paulo Honório |
Toda vez que o capeta deixa a porta do freezer aberta em São
Paulo, lembro da quantidade de imóveis que têm como inquilinos ratos e baratas,
visando à especulação imobiliária, enquanto há pessoas virando picolé do lado
de fora. Ou gente que dorme sob temperaturas de conservar sorvete em barracos,
cortiços e habitações precárias.
O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia
ser drasticamente reduzido se imóveis trancados por portas de tijolos e
terrenos vazios pudessem ser desapropriados e destinados a quem precisa –
gratuitamente ou a juros abaixo do mercado, dependendo do nível de pobreza em
questão.
Daí, quando se discute a necessidade de radicalizar os
programas de moradia popular, alguém grita no fundo de sua ignorância: Tá com
dó? Leva pra casa!
A frase é um clássico da internet. Proferida ad nauseam
quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente parda, fedida, drogada e
prostituída que habita o burgo paulistano – locomotiva da nação, vitrine do
país, que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos
ufanistas patéticos caindo de velhos. É só falar da necessidade de políticas
específicas para evitar que o direito à propriedade oprima os outros direitos
fundamentais, que pessoas vociferando abobrinhas saem babando, querendo morder.
Não é levar o povo para a casa, amigos. Mas fazer com que o
poder público cumpra sua função de garantir o mínimo de dignidade a quem não
pode pagar por uma. E União, Estado e município têm responsabilidade nisso.
Mas sabe o artigo sexto da Constituição Federal que garante
o direito à moradia? Então, é mentira. Do mesmo tamanho daquela anedota contada
no artigo sétimo que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para
possibilitar “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social”.
Ah, mas residências estão sendo construídas e o poder de
compra do salário mínimo melhorou. Mas, no ritmo que estamos indo, os bisnetos
da xepa de hoje terá acesso à qualidade de vida.
Função social da propriedade? Por aqui, isso significa
garantir que a divisão de classes sociais permaneça acentuada como é hoje. Cada
um no seu lugar. Afinal de contas, viver em uma grande cidade é lindo – se você
pagar bem por isso.
Na madrugada de sexta (10), até então a mais fria do ano,
uma pessoa em situação de rua foi encontrada morta na rampa de acesso da
estação Belém do metrô. João Carlos Rodrigues tinha 55 anos e não apresentava
sinais de violência – para além da violência representada por dormir na rua em
uma noite gelada.
Mas quem se importa com um corpo pobre sem vida? Quem se
importa, aliás, com o fato dos albergues não terem quantidade suficiente de
vagas?
Na verdade, é só mais um a menos. O que contribui com a
faxina social que já ocorre, a conta-gotas, pelas mãos do Estado ou de agentes
privados. Faxina que vem para acalmar “cidadãos de bem'' que não gostam de
mendigos mal-cobertos por mantas velhas ferindo o senso estético por aí, têm
horror a qualquer crítica à intocabilidade da propriedade privada e querem tomar
um café quentinho em seu restaurante sem se lembrar que, por nossa inação e
nossas opiniões mesquinhas, somos também responsáveis pelo que acontece do lado
de fora.
Sobre o autor
SakamotoLeonardo Sakamoto
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade
de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos
direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP e pesquisador
visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York, é diretor da
ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas
Contemporâneas de Escravidão.
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