Beto Fernandes Torres denunciou o abandono ao povo Ticuna. Foto: Filipe Augusto Peres |
Relato aconteceu na última segunda-feira (2) durante o oitavo Congresso Internacional de Jornalismo de Educação, em São Paulo
Na segunda-feira (2), em mesa promovida
pela Jeduca durante o 8º Congresso Internacional de Jornalismo de Educação,
realizada na Fecap, em São Paulo, durante a mesa que debateu as relações entre crises climáticas e educação, Beto
Fernandes Torres, professor da Escola Municipal Indígena Marechal Rondon e
ex-gestor da Escola Estadual Indígena Cacique Manuel Florentino Mecuracu, ambas
localizadas no município de Benjamin Constant (AM), compartilhou sua
experiência sobre o impacto das mudanças climáticas em sua comunidade indígena
no Amazonas. Ele destacou questões como a seca, a falta de merenda escolar e a
fome enfrentada por seus alunos. Mediada pela jornalista Paula Ferreira
(Estadão), a mesa ainda contou com as presenças de Danilo Moura (Unicef) e
Raquel Teixeira (Secretária Estadual de
Educação do Rio Grande do Sul).
Em sua fala, Beto expressou tristeza ao falar
sobre a situação do Alto Solimões, região onde vive, afetada pela estiagem. O
professor relatou as dificuldades enfrentadas para chegar ao Congresso devido
às condições climática.
"Eu sou do Amazonas, 1.121 km a Manaus. Eu trabalho como professor
na área indígena. Não sei se eu vou expressar muito aqui, porque para falar da
situação, da nossa realidade, é muito triste, é muito emocionante. A nossa
região, que nós chamamos do Alto Solimões, é triste. Recentemente, quando eu
vim e viajei para cá, eu saí dia 27 de agosto. Eu cheguei em Tabatinga, dia 30,
viajando. A estiagem, a seca, ela afetou muito a nossa região. Eu enfrentei
tantas dificuldades para chegar hoje aqui”
e destacou que a seca afetou diretamente a
comunidade, gerando problemas como a falta de merenda escolar, que não chega,
levando os alunos a irem para a escola sem tomar café na sua casa. Indo para
escola e voltando sem comer nada.
“A educação da nossa região, onde eu moro, comunidade regional, que tem
mil e novecentos e cinquenta alunos do ensino médio, o ensino fundamental, de
primeiro ao quinto, sexto ao nono ano. Esses alunos é o aluno que sofre o clima.
Falta de merenda. A merenda não chega à comunidade. O aluno vai pra escola sem tomar café na sua
casa. Indo pra escola e voltando sem comer nada”.
O professor compartilhou um caso de morte em sua
aldeia, onde um aluno de seis anos faleceu por falta de alimentação. A falta de
apoio do poder público municipal e estadual foi apontada por Beto como um dos
principais motivos para a situação precária enfrentada pela comunidade
indígena.
Recentemente,
quando eu vim para cá, faleceu um aluno de seis anos, o motivo dessa situação era
o meu aluno, eu estava trabalhando na sala de aula do Antônio. Ele saiu e
perguntou|:
"Professor, eu estou com fome".
Eu disse, "sim, mas como
assim?:" o nome dele é Paulo.
"Como, Paulo, você está com
fome?
"De manhã eu não tomei café. Vim pra aula.
Minha mãe foi pra roça plantar mandioca, banana pra sobreviver.
Aí eu deixei ele na casa dele. Acompanhei ele.
Eu fui e levei na casa dele. Quando eu deixei na casa dele não tinha ninguém. A
mãe e o pai foram pra roça. Deixei ele lá. Eu voltei para a escola, conversei
com a diretora da escola, perguntei se tem alguma merenda e ela disse que não
tem, não chegou merenda na escola. Eu falei para o professor, "e
agora"?
Trinta minutos, quarenta minutos, um rapaz foi
lá em casa, o professor.
"O Paulo..., aconteceu um acidente
com ele".
"Sim. Como?"
Ele estava vomitando, passando necessidade.
Quando eu fui lá, realmente o Paulo, que é o meu aluno, vomitou. E... quando
aconteceu isso, eu chamei a mãe dele. Ele foi para a roça, correu atrás do pai,
da mãe dele. Quando eu voltei, o menino já estava morto. Chamei a enfermeira lá
da aldeia para fazer o diagnóstico, que realmente esse aluno faleceu, que não
tinha tomando café, não comeu nada, na minha aldeia.
e reiterou que a morte poderia ter sido evitada se as
autoridades municipais de Benjamin Constant entregassem a merenda escolar.
“E isso acontece. O governo municipal não leva as merendas. Nós sofremos por consequência disso”.
Escola Municipal Indígena Marechal Rondon Imagem: Google Earth |
O Projeto e o desenvolvimento curricular a partir do diálogo com a comunidade local
Diante desse cenário, Beto ajudou a criar um
projeto de jovens comunicadores na aldeia, com o objetivo de conscientizar a
população sobre a crise climática e buscar soluções para a falta de alimentos..
“Então, o que nós fizemos? Qual o projeto que eu fiz lá da minha aldeia?
Eu chamei 20 jovens, nós criamos na aldeia um projeto de jovens comunicadores.
Esses jovens comunicadores, a gente trabalha para conscientizar os alunos,
conscientizar os pais. Como para conscientizar? Cada fim de semana eu reúno os
jovens comunicadores, eu oriento ele para ir de casa em casa, levando um
pouquinho de alimentação. Não é só da minha comunidade, são 28 comunidades
afetadas por esse clima”.
Torres afirmou durante a mesa que também ajudou a desenvolver
o currículo “Formas Próprias de Educar”, o qual foi enviado para as autoridades
locais e estaduais, mas não obteve resposta satisfatória por parte do poder
público.
“Então, nesse caso, eu como professor, conversei como gestor da escola
da minha aldeia, Será como é que nós podemos trabalhar em cima dessa crise
climática que nós estamos enfrentando hoje? Aí nós criamos o currículo Formas
Próprias de Educar. Essas Formas Próprias de Educar, que nós nos reunimos com
os professores, eu sentei com a diretora e disse, "Olha, a gente tem que,
pelo menos, ajudar os nossos alunos, nossos parentes que estão sofrendo nessa
estiagem".
Criamos o currículo Formas Próprias de Educar.
Forma que nós podemos educar os nossos alunos. Forma de nós orientarmos os
nossos alunos, nossos parentes, para que ele não , deixe seus costumes de
cuidar dos seus filhos, cuidar das suas roças, cuidar dos seus plantios. Nós
colocamos o nosso currículo. E nós mandamos esse nosso plano curricular para o
nosso município, que é o Benjamin Constant. A secretária do nosso município de
Benjamin Constant, nosso plano, para inserir no currículo do município. Diz que
esse pensamento que nós temos não está inserido no currículo do município onde
eu estou. A rejeição que nós temos é muito grande no nosso município”.
Mais negligência
Beto ainda relatou que o governo do Amazonas
também foi consultado e que, também, negou-lhes a inserção do projeto ao
currículo.
“A gente mandou para a Secretaria do Estado do nosso Amazonas, Manaus,
que a gente mandou também essa. Até o momento, os governos do Estado não
responderam a nossa demanda, a nossa solicitação”.
Falta d’água
O professor voltou a destacar que, afetados
pelo clima, pela pobreza do solo, empobrecido pelo modo de produção alimentar
capitalista, alimentos comuns da dieta indígena como banana e mandioca já não
crescem, gerando insegurança alimentar.
“Falando de clima, hoje, recentemente, os nossos parentes, eles
plantaram. O clima lá da minha região, a gente planta mandioca, banana, mas só
que ela não cresce mais”.
A falta d’água também é uma constante na região, o que obriga
a população indígena a viver em condição insalubre.
“Eu
estive conversando com alguns jornalistas. Perguntei à mãe desse aluno:
‘A
senhora vai levar essa água?’
‘Sim’.
‘Por quê?’
‘Para lavar roupa, lavar prato, fazer
comida’.
Eu disse, ‘meu Deus, não, você não pode fazer
isso. Você não pode levar essa água suja’.
Ela falou, ‘professor, mas onde que a gente vai
tirar a água?’
É triste essa situação que eu tô falando, é a
realidade. Eu presenciei isso na minha comunidade. E tem mais comunidade que eu
andei. Tá sofrendo essa necessidade”.
O professor chamou atenção para a importância de apoio e de
autoridades que reconheçam a realidade vivida pelos povos indígenas, relatou a
seca do rio Amazonas
"Como
nós somos povos Ticuna, como a colega estava falando da primeira mesa, eu
estava sentado ali. Chorei. Porque a gente precisa de ajuda. Nós precisamos de
ajuda, de apoio, de autoridade. Para que essa autoridade veja a nossa
realidade, a situação que nós estamos passando. Aí eu chamei a mãe.
‘Mãe, bora?’
Eu fui para casa, tinha galão de água deste
tamanho. Eu entreguei para ela, para que ela possa fazer suas alimentações e
café para os seus filhos. Então, essa situação que a gente está levando hoje
aqui, contar um pouco da nossa história, que nós estamos vivendo na nossa
região. O nosso rio Amazonas, eu acho que é o terceiro maior rio do Amazonas.
Hoje, esse rio que nós temos, ele secou. Há três anos nós estamos vivendo isso,
ninguém sabe o que vai acontecer com a gente. Ninguém sabe o que vai acontecer
com o povo ticuna da região”.
e, destacando a perseguição enfrentada pela
comunidade, lembrou o massacre de Ticunas, cometido por latifundiários,para
comprovar que a opressão e a negligência às questões, à população indígena,
sempre foi uma constante histórica na região.
“Porque a gente sofre, a gente é perseguido também pelas autoridades.
Não sei se vocês viram alguns depoimentos sobre o massacre que aconteceu
em Capacete. Foi morrer 28 ticunas. Por quê? É por causa das terras,
devido às plantações. Tudo isso, o que a gente falou aqui. É uma realidade que
nós estamos enfrentando, do município de Benjamin Constant."
O Blog O Calçadão enviou questionamentos à
Secretaria Municipal de Educação do município de Benjamin Constant e à
Secretaria Estadual de Educação do Amazonas referentes às falas de Beto Torres
e, até o momento, não obteve resposta. Tendo-a, a transcreverá no corpo desta
matéria.
O que informa a imprensa
Matéria do portal G1, de 24 de junho deste ano, consta que o Ministério Público
Estadual recomendou ações preventivas contra a seca e exigiu da prefeitura de
Benjamin Constant informar as medidas a serem adotadas até o dia 1º de julho.
Notícia da página da prefeitura de
Benjamin Constant-AM, de 19 de julho, consta que
o governo municipal enviou um ofício ao Departamento Nacional de Infraestrutura
de Transportes (DNIT) e para a Defesa Civil do Amazonas alertando sobre o risco
de desabastecimento na região da tríplice fronteira em virtude da vazante do
Rio Solimões, uma vez que Com o nível das
águas baixando drasticamente, as embarcações têm dificuldade para transportar
produtos básicos para o interior.
Matéria do site jornalístico Brasil de Fato, de 27 de agosto de 2024, informa que as comunidades seguem isoladas.
O Blog O Calçadão enviou questionamentos à Secretaria Municipal de Educação do município de Benjamin Constant referentes às falas de Beto Torres sobre o currículo escolar, mas até o momento não obteve resposta. Tendo-a, a transcreverá no corpo desta matéria.
O Amazonas enfrenta crise ambiental sem precedentes em 2024, por causa da seca e queimadas, isolando municípios e comunidades, impactando mais de 330 mil pessoas no estado, segundo a Defesa Civil.
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