Analisando letras · Por
Renata Arruda
Em uma apresentação que homenageou os heróis negros e indígenas
esquecidos da História oficial do Brasil, a Estação Primeira de Mangueira foi a
grande campeã do desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de
Janeiro em 2019.

Desfile da
Mangueira no Carnaval de 2019 / Créditos: Divulgação
Em 2020, a agremiação promete movimentar novamente o carnaval carioca:
com o enredo A Verdade Vos Fará Livre, o
carnavalesco Leandro Vieira imagina como seria se Jesus Cristo
retornasse nos dias de hoje, vindo do morro da Mangueira.
No samba-enredo, os compositores Manu da Cuíca e Luiz Carlos
Máximo lembram a origem humilde de Jesus e protestam contra o
extermínio de pessoas nas comunidades. Em entrevista, Manu da Cuíca
explicou: Estão matando gente nas favelas. É o recado que Jesus dá com
o retorno dele. Ele fala da favela que é o povo dele. O povo oprimido.

Créditos:
Divulgação
A Verde e Rosa será a terceira escola a entrar na avenida no dia 23 de
fevereiro, domingo, em desfile marcado para começar por volta das 23:45. E para todo mundo
ficar bem afiado, resolvemos analisar a letra do samba-enredo da Mangueira
2020. Vem com a gente!
Análise do samba-enredo da
Mangueira: A Verdade Vos Fará Livre
Assim começa o texto de apresentação do samba-enredo da Mangueira em
2020, escrito por Leandro Vieira, que dá aos jurados e ao público uma ideia do
que esperar do desfile da agremiação:
Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem
mais popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao
lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes sua face mais
amorosa e desprovida de intolerância.
Vamos agora dar uma olhada na letra do samba?
Samba teu samba é uma reza
Pela força que ele tem
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também
Como adiantamos, a Mangueira foi a campeã do carnaval carioca em 2019
com um desfile fortemente marcado pelas críticas sociais. Dentre as
personalidades históricas homenageadas, a principal foi Marielle Franco,
vereadora assassinada em 2018.

Marielle Franco
homenageada no desfile da Mangueira em 2019
Com a vitória, a agremiação foi alvo de críticas e acusações. Por isso, o
início do samba-enredo pode ser visto como uma resposta da Mangueira,
falando sobre o quanto a escola permanece firme, forte e unida, sem se deixar
abalar pelas más línguas.
Além disso, a letra é narrada em primeira pessoa por Jesus Cristo.
Portanto, isso também significa que a Mangueira tem a bênção de Cristo.
Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente
A explicação para a estrofe acima é dada no texto de apresentação do
samba-enredo.
Misturando a história bíblica com a versão imaginada por Leandro
Vieira, a letra lembra que a imagem de Jesus Cristo preso na cruz
representa todos nós. Logo, ele não pode ser retratado apenas como uma
figura branca e masculina.
Já o verso moleque pelintra no Buraco Quente, traz
uma ambiguidade: o moleque pelintra, tanto pode ser o menor de idade
maltrapilho que anda pelo Buraco Quente, local onde a Mangueira foi fundada,
quanto uma referência a Zé Pelintra, entidade da Umbanda.
De qualquer forma, o que a composição afirma é que Jesus Cristo
é homem, é mulher, é negro, é indígena e pode ter qualquer religião. Na
versão moderna, ele é Jesus da Gente, nascido na Mangueira.
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
A história de Jesus da Gente traz referências às lutas de minorias por
direitos civis. O punho cerrado, por exemplo, é um símbolo de resistência muito
empregado por movimentos sociais.
A composição nos lembra, ainda, as origens humildes do Jesus bíblico, compartilhadas
por muitas pessoas nas favelas e periferias.

Dessa forma, a letra defende que caso Jesus voltasse à Terra nos dias de
hoje, ele nasceria pobre dentro de uma comunidade, vivendo ao lado dos mais
oprimidos e protegendo os seus semelhantes.
Eu tô que tô dependurado
Em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque de novo cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
Em seu retorno, Jesus se espantaria em ver sua imagem sendo exibida em
tantos lugares — desde cordéis até a estátua do Cristo Redentor, localizada no
morro do Corcovado —, e questionaria se o povo havia entendido mesmo a sua
palavra.

No final, se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres
que nascem em comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma
forma, diz o texto do carnavalesco. Ou seja, se
vivesse nos dias de hoje, Jesus Cristo seria perseguido por quem prega a
violência e a intolerância. No lugar de uma cruz, seria morto por um fuzil.
No entanto, a letra traz uma mensagem de resiliência, afirmando que nos
períodos mais sombrios é que a esperança de um mundo melhor se fortalece.
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem Messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço Fé na minha gente
Que é semente do seu chão
Aqui há uma referência à passagem bíblica em que Jesus fala sobre a
maneira espiritual como vemos a vida:
São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu
corpo será luminoso; se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo
estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes
trevas serão! (Mateus 6:22-23)
No contexto da letra, pega a visão seria um alerta
de Jesus da Gente para o povo, pedindo para que desistam de esperar que a
solução venha de um Messias armado, às custas da morte das pessoas, e percebam
que só há futuro possível através da partilha, da tolerância e do amor.
Do céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E Ressurgi no cordão da liberdade
Após a morte, Jesus da Gente ressuscitaria na Mangueira, durante o
carnaval.
Ao longo dos três
dias de festa, o Filho de Deus iria confraternizar com seu rebanho: quarando
tambor, se livrando do fardo da cruz e brincando em total harmonia, na
liberdade que só a verdade proporciona.
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