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segunda-feira, 29 de março de 2021

 “Para a classe trabalhadora, é central identificar as contradições dessa disputas”

Confira entrevista de Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, sobre a decisão histórica adotada pelo STF sobre a prisão de Lula

Por Fernanda Alcântara - Da Página do MST

 

Kelli Mafort, da Coordenação Nacional do MST. Foto: Reprodução

Após a anulação de todas as condenações contra o ex-presidente Lula, ainda no início deste mês, nesta última semana foi acatado o habeas corpus do ex-presidente Lula sobre o caso do Tríplex. Com a decisão, se determinou a parcialidade do juiz Sergio Moro e, portanto, todo o processo, não apenas a sentença, foi anulado.

 

O MST esteve mobilizado diretamente na campanha que pedia a liberdade de Lula, e em todos os cantos do país, justamente por acreditar que “quando um povo decide garantir uma ação na defesa de sua existência, nada e nem ninguém podem impedi-lo”. Durante os 580 dias em que Lula esteve preso em Curitiba, a Vigília Lula Livre, montada ao lado do prédio da Polícia Federal, denunciou que tratava-se de uma prisão injusta para tirar Lula das eleições de 2018. 

Confira abaixo a entrevista Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, sobre a resolução do STF que repara os direitos de Lula, a suspeição de Moro e a posição do MST sobre estas decisões.

 

Como o MST vê a decisão do Ministro Faccin sobre o caso Lula? Ela demonstra certa mudança na postura do STF?

O ministro Fachin tem colocado a defesa da Lava Jato acima da legislação brasileira, buscando justificar os atos criminosos cometidos pela Operação. Sua decisão justa de anular os processos de Lula e transferi-los para a instância competente da Justiça Federal em outro Foro, infelizmente não se pautou no senso de justiça e nem no cumprimento dos direitos cidadãos, mas sim na tentativa de livrar o juiz Sérgio Moro, acusado de suspeição, bem como todo o esquema imperialista que envolve a Lava Jato. Portanto, Fachin agiu para defender esses interesses, atuando como se fosse um advogado do capital.

Consideramos que a operação Lava Jato nunca se propôs a enfrentar o problema da apropriação indevida de recursos e bens públicos por pessoas e grupos particulares, o alardeado combate à corrupção. Ao contrário, a operação está situada numa disputa intra-burguesa, na qual um projeto neodesenvolvimentista, como dos governos petistas, não tinha mais espaço político, dado principalmente à crise estrutural do capital e a diminuição da margem de concessão por parte do capital aos trabalhadores e trabalhadoras.

 

Segundo o Dieese, o impacto da operação Lava Jato para a economia brasileira foi de R$ 172,2 bilhões, que deixaram de ser investidos no país de 2014 a 2017. Como resultado, cerca de 4,4 milhões de postos de trabalho foram eliminados. Os principais setores afetados foram as cadeias produtivas de petróleo, gás e a construção civil, além da queda na arrecadação de impostos, com perdas estimadas na ordem de R$ 47,4 bilhões que deixaram de ser arrecadados aos cofres públicos.

 

A operação Lava Jato mirou setores estratégicos da economia brasileira, integrados há tempos com o capital internacional, mas que mantiveram certa autonomia dos limites do possível num país capitalista emergente, o que não durou muito.

 

Foto: Arquivo MST
 

O império estadunidense, e não somente o ex presidente Trump, segue seu projeto para a América Latina e especialmente para o Brasil: apropriação de bens naturais, recursos estratégicos e subordinação de empresas com capital de origem nacional. O capital não quer quebrar as empresas brasileiras, mas sim subordiná-las, e nisso também há uma disputa entre as grandes potências do mundo, pautadas nas mudanças da geopolítica, como foi possível ver ontem (24) com a autorização do Conselho da Petrobras de privatização da Rfam para os Emirados Árabes.

Por outro lado, sabemos que não é tarefa da classe trabalhadora defender empresas do capital, seja ela de onde for. No caso da empresa Odebrecht, alvo da Lava Jato, muitas foram as manifestações de denúncia por parte dos movimentos populares sobre a apropriação da empresa ao programa de habitação popular ou aquisição de usinas sucroalcooleiras em terras públicas.

 

Para a classe trabalhadora, o central é identificar as contradições dessa disputa intra-burguesa expressa na Lava Jato, desvelar o uso político de deslegitimação de governos democraticamente eleitos como no caso de Dilma, denunciar a perseguição política à figura de Lula e se colocar contra o golpe que se pôs em movimento a partir da Lava Jato. Em outras palavras, a Lava Jato aprofundou a dependência brasileira e a resposta da classe trabalhadora aos donos da Operação e do Golpe, deve sempre de se pautar pela construção do projeto de poder popular.

 

Do lado dos burgueses, eles justificaram o desmonte causado pela Lava Jato levantando a falaciosa bandeira da anticorrupção e praticando uma série de crimes, com a suspensão de direitos elementares de defesa, uso de técnicas de tortura psicológica e subjugando diversas pessoas, principalmente Luiz Inácio Lula da Silva, que ficou preso injustamente por 580 dias, foi impedido de concorrer as eleições presidenciais de 2018 e teve sua dignidade ferida em muitas situações sensíveis, quando foi impedido de estar na despedida de afetos diretos.

A decisão que anula a sentença do caso do triplex é definitiva e não cabe recurso de outras instâncias. Por que só agora tivemos esta resposta?

 

Não teria sido possível existir a Operação Lava Jato sem a total anuência do STF, que abriu mão de seu poder de instância maior, “transferindo” à suprema corte para a república de Curitiba, e nisso TODOS ministros e ministras do STF tem responsabilidade direta, pois corroboraram com prática de Lawfare (lei e guerra), com uso manobras jurídicas e institucionais, acima de lei.

 

Assim, apesar das recentes mudanças nas decisões do STF, não dá pra passar uma borracha sobre toda a omissão dos ministros e ministras e também não dá pra criar ilusões de que daqui pra frente tudo vai ser diferente.

Manifestantes em Curitiba em apoio e solidariedade ao ex-presidente Lula em 2018. Foto: Arquivo Comitê Lula Livre
 

Dito isso, a decisão sobre a suspeição de Moro, considerando que ele é um juiz imparcial, é muito importante para a frágil democracia brasileira, além de incidir diretamente na restituição dos direitos políticos de Lula.

 

A decisão da turma é definitiva e deve ser cumprida imediatamente, não precisando ser referendada pelo plenário do Supremo, como quer a PGR, que num ato de exceção, protocolou pedido nesse sentido. Lula é livre e no momento atual tem todos seus direitos políticos e cidadãos restituídos, podendo inclusive se candidatar em 2022 para as eleições presidenciais.

 

Porém, a conjuntura atual não nos permite jogar todas as forças na disputa eleitoral de 2022, criando expectativas de uma normalidade da alternância de poder, dentro das regras democráticas. Vivemos uma democracia liberal e a disputa institucional é pautada por regras estabelecidas pela classe dominante. Ainda assim, a tática eleitoral é fundamental, desde que esteja subordinada a uma construção soberana de autonomia dos povos e construção de projeto popular.

 

Portanto, as tarefas políticas do campo popular e de esquerda tem que estar de olhos atentos em 2022, mas ao mesmo tempo fortalecer o trabalho de base, a formação política e as formas de luta possíveis com os condicionantes da pandemia. Lula, ao que parece, foi o que melhor percebeu isso e no seu último discurso defendeu tarefas imediatas para salvar a vida dos brasileiros e brasileiras, enfrentar o projeto entreguista que está no poder e derrotar as mentiras de inspiração fascista.

 

Outro elemento que causa preocupação é a ameaça constante por parte das Forças Armadas de escalar o topo rumo a um regime ditatorial. Temos um dos governos mais militarizados da nossa história e as recentes medidas de cerceamento da liberdade política são sinais importantes: uso da LSN contra manifestantes, retomada do PL do Terrorismo, exibição de exercícios militares, autorização judicial de comemoração do 31 de março etc.

 

Como surgiu a ideia da Vigília de apoio ao Lula? Como o MST se inseriu nesta frente de apoio a ele?

 

A Vigília Lula Livre foi um ato de resistência popular, estabelecendo uma luta permanente em defesa da Democracia, de denúncia à injustiça contra Lula e também uma medida fundamental para garantir a integridade física de Lula.

Surgiu por uma decisão dos movimentos populares, que acompanhando os rápidos acontecimentos que envolveram a prisão de Lula, viram a necessidade de receber e prestar solidariedade ao presidente desde o primeiro momento de sua chegada à sede da Polícia Federal de Curitiba.

 

Com isso foi criada uma organização interna da Vigília, tanto do ponto de vista da sua manutenção, mas principalmente para torná-la um espaço de formação política, prática de expressões artísticas e também espaço para atos político-culturais. Ela durou o mesmo tempo que durou a prisão do presidente Lula e foi um grande aprendizado para o MST e para os movimentos envolvidos.

A Vigília também cumpriu uma tarefa de trabalho de base junto à sociedade. Muitos foram os vizinhos da localidade que passaram a se encantar com a organização do movimento popular e a persistência de passar dias e dias na defesa de uma causa.

 


 

O juiz Sérgio Moro tentou várias vezes acabar com a Vigília, através de atos normativos para impedir a liberdade de expressão e manifestação garantidas pela Constituição brasileira. As forças milicianas da direita também investiram contra a Vigília, através de provocações, intimidações, chegando ao absurdo atentado em abril de 2018, onde duas pessoas foram baleadas.

 

Mas nada impediu que o povo organizado continuasse se manifestando. Os “bom dia, boa tarde e boa noite presidente” não foram calados. E assim é a história: quando um povo decide garantir uma ação na defesa de sua existência, nada e nem ninguém podem impedir. E esse é o sentido principal da Vigília: ela foi por Lula, pela democracia, mas foi principalmente pelo direito do povo brasileiro ser respeitado como força política, sujeito da história.

 

A Vigília sofreu muitos ataques e ameaças desde 2018. Como isso tem sido para o Movimento, lidar contra o ódio e a violência?

 

O Brasil é marcado pelo histórico conflito de luta pela terra e isso tem como base a desigualdade social e a criminosa concentração de terras. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, 1% dos proprietários detêm 45% das terras agricultáveis. Esse ano completamos em 17 abril, 25 anos do massacre de Eldorado dos Carajás, que segue impune até hoje, como muitos outros massacres ocorridos no campo, mas também nas periferias urbanas contra pobres e negros. A violência no nosso país é estrutural e está diretamente relacionada ao racismo e ao patriarcado, que silencia os feminicídios, por exemplo, que se ampliam em larga escala.

 


 

Violenta também é a fome, que atinge 15 milhões de pessoas no Brasil. No momento atual enfrentamos um genocídio contra o povo que sofre com a pandemia do vírus e da fome. Mortes que seguem um minucioso projeto de morte conduzido pelo genocida que está no poder.

 

O ódio de classe não é novo, mas com a ascensão da extrema direita no Brasil, ele se escancarou. Mas com solidariedade, organização e luta, vamos derrotá-los. 

 

Quais as perspectivas para o próximo período, do ponto de vista de resistência, tanto das que começaram em 2018, em defesa da democracia, até hoje, como vacina para todas e todos?

 

A luta imediata é por Vacinação Já, Volta Auxilio Emergencial Integral e Fora Bolsonaro. A paralisação pela vida do último dia 24 já indicou o caminho: mesmo com as restrições da pandemia temos que fazer lutas, pois não queremos morrer nem de vírus, nem de fome, e nem de bala de miliciano, milico ou policial. Temos que nos organizar pois a história pertence aos que lutam e transformam sua existência, coletivamente.

 

*Editado por Gustavo Marinho

 

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