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terça-feira, 6 de junho de 2017

Murar o medo - por Mia Couto

Mia Couto, escritor moçambicano nascido em Beira, em 1955, tem exercitado, na lapidação da palavra, a arte de reencantar o mundo


O medo foi um dos meus 
primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos quando chegaram já era pra me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam carcear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei minha casa natal, uma invisível mão roubava minha coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha uma invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças. Os chamados turistas que lutavam pela independência. E um ateu barbudo com anômalo mal. Esses fantasmas tiveram o fim de todos fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram um restaurante à nossa porta. Os ditos turistas são hoje governantes respeitáveis. E Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção do terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais invisíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave desta longa herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A guerra fria esfriou mas o maniqueísmo que esses tinham não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo ao oriente e ao ocidente. E por que se trata de entidades demoníacas, não bastam escolar os meios de governação. Precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Pra fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Pra produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que em segredo tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: pra superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais policia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que de um e de outro lado aprendemos a chamar de "eles". Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida, e a racionalidade deve ser suspensa. 

Todas essas restrições servem pra que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas: Por que motivo a crise financeira não atingiu a industria do armamento? Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias em todo o mundo sem que seja preciso o pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo mundo uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sob uma grande parte de nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação por aí é bem menor que o medo. Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e como militar sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas por que está provada a barbaridade dos outros e por que estamos em guerra não temos que fazer prova de coerência, nem de ética, nem de legalidade.

É sintomática e única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A grande muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. 

Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos, convertidos em muro e pedra, são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje no mundo muro que separa os que têm medo, dos que não tem medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós. Do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galeano acerca disto que é o medo global, e diz ele: "os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe."


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